segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O Rei dos Clones

Em um futuro próximo,
seres humanos são criados em série
como mão-de-obra robotizada

Em 2050 a clonagem humana já havia se tornado rotina.Superados os problemas técnicos e apesar das restrições éticas, feitas sobretudo pelas ONGs, o procedimento já não chamava a atenção. Mas, como sempre acontece com tais inovações, surgiram situações absolutamente inesperadas, criadas por personagens singulares.

Max Kluskin, conhecido como "O rei dos clones", era um destes. Europeu sem nacionalidade definida - o que pouco importava, num mundo completamente globalizado -, era considerado um dos maiores experts em clonagem. Iniciara sua carreira como pesquisador; um dia, porém, cansado de ser pobre (palavras dele), decidira usar seus conhecimentos para ganhar dinheiro. Como? Industrializando a produção de clones. No que estava, aliás, atendendo a uma oculta demanda. Apesar da igualdade entre povos e pessoas, a exploração ainda estava em certas regiões, não necessariamente as mais pobres. Ricaços queriam, para as suas mansões, dezenas de criados e criadas. Misteriosas empresas empregavam mão-de-obra com fins nebulosos. Chefes locais queriam mercenários.

Kluskin, que não era exatamente um defensor dos direitos humanos, logo se deu conta de que estava diante de uma potencial mina de ouro. Resolveu aproveitar a oportunidade. Abriu o seu próprio laboratório e começou a produzir clones sob encomenda.

Além de dominar perfeitamente a técnica da clonagem, Kluskin havia introduzido uma revolucionária modificação no processo: mediante certos genes e derivados hormonais, acelerava o crescimento celular e o desenvolvimento orgânico com tal rapidez que, em poucos dias - às vezes em horas -, um embrião transformava-se num ser completo. Ou seja: feito o pedido, ele rapidamente podia entregar aos solicitantes clones jovens ou adultos.

O empreendimento se expandiu extraordinariamente. Em breve, Kluskin tinha sob seu comando dezenas de técnicas e auxiliares. E aí começou a refinar a técnica, atendendo a pedidos especiais. Olhos azuis? Sem problema. Pernas compridas, para um futuro atleta? Fácil, muito fácil. Cérebro orientado para a ciência? Claro, é só pedir. E havia também clones especialmente desenhados para certas ocupações. Mordomos, por exemplo: clones de fisionomia circunspecta, disposição para o trabalho caseiro, fidelidade. Seguranças: jovens de grande força física, capazes de correr qualquer risco. Secretárias: moças bonitas e inteligentes. O departamento de marketing da empresa exibia, na internet holográfica, clones para as diferentes funções: "Alô, eu sou Órion, o seu massagista. Minhas mãos foram especialmente desenhadas para o trabalho que eu vou exercer, como seu corpo poderá constatar. Tenha-me a seu serviço e você não se arrependerá".

A notícia se espalhou. Algumas pessoas ficaram, claro, encantadas; mas a opinião pública reagiu com surpresa e até indignação. Organizações formaram-se no mundo todo para lutar contra o que era chamado de "linha de montagem humana". Intelectuais, médicos e educadores assinaram uma petição exigindo o fim das atividades de Kluskin. O caso foi parar no Corte Mundial. A defesa de Kluskin estava a cargo de 12 dos mais hábeis advogados do mundo. Seus sofismas resultaram inúteis. Os juízes deram a sentença: em nenhum lugar da Terra Kluskin poderia fabricar seus clones. Parecia o término da carreira daquele a quem muitos rotulavam de cientista louco. Mas Kluskin era, antes de mais nada, muito esperto. Reuniu todos os seus assessores para dizer que continuaria, sim, produzindo clones.

- Mas como? - indagou o chefe do laboratório, surpreso. - Nenhum lugar na Terra nos receberá.

Kluskin, um homem baixo, gordo, calvo, olhos frios e astutos, sorriu, irônico:

- Você o disse: nenhum lugar na Terra. Mas e fora da Terra? Se estivermos no espaço sideral?

E aí revelou o seu plano.

Já há algum tempo, prevendo uma possível complicação, tinha adquirido uma enorme estação espacial, ainda em órbita, porém desativada. O que, do ponto de vista legal, era a solução perfeita. Estações espaciais não eram consideradas parte do planeta; a elas não se aplicava, portanto, a legislação terrena. E não haveria maiores inconvenientes: teriam espaço para instalar o laboratório, além de alojamento para todos os colaboradores. E haveria também um sistema de transporte entre a estação e a sede na Terra.

- Vocês decerto ouviram falar daquilo que, no começo do século, era chamado de paraíso fiscal: um lugar para onde o capital migrava, ficando fora do alcance das autoridades. Pois bem, nós vamos ter o primeiro paraíso da clonagem. E conto com a colaboração de vocês para isso.

Fechou a cara:

- Mas quem não estiver de acordo, pode sair. Já.

Kluskin era assim, implacável. Quem não estava com ele, estava contra ele. E ai de quem estivesse contra. Circulava uma história, nos meios ligados à clonagem, de que, no início de sua carreira, ele tivera como rival um talentoso cientista. Esse homem subitamente desaparecera. Também se dizia que Kluskin tinha, escondido, um clone encarregado do serviço sujo: um homem ainda jovem, com descomunal força física, programado para liquidar pessoas. Essa era apenas uma das lendas que contavam sobre ele.

Ninguém se levantou. Kluskin sorriu.

- Muito bem. Já tenho pronto o cronograma de mudança. Em um mês estaremos na estação espacial.

O cronograma foi cumprido à risca e, em um mês, a estação, chamada Paraíso I, estava em funcionamento. Era uma estrutura com mais de um quilômetro de comprimento por outro de largura, capaz de albergar centenas de pessoas. Naves espaciais levaram Kluskin e sua equipe até a Paraíso I. Sua partida foi comemorada pelas ONGs que o hostilizavam. A nova escravidão acabou antes mesmo de começar, diziam todos.

Estavam enganados, naturalmente. Em breve a clonagem estaria funcionando a todo vapor. Mais que isso, demandas chegavam continuamente, pelos numerosos agentes que Kluskin espalhara pelo globo. Eles sabiam como chegar a potenciais clientes. Apesar dos preços agora mais elevados, os pedidos eram constantes. O Rei dos Clones vencera.


Uma Pequena Falha

Isso, pelo menos, era o que ele pensava: afinal, um plano tão bem elaborado só podia dar certo.

Mas nesse plano havia uma falha: PQ-37.

PQ-37 era o meu nome. E quem era eu? Um jovem e vigoroso clone. Como todos os clones de Kluskin, não tinha nome, e sim um código. Eu fora criado para trabalhar na indústria de computação. Meu cérebro, devidamente programado, era o equivalente biológico de um computador. Eu não deveria pensar em nada, não deveria sentir afeto algum. E de fato passava os dias imóvel, aguardando o momento em que seria remetido a meu futuro proprietário, na Terra. Desse período, aliás, lembro pouco. Minha memória para o cotidiano era muito restrita.

Mas aí algo começou a acontecer. Quando dei por mim, estava pensando. Não em computação; em outras coisas. E pensar, para mim, era uma coisa nova e perturbadora. Vocês talvez não acreditem nisso, porque estão acostumados a pensar; mas para mim era quase uma aventura, e chegava a assustar.

O que tinha havido? Por que eu estava pensando? Dei-me conta de que só poderia ser por um erro genético. Kluskin cometera um engano. Regiões de meu cérebro que deveriam ficar inativadas agora davam sinais de vida; como se eu estivesse saindo de um coma. E, de fato, estava entrando na realidade. Uma realidade que me parecia estranha. Sentado, como sempre, no compartimento dos clones (havia ali uns 40 deles), eu já não permanecia apático; observava os técnicos, ouvia o que falavam. E o que eles falavam - sem se dar conta de que agora um dos clones podia pensar no que diziam - estava sendo muito revelador. Percebi que eu não passava de um produto prestes a sair da linha de montagem de Max Kluskin.

Que raramente aparecia. Quase sempre ficava fechado em seu gabinete, dando ordens ou falando com clientes pelo seu sofisticadíssimo sistema de telecomunicações. Dali, ele decidiria o meu futuro.

Aos poucos, uma imensa revolta foi nascendo em mim. Revolta combinada com amargura: dava-me conta de minha triste situação, mas sentia-me impotente diante do inexorável futuro. Amaldiçoava-me pelo defeito de programação cerebral que me permitia tomar consciência da situação - mas não mudá-la.

Mas será mesmo que eu não podia fazer nada?

Talvez pudesse. Talvez pudesse fazer alguma coisa. Havia, pelo menos, um alvo: Kluskin.

Ele era a chave de tudo. Todos ali obedeciam cegamente ao seu comando. Sem Kluskin, a fabricação de clones chegaria ao fim. Mais do que isso: sem Kluskin, os clones poderiam ser libertados, e, mais importante, transformados - pela engenharia genética, ou por um processo de reeducação - em seres humanos normais. O meu caso, aliás: eu estava a caminho da normalidade, ainda que fosse dolorosa.

Mas o que fazer? Matar Kluskin? Sequestrá-lo? Isso era uma coisa que me repugnava, a violência. Além disso, seria missão impossível: o home era sempre acompanhado de um guarda-costas, um clone fortíssimo, produzido para protegê-lo.

Não. Eu tinha de pensar em outra coisa. Em quê? Nada me ocorria, e isso era desesperador, sobretudo porque o tempo era pouco; das conversas que ouvia, depreendi que todos os clones estavam sendo negociados com um poderoso empresário da Terra. Breve seríamos vendidos. O que, para mim, talvez fosse uma oportunidade para a fuga. Mas e meus companheiros? Quem os libertaria? E Kluskin, ficaria impune?

E então, olhando para meus companheiros de compartimento, uma ideia brotou-me na mente, uma ideia que parecia fantástica, mas que talvez fosse uma solução: um clone de Kluskin. Um clone igual a ele, capaz de assumir o comando da estação.

Naquela noite, enquanto todos dormiam, esgueirei-me até o laboratório de clonagem. Ali estavam todos os manuais de procedimentos. Graças a meu cérebro fantástico, rapidamente assimilei toda aquela tecnologia; em horas, estava pronto para fabricar um clone. Só precisava era de uma minúscula amostra dos tecidos de Kluskin. Como consegui-la?

O acaso ajudou. No dia seguinte, o próprio Kluskin apareceu no compartimento, para uma inspeção. Foi passando pelos clones, todos imóveis. Eu aguardava, o coração batendo forte. Quando o homem passou por mim, num gesto rápido e aparentemente sem propósito, arranhei-lhe o braço.

- Que diabo é isso? - gritou Kluskin. E virando-se para um assessor, ordenou: - Esse clone vai ser despachado depois de amanhã. Antes disso, vamos fazer uma revisão nele. Era só o que faltava, ter aborrecimentos com o cliente.

E saiu. Mal pude conter um sorriso. Em minhas unhas, estava aquilo de que precisava: algumas células do poderosos Kluskin.

Não podia perder tempo. Mal anoiteceu, fui para o laboratório e me pus a trabalhar afanosamente. Coloquei as células na câmara adequada e a programei para operar na maior velocidade. Deu certo: em poucas horas, surgiu o novo Kluskin, igual ao anterior. Nasceu nu, naturalmente. Felizmente, os técnicos haviam deixado uma vestimenta espacial, igual à que todos usavam na estação, inclusive Kluskin.

Expliquei ao novo clone - que surgia para a vida atordoado, mas dócil, disposto - o que tinha de fazer. Correndo pelos corredores, na semiobscuridade, chegamos aos aposentos do chefe. De novo, tivemos sorte: o guarda-costas estava ali sentado, profundamente adormecido. Entramos subrepticiamente. Kluskin estava deitado, dormindo. Nós o agarramos e, antes que pudesse esboçar qualquer reação, injetei-lhe um poderoso sonífero, tirado da farmácia de bordo. Em poucos segundos ele jazia inerte, completamente dopado. Sempre com a ajuda do clone, coloquei-o embaixo da cama. O clone ficou ali - no lugar de Kluskin - e eu voltei ao compartimento.

De manhã, os alto-falantes convocaram todos os membros da equipe, e mais os clones, para uma reunião de emergência no salão principal. Fui para lá. A perplexidade era geral. o que estaria acontecendo?

E aí então apareceu Kluskin, o falso Kluskin:

- Houve uma mudança de planos - disse, seco. - Estamos voltando para a Terra. Imediatamente.

A surpresa foi geral. Mas ordens de Max Kluskin não podiam ser discutidas. Em poucas horas estávamos a bordo da nave que tinha chegado da Terra no dia anterior. Quando chegamos ao destino, kluskin - o falso Kluskin - anunciou que estava abandonando a produção de clones. Cada um deveria seguir seu próprio caminho.

Com o auxílio da ONG "Liberdade para os clones", consegui ajuda para os meus ex-companheiros de cativeiro. Com o tempo, todos foram recuperados e se tornaram seres humanos normais.

Kluskin continua a bordo da estação espacial, que tem víveres para muitos anos. Ele poderá voltar quando quiser, naturalmente, mas pelo jeito não pretende fazê-lo. Talvez tenha outros planos. Um paraíso fiscal no espaço, quem sabe.

Conto de Moacyr Scliar publicado na Revista Galileu de Outubro de 2011, Ano 11, nº 123. Editora Globo.

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