quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O último lírico Mario Quintana

 Esta nova antologia* de Mario Quintana, como as anteriores, não pretende substituir-se à sua obra ou dela extrair o melhor, o suco, a nata. Muito menos o essencial de sua poesia. Pela própria natureza de sua obra, qualquer antologia que dele se faça resulta em duas antologias: a do que foi incluído e a do que não foi incluído. Não intentei sequer estabelecer uma ordem de preferência, uma direção de leitura. O próprio poeta, na antologia de 1981, eliminou a cronologia dos poemas. Preocupei-me em escolher para um leitor de primeira viagem, sempre pensando na obra de Mario Quintana como um todo indivisível.

Essa obra é bastante peculiar por sua estreita unidade, cada poema é um fragmento do poema geral que Mario Quintana vem compondo ao longo de toda a sua vida. Dos sonetos de A Rua dos Cataventos, passando pela prosa lírica do Caderno H, até os livros mais recentes, como A Vaca e o Hipogrifo e Esconderijos do Tempo, sua obra mantém uma qualidade, marca, timbre, ressonância ou maneira que só posso definir como quintanidade. Muitos dos pequenos poemas em prosa ou verso de Quintana, isolados, pouco significam além de uma distração lúdica, um jogo sutil de percepção das coisas e dos seres. Mas dentro de sua obra, lado a lado com outras páginas, eles se iluminam repentinamente - o borrifo irisado da cachoeira vai juntar-se às águas profundas que correm para  o estuário de sua poesia, sob cuja aparente amenidade às vezes se oculta um Estige assustador.

Uma antologia de Mario Quintana dificilmente podia deixar de fora todos os sonetos de seu memorável livro de estreia, A Rua dos Cataventos, ao qual ele ficou devendo sua instantânea popularidade. O tempo se encarregou de provar que esses sonetos, longe de refletirem um retardo de adoção de novos postulados estéticos, mostravam um tratamento novo dessa forma fixa, tornando-a mais fluida, mais dúctil, mais aberta. O soneto deixava de ser a forma, era um poema liberto das varas rituais.

Outro livro cuja inclusão in totum seria quase obrigatória é o pequenino Aprendiz de Feiticeiro, pouco mais que uma plaquete. Não posso negar minha especial admiração, diria até minha paixão, por esse livrinho, que passou um tanto quanto despercebido da crítica quando de seu lançamento em 1950 (hoje é uma raridade da qual ninguém se desfaz nem a peso de ouro). Essa admiração eu a partilhava com o saudoso Augusto Meyer, a quem tanto devo para a melhor compreensão da grandeza de Quintana, ele próprio, Augusto, um excelente poeta. Lembro-me de nossas infindáveis conversas a respeito do lírico de Alegrete, cidade que ele colocou no mapa literário brasileiro. Havia entre nós uma espécie de cumplicidade afetiva. Hoje me dou conta de que, para Augusto Meyer, a princípio deve ter parecido estranho que um jovem crítico nordestino se interessasse tão obsessivamente por dois poetas gaúchos bem gaúchos, que na melhor das hipóteses a crítica oficial considerava menores, e as novas gerações, na sua faina epigônica, deixavam de observar mais detidamente: o até hoje injustiçado Felipe d'Oliveira e Mario Quintana. Para alguns de meus companheiros de geração literária foi um verdadeiro choque meu artigo "Assassinemos o poeta", no qual confessei minha admiração pelo poeta do Aprendiz, contraposta ao cansaço, ao tédio pelas glórias convencionais de nossa poesia.

Um terceiro livro de Mario Quintana que considero indispensável a quem deseje penetrar no mundo fascinante de sua obra é o das Canções, publicado em 1946. Até hoje ainda me surpreende o fato de que, no meio de nossos milhares de exegetas universitários recém-formados, poucos se deram ao trabalho de mergulhar as mãos nessa verdadeira arca de preciosidades poéticas. Criou-se entre nós a mística de que só se deve estudar os autores difíceis, constituindo dificuldade, para esse critério, o hermetismo da linguagem, o inusitado do vocabulário e da sintaxe, que de fato  permitem elocubrações e interpretações no mais das vezes gratuitas. Não só Mario Quintana, outros poetas e alguns romancistas brasileiros têm pago por parecerem demasiado fáceis para a sede decifratória de nossos escoliastas.

A verdade é que, sob o campo visual da poesia de Mario Quintana, se esconde uma teia infinita de raízes, um entrançado de sentidos, duplos sentidos, alusões, elipses, subentendidos, um código vivencial de cuja tradução o poeta é o único a possuir a chave. E sua aparente simplicidade formal, aos olhos de leitores mais atentos, encobre uma extraordinária riqueza de recursos poéticos, de sutilezas verbais, de soluções rímicas e rítmicas; revela-se também o conhecimento, por parte do poeta, das grandes fontes da poesia universal.

Os quintanólogos (são poucos, mas conhecem a matéria a fundo) estudam com particular atenção um quarto livro do poeta, que é o Sapato Florido (1948). É absolutamente essencial à compreensão do quintanismo. Por ser fragmentário e quase todo em prosa, sempre ocupa lugar menor nas antologias. Quintana cultiva um tipo de prosa poética que às vezes se confunde com o poema em prosa ou com o pequeno conto lírico. Não poucas vezes, tudo se resume a uma frase, uma linha: "As folhas enchem de ff as vogais do vento", um fragmento de verso: "... o dia exato alinha os seus cubos de vidro", uma alusão: "Sua vida era um tango argentino", que pode exigir do leitor algumas leituras: "Acabo de ver um negrinho comendo um ovo. Hein, Lin Yutang?". Pode conter uma sugestão retomada ou expandida em verso ou poema de outro livro.

Também Espelho Mágico (1951), conjunto de 111 quadras ou quartetos em que à filosofia da vida e da arte se mesclam notas de humor e cepticismo, é pobremente representada nas antologias de Quintana, inclusive nesta. Várias dessas páginas, sobretudo as mais amargas e as mais pitorescas - inevitável predileção do público! -, correm hoje o Brasil anonimamente, o que é uma forma de incorporação à alma e à sabedoria popular.

Esses cinco primeiros livros foram reunidos pela Editora Globo em 1962 no volume Poesias. Este e a Antologia Poética que Rubem Braga organizou em 1966 foram decisivos para que Mario Quintana atingisse uma audiência nacional. Deixou de ser o "poeta de Porto Alegre" para se transformar num dos grandes nomes da poesia brasileira, reconhecimento algo tardio mas sempre válido.

A Antologia Poética apresentou mais um importante aspecto: a inclusão dos Novos Poemas. Em 1976, o poeta voltaria a incluir esses poemas na coletânea Apontamentos de História Sobrenatural, dando assim, organicidade à sua obra (afinal, antologia é antologia).

Em 1973 havia saído um volume de seu lendário Caderno H (título de sua seção no Correio do Povo),  quase totalmente de prosa variada, vale dizer, sem a preocupação intrinsecamente poética do Sapato Florido. Uma dessas páginas, a Carta a um jovem poeta, que reproduzo na antologia, corresponde a um depoimento sobre a formação e a arte poética do escritor.

Mais recentes são os Quintanares (1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977) e Esconderijos do Tempo (1980). Em 1981 aparecia a Nova Antologia Poética, seleção dos livros anteriores.

Essa antologia tem uma particularidade. O poeta virtualmente remanejou sua obra, deixando de lado o tradicional critério de livro por livro. O resultado foi surpreendente. Revelou a extraordinária unidade da poesia de Mario Quintana, sua atualidade (no sentido de que um bom poema deve atravessar o tempo sem ficar datado) e a multiplicidade de sua inspiração. Assim, a imagem do poeta sai extremamente enriquecida, pode-se mesmo aventar a sugestão de que a Nova Antologia Poética é um novo de Mario Quintana. A sensação de novidade impregna até o leitor antigo, algo como uma peça musical com novo arranjo, novo acompanhamento ou transcrita para instrumentos novos. Alguns poemas como que reflorescem.

Louvei-me na lição do próprio poeta para não obedecer, também, à ordem cronológica dos poemas, misturando os livros. Meu pensamento inicial era dividir a antologia segundo uma subjetiva ordem temática: o poeta fala da poesia, o poeta fala do amor e da morte, o poeta lembra a infância, o poeta vê a paisagem, o poeta sorri, o poeta canta... Diluí a intenção original para evitar o artificialismo numa obra alheia, ou pior,  o didatismo. Procurei, no entanto, exemplificar o elegíaco, o lírico, o descritivo, a prosa, o chiste, a recordação, a saudade. Tudo em Quintana é tão bom, que o  leitor pode lê-lo em qualquer sentido, indiferente à numeração das páginas.

O Brasil, ao contrário do que muitos imaginam, tem produzido pouquíssimos poetas líricos. Talvez o último lírico puro que tivemos foi ainda Casimiro de Abreu. No correr dos séculos, poetas que podiam ter sido excelentes líricos, deixaram-se iludir pelo som cavernoso da tuba épica, escrevendo longos poemas que só nos enchem de tédio. Outros enveredaram pela poesia dramática, pela poesia patriótica, pelos hinos e pelas odes ("Nobre animal, o poeta"), sem que muita coisa restasse de tanto esforço bem intencionado. Mesmo as elegias, que já foram moda, só resistem quando um pouco mais que o talento as legitima.

Apesar da poesia lírica ser a que apresenta maior resistência à passagem do tempo, apurando-se e quintessenciando-se com esta (em mais de um sentido, a grande lírica do Ocidente foi produzida pelos trovadores medievais), os tratados de estética e os manuais de arte poética insistem na velha superstição dos gêneros maiores e menores, como se Homero, Virgílio, Dante e Camões houvessem deixado prole à altura. Os conteúdos da lírica, seu inato individualismo, sua aderência às emoções e seu imediatismo afetivo levam os teóricos à presunção de que o lírico seja um eterno disponível, um improvisador bem dotado, vivendo de inspirações momentâneas; ou, em linguagem mais moderna, um receptivo e não um produtor de mensagens, um recriador e não um criador. A verdade é bem outra: além do talento, do gênio, que marcam os grandes líricos, eles devem possuir rigoroso domínio da forma e ter uma agilidade criadora que lhes permita passar de um estado a outro, de uma inspiração a outra, sem afundar nos lugares-comuns que só fazem engrossar o lixo poético.

Um lirismo quase puro como o de Mario Quintana é raro em nossa poesia moderna. Ele soube manter-se fiel ao seu gênio poético, à sua vocação lírica, quando tantos em torno dele se esgotavam em caminhos equivocados. Autêntico, elaborado e musical, ele tornou-se o que é, não só um dos maiores poetas brasileiros, como também um dos grandes líricos contemporâneos -  irmão inteiro dessa família que se faz compreender em qualquer tempo e em qualquer língua.


Prefácio escrito por Fausto Cunha e retirado da coletânea/antologia* Os Melhores Poemas de Mario Quintana, Global Editora, São Paulo, 3ª Edição, 1987.

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