segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Manuel Bandeira

 Toda a vida de Manuel Bandeira está como que refletida na sua poesia. Talvez não exista, na literatura da língua portuguesa, exemplo maior de transposição para o plano artístico de uma experiência pessoal, com a mesma consistência e igual intensidade, desde o primeiro poema e o derradeiro verso de Estrela da Vida Inteira (9ª Edição, 1982), onde se reúne a sua obra poética. Morreu aos 82 anos, depois de ter enganado muitas vezes a morte, no tempo distante da mocidade. No entanto, por extravagante que pareça, foi a morte que deu vida à poesia bandeiriana. Efetivamente, o poeta nasceu na hora em que a doença parecia ter condenado de modo inapelável ao jovem estudante de arquitetura de vocação ainda não definida. Não fosse o "mau destino", e o rapaz muito possivelmente não passaria de respeitável engenheiro, tal qual o pai. E nada mais do que isso.

Os sonetos da adolescência - com as rimas bem ligadas ao assunto, na fria e seca opinião de Machado de Assis, consultado a respeito por pessoa da família - ficariam perdidos no limbo, como aventuras inconsequentes do menino-prodígio, cujos talentos por sinal não se limitavam à métrica do verso. Desenhava com a mesma presteza, o mesmo brilho. Redigia com precisão. E a todos impressionava a sua arte de improvisar, apreendendo num átimo as coisas mais difíceis e complicadas, expondo-as em seguida com extrema facilidade e até com um certo jeito que denotava queda para o teatro, pela mímica e inflexão de voz fora do comum. Poderia ter sido tudo o que quisesse, menos poeta.

A verdade é que nos poemas preparatórios nada existe, além da habilidade de versejar, nada a denunciar o grande poeta que a doença vai revelar, um pouco mais tarde, autor de poesias eróticas das mais belas que já foram escritas em português. O amor, unido à morte, e aí está todo Manuel Bandeira, muito embora seja este um capítulo defeso do poeta, enquanto vivo. E, no caso particular, conforme ele próprio observaria a repórter indiscreto, abusivamente interessado na identificação da "Vulgívaga" ou da mulher do "Alumbramento", lembrando-lhe o verso de Alfred de Musset: "Un silence profund règne dans cette histoire".

Mesmo deixando Vênus de lado, embora não a esquecendo nunca, a pesquisa biográfica tem que começar com o ex-libris de Manuel Bandeira, desenhado por Alberto Childe, segundo as indicações do poeta - corpo leonino da esfinge, com cabeça de carneiro, símbolo de que se tem a seguinte explicação autêntica:

ARIESPHIX
A força da doçura
A força da poesia
A força da música
A força das mulheres e das crianças
A força de Jesus - o cordeiro de Deus.

O ex-libris deve datar de 1910 ou 1914, época em que o poeta conheceu Alberto Childe, nobre russo que viveu no Brasil nessa época. O importante é que em 1964 Manuel Bandeira compôs um novo poema "Ariesphix", confirmando na velhice o mesmo que pensava havia sessenta e quatro anos, se é que o ex-libris foi desenhado em 1910 ou 1914. Já em 1917 o ex-libris foi estampado na edição princips d"A Cinza das horas.

Para os iniciados em simbologia ou em ciências ocultas, a curiosa concepção do desenho e a não menos curiosa interpretação, extraída do 'Itinerário de Pasárgada', a autobiografia publicada em 1954, de leitura indispensável para a revelação do seu gênio poético, esse desenho e essa interpretação são os mais seguros guias dos altiplanos percorridos por Manuel Bandeira. No entanto, nunca foi um espiritualista. Sem se despojar jamais de um rico potencial de religiosidade, transmitido, pode-se dizer, por ancestralidade, por pertencer a uma família, em que, do tronco paterno como do materno, são muitos os frades e as freiras, o certo é que nunca foi praticante de nenhum culto religioso. Toda a vida não passou de um "católico relaxado". Mantinha suas devoções e guardava com carinho crucifixos e imagens de santos, especialmente as que lhe davam prazer estético na contemplação.

De formação clássica e sólida base humanística, publica a sua primeira coletânea de poemas em 1917, aos 31 anos. Já era senhor do seu ofício, quando aparece A Cinza das Horas, de inspiração fundamentalmente simbolista, mas trazendo a marca dos processos parnasianos então em voga, em que se exercitara com perícia. Havia porém alguma coisa de diferente nesse livro de estreia, como observou João Ribeiro, no artigo em que saudava o aparecimento de um "verdadeiro poeta". Crítico em preconceitos, advertia o mestre de "Fabordão": "A verdadeira arte não comporta compendiosas retóricas e a verdadeira poesia não tem arte poética". Era dizer muito num momento em que pontificavam os mestres do parnasianismo, Olavo Bilac, que de resto acabava de desaparecer num halo de quase veneração, e quando era poderosa e avassaladora a influência de Alberto de Oliveira, a caminho da velhice gloriosa. O artigo de João Ribeiro, profeticamente intitulado: "A Poesia Nova", estava aliás cheio de adivinhações, antecipando o sentido que vai adquirir, com o tempo, em sua exata dimensão, a mensagem bandeiriana.

O sopro renovador de A Cinza das Horas transparece com maior nitidez e mais intensamente no livro seguinte, Carnaval (1919), bem antes, portanto, da Semana de Arte Moderna, que só vai acontecer em São Paulo três anos mais tarde. Manuel Bandeira não será, a rigor, um poeta tipicamente modernista, embora sua contribuição tenha sido fundamental ao movimento de renovação estética, não só como antecipador, e como personagem da primeira linha da vanguarda brasileira, nos livros posteriores, Ritmo Dissoluto (1924) e Libertinagem (1930). Sem o querer, assumira a liderança da nova escola. Houve quem o chamasse nos idos de 20 o "poeta principal". De qualquer modo aproximava-se o instante da consagração definitiva: ele foi na verdade o primeiro clássico do Modernismo.

Ao completar 50 anos, Manuel Bandeira acrescenta um extraordinário vigor à sua obra, com os poemas da Estrela da Manhã (1936), Lira dos Cinquent'anos (1944), Belo Belo (1948), Opus 10 (1952), Estrela da Tarde (1960) e Preparação Para A Morte (1965) até a edição da sua poesia completa, Estrela da Vida Inteira (até 1982, com nove edições). Na sua longa e fecunda atividade, não é possível esquecer o tradutor, com os Poemas Traduzidos (4ª edição, 1976), dentre os quais: O Divino Narciso, de Soror Juana Inês de la Cruz, Maria Stuart, de Schiller, de Shakespeare, D. Juan Tenório, de Zorilla.

Grande artesão do verso, acima das escolas e modismos, o poeta nunca foi um improvisador. Jamais procurou escrever deliberadamente poesia. Ela vinha quando queria vir, mesmo em horas impossíveis, no meio da rua ou no meio do sono, como no caso do soneto "A Ninfa", variante do tema "O Preto no Branco", dignificando em ambos o sexo feminino. Surgiu, formou-se no seu subconsciente. E arrebentou, de noite, como um alumbramento. Só pôde conciliar o sono depois de terminado o último verso do soneto - um dos mais estranhos e dos mais fortes em toda a sua obra. "Palinódia" e "O Lutador" foram também elaborados durante o sono. O poema "A Última Canção do Beco" nasceu na hora em que se preparava para jantar, que não era cerimônia, segundo o próprio testemunho do poeta:

"Na véspera de me mudar da Rua Morais e vale, às seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar os meus troços e caíra exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção se ritmou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas na hora de vestir para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabeça, desci à rua, no Beco das Carmelitas, me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquecê-los, tomei um bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas notas, os versos não paravam... Chegado ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda guardava de cor... De volta à casa, bati os versos na máquina e fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera, à minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete sílabas".

Assim era o poeta, em permanente estado de poesia. Sua vida e sua obra se entrelaçam e se confundem com a própria poesia. Ou como ele escreveu: "Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer".


Prefácio de Francisco de Assis Barbosa retirado da coletânea Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira, Global Editora, São Paulo, 6ª Edição, 1993.

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