domingo, 13 de dezembro de 2020

Travessia de Castro Alves

 Com seu frescor de orvalho e fulgor de diamante, a poesia de Castro Alves não sofre a injúria do tempo que danifica as glórias e enxota as notoriedades. Está sempre próxima ao presente, como a estátua de uma praça que atravessamos diariamente. Possui uma matinalidade que nos intriga. Muitas vezes, inclinamo-nos diante desse lirismo luminoso e epidérmico, buscando interrogar a receita de sua intemporalidade dentro da historicidade em que se engasta qualquer criação poética, e nos perguntamos por que ele logrou chegar até nós.

Onde está o seu segredo? Na sua eloquência comicial que se desata mesmo no momento murmurante em que, no desalinho de uma cama, celebra o seu amor por uma mulher? Na chuva de hipérboles e metáforas que troveja entre as nuvens e astros de sua noite condoreira juncada de clamores e indignações? Na sedução de sua vida breve de poeta romântico, que viveu a sua própria antecipação entre alegrias e amarguras, e na qual os dias devem ser avaliados numa contabilidade que os dobre ou multiplique?

Com o seu dengo de baiano, o poeta das Espumas Flutuantes nos induz sempre à aceitação e à tolerância, como uma criança mimada cujas travessuras merecessem as indulgências dos adultos. Mas nossa generosidade é ilusória. Na verdade, Castro Alves não precisa dela. Não que a sua poesia seja perfeita - na realidade, a grande arte está além da perfeição, é um novo excesso acrescentado ao pecúlio dos tempos e ao acervo dos séculos. E os defeitos de Castro Alves são as negligências e limitações que só os poetas manifestamente geniais têm o direito e até o dever de ostentar. Demais, cabe não esquecer que esses defeitos e vícios estilísticos, tão reiteradamente proclamados pelos críticos e pedagogos sequiosos de disciplina e moderações (e que ignoram a lição de Goethe de que há certa perfeição que só se tem aos vinte anos), constituem, muitas vezes, o carimbo existencial do poeta, ou imposições e balizas da própria estética romântica, posteriormente condenadas pela férula parnasiana. Assim, há que mirar e avaliar Castro Alves como o sobrevivente de uma canônica que o tempo historicizou, de uma retórica que a mudança do gosto do público (e dos críticos) foi congelando inapelavelmente. 

Também será aconselhável que o leitor dos poemas de Castro Alves não perca de vista que ele pertence à estirpe dos poetas cultos. Nesse espaço tumultuoso entre adolescência e juventude em que transcorreu a sua eclosão que ainda hoje reivindica espanto, a experiência pessoal, atravessada de amores tornados legendários, e de atitudes libertárias de abolicionista e republicano, encontra habituavelmente, para se exprimir tão fervidamente, o caminho de um tirocínio poético de inconfundível qualificação. Seu grande mestre foi, sem dúvida, Victor Hugo, a quem o unia indisfarçável afinidade eletiva, quer de natureza lírica, quer de cunho político e tribunício. Castro Alves o assimilou largamente, pescando no imenso oceano hugoano um número considerável de visões, temas e imagens. Imitou-o e o parafraseou com a mais clangorosa desenvoltura, e chegou mesmo a festejá-lo num poema em que as virtudes da paráfrase e da antítese são magistralmente expostas. E assim como Rimbaud, outro jovem saqueador das riquezas de marajá poético de Victor Hugo, escreveu um poema sobre o mar (Le Bateau Ivre) antes de tê-lo visto, o visionário Castro Alves celebrou a Cachoeira de Paulo Afonso sem precisar ir lá; e a sua visão é mais convincente e realista do que dos visitantes comprovados.

A familiaridade de Castro Alves com outros grandes bardos românticos, como Byron, Lamartine, Musset, Heine, Espronceda e tantos outros - e ainda com o Shakespeare traduzido para o francês que se tornou uma verdadeira obsessão romântica -, é manifesta, e a muitos deles traduziu, parodiou, imitou e saqueou, transfundindo nessas paródias, imitações e saques o vigor de uma língua nova e abrasada de fervor. A doutrina da imitação poética, que as exigências da singularidade criadora escamoteia desde que o Romantismo fez plantar no chão da arte a flórida árvore da originalidade, ilumina a prática estética de Castro Alves. Assim, um dos poetas mais originais da nossa língua, e um dos mais ciosos dos arroubos do seu eu inflamado, será, também, um dos mais afeiçoados à imitação e à paráfrase, sem que esta operação de assimilações, com tanta perícia e felicidade executada por sua mão-boba, o desqualifique ou desmereça.

Graças decerto ao preparo estético-cultural decorrente do convívio com grandes e até imperecíveis modelos, Castro Alves se projeta, dentro do seu turbilhão e fervor, como um dos poetas mais rigorosos da língua portuguesa. A legibilidade de seus poemas, que atravessa toda a poesia brasileira como um persistente raio de sol, se deve a esse rigor. Seu laboratório de magia poética reúne, alia e transfunde todos os materiais indispensáveis à sólida construção lírica. A hipérbole vertiginosa, a metáfora bizarra, a antítese de ostensivo lavor hugoano, a imagem fúlgida, a palavra grávida de sua própria formosura e musicalidade, sustentam a intensidade do verso simultaneamente tenso e largado como é o verso romântico - esse verso invejável que, exprimindo a Independência nacional, foi, em sua doçura incomparável e em sua oratória flamejante, o verbo de nossa libertação linguística e poética. Assim, nada mais natural que esse verso de praça pública reclamasse a glória e o calor do recital.

Em Castro Alves, esse verso político - a nossa primeira voz de povo cioso de propalar e conquistar a sua independência - engrossa a até se encachoeira, nos fluxos e desordens de uma catadupa que, misteriosamente ordenada pela vigilância do artifício poético, organiza o poema. O que, noutros poetas, sem o seu talento genuíno ou habilidade métrica e rimática, seria caos, nele é ordre et beauté/luxe, calme et voluplté. E não será sem razão que a sua obra pende sempre para as antologizações e as homenagens da memória recompensada. Como poucos poetas em língua portuguesa, o cantor de Os Escravos teve a noção do poema como um artefato produzido pela magia verbal: uma criação de palavras organizadas em torno de uma emoção, uma ideia, um sentimento. Aliás, essa convicção estética do produto acabado respira em todo o Romantismo ocidental e é o germe do Parnasianismo. O condor Castro Alves era também um ourives, capaz de fincar sobranceiramente o seu emblema de embalo e encantamento em versos como

        Vem! formosa mulher - camélia pálida,

         Que banharam de pranto as alvoradas.

por todos os títulos dignos de um Leopoldi ou um Mallarmé, um Kaets ou um Victor Hugo.

A teoria de que o Romantismo se exaure na explosão e no esbanjamento é, pois, uma invenção de críticos suburbanos e de professores repetitivos. A visão do poeta romântico descabelado pertence ao almanaque dos mitos burgueses. Poucas estirpes de poetas, no mundo, souberam pentear-se tão bem, apesar de suas infelicidades particulares e da exuberância de suas confissões verdadeiras ou mentirosas, como eles. Além do mais, as numerosas vertentes do movimento, que ocupou todo um século como uma visão existencial do mundo, excluem, em suas expressões nacionais e pessoais, a referência exclusiva, e repelem a cunhagem da efígie única dotada do poder de exprimir todas as tendências. Mesmo entre nós, será sempre possível identificar os vários tipos de Romantismo: o romantismo soturno, noturno e até fantasmal de Álvares de Azevedo, iluminado pelas luzes da noite e pelo claro-escuro dos sonhos; o romantismo matinal e contudo estrelado desse poeta de comício e alcova que é Castro Alves; o romantismo sabiamente selvático de Gonçalves Dias; o romantismo magoado e florestal de Fagundes Varela; o romantismo nostálgico de Casimiro de Abreu, que caçava a infância como quem corre atrás de uma borboleta; o romantismo carnalmente suspiroso de Junqueira Freire; e, como um orgulhoso e solitário voo de águia, o romantismo imperial e imperioso de José de Alencar.

Que sou pequeno - mas só fito os Andes.

Modéstia de mentiroso! Esta seleção* comprova que a cordilheira poética de Castro Alves é da mesma altura dos Andes. E seus ombros de poeta condenado a ser sempre grande se situam no mesmo nível!

Dos ombros friorentos do vulcão...

Texto retirado do livro Os Melhores Poemas de Castro Alves, *seleção (e prefácio) de Lêdo Ivo, Global Editora, São Paulo, 4ª edição, 1988.

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