sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Casa Branca

 As cartas que ele me escreve formam um quebra-cabeça não muito difícil de montar, posso saber um pouco sobre sua vida, sua maneira de ser, seus verdadeiros sentimentos, as reflexões sobre seus assuntos prediletos, até mesmo coisas que ele não pretendia revelar, as palavras parecem fluir dele e tudo vai sendo escrito como num diário da imaginação nem mais sensível, nem menos real que qualquer outro mundo, um homem tentando apreender como todos nós um mundo perdido, suas cartas são uma fábrica de sonhos fantasmas vislumbres, e vivendo trancado em um sótão no terceiro andar de uma bela casa branca com vista para a paisagem do oceano afastada da cidade, sozinho entre árvores ouvindo gorjeios de pássaros ou flocos de neve rangendo na janela, os netos a jogar no jardim, as folhas a caírem na relva, folhas que ele depois vai recolher com um ancinho e meter num saco de lixo, ouvindo as unhas dos esquilos que saltam, a chaleira na cozinha, a lenha queimando na lareira da sala, nesse mundo pequeno, terno, virtuoso, ele me abre caminhos para mundos interiores, como se ele mesmo fosse uma janela e olhando cada vez mais dentro dele olho mais dentro de mim a cada dia com maior aceitação da nossa impossibilidade, distância física, sem saber se temos o direito de amar um ao outro, aprendendo como se contorna e como se derruba cada obstáculo, ele me transmite um mundo que engendra comendo galinha com morango ou visitando cemitérios abandonados ou descendo as colinas até a praia com uma cesta de piquenique no braço e um cortejo de mulheres e crianças, plantando tulipas ou pintando os pilares da varanda de sua casa para esconder as rachaduras da tinta antiga como se acreditasse que é possível alguém reparar os estragos do tempo, cultivando sua paixão secreta ou meditando na igreja ou submetendo o corpo às luzes que tornam sua pele macia, como se o segredo da vida estivesse nas coisas minúsculas e sem importância, assim ele escreve suas cartas apaixonadas sobre a existência, a volúpia, a inevitabilidade e a morte, construindo com o seu o meu mundo, e nosso passado vai crescendo, arrastando-se atrás de nós como um rabo cada vez mais transparente.


Texto de Ana Miranda retirado do livro Pipocas - Volume 2 - Crônica e Conto, série Literatura em Minha Casa, São Paulo, Companhia das Letras, 1ª Edição, 2003.

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