Escritos marginais de grandes criadores da palavra formam um subgênero próprio da sátira literária
Remexer o fundo das gavetas dos grandes criadores da palavra pode permitir pitorescas descobertas. Produzidos para criticar costumes e personalidades de uma época, para afrontar uma ideia corrente ou por mero capricho e diversão, escritos contundentes foram mantidos por muito tempo à margem das bibliografias oficiais de escritores, historiadores, cientistas e filósofos consagrados. Alguns desses textos, nascidos apócrifos, ainda ecoam em nossos dias.
Títulos escapam da mera curiosidade de rodapé para integrarem um subgênero próprio de ironia literária. Escaparam das injunções editoriais do momento, esquivaram-se dos julgamentos condenatórios e dos olhares atravessados de seus contemporâneos. Alguns foram renegados em vida por seus autores. A posteridade os tirou da gaveta.
Com essas obras, ampliamos o que sabemos - e sentimos - sobre autores que veneramos ou sobre as condições de escrita de sua época. E descobrimos facetas licenciosas ou escatológicas por muito encobertas. Em parte porque, como a amostra a seguir talvez indique, ainda vale a pena descortiná-las.
O AMOR NATURAL
Carlos Drummond de Andrade
Publicado só depois da morte do autor, o livro reúne os poemas eróticos drummondianos. O poeta publicara obras fesceninas em revistas especializadas, nos anos 70, mas a maioria do que saiu em O amor natural era inédita. "Para repousar do amor, vamos à cama", diz um de seus versos de carnal reflexão lasciva.
O próprio Drummond preferiu colocar a coletânea no fundo mais fundos das gavetas, para que, se viesse a ser publicada por seus herdeiros, o fosse somente depois de sua morte.
O resultado é surpreendente quanto mais imaginamos o autor de figura plácida e terna, de paixão contida e sentida.
A bunda, que engraçada
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vem sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda,
redunda.
(Carlos Drummond de Andrade)
Trecho da matéria Do Fundo das Gavetas; escrito por Luiz Costa Pereira Júnior, retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 113, Março de 2015, Editora Segmento, São Paulo.
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