sábado, 18 de setembro de 2021

Ascetismo

 Existem pessoas que, a pretexto de buscarem a paz espiritual, odeiam o mundo, literalmente, e se entregam a uma vida de desprezo a tudo e a todos, num ascetismo fanático, longe da lógica e da razão.

Algumas, embora nos mereçam respeito pelo esforço e intenção, não passam de personalidades psicopatas, que se entregam a mecanismos de fuga sob pretextos que se lhes tornam fundamentais.

Pretendem a felicidade espiritual por meio da mortificação física e creem que, no recolhimento pessoal e no isolamento, conseguirão a morte do ego.

Propõem-se e entregam-se à inação como meta de vida, na expectativa de uma paz que é inoperância, anulação do ser.

O espírito reencarna para evoluir e jamais para estagnar.

A reencarnação é processo de iluminação pelo trabalho, pela transformação moral.

Renascimento significa oportunidade de crescimento pelo amor e pela sabedoria.

Quem se isola, reserva-se a negação da vida e o desrespeito a Deus, embora sob a justificativa de buscá-lO.

Em toda a Criação vibram em uníssono, as notas ritmadas da ação, que gera o progresso, e do movimento, que responde pela ordem universal.

Inatividade e água estagnada guardam os miasmas da morte.

No célebre diálogo entre Krishna e Arjuna, responde o Bem-aventurado ao jovem príncipe pândava, a respeito da ação, na Bhagavad-Gita:

- É vã quão vergonhosa a vida do homem que, vivendo neste mundo de ação, tenta abster-se da ação; que, gozando o fruto da ação do mundo ativo, não coopera, mas vive em ociosidade. Aquele que, aproveitando a volta da roda, em cada instante de sua vida, não quer pôr a mão à roda para ajudar a movê-la é parasita, e um ladrão que toma sem dar coisa alguma em troca.

E prossegue:

- Sábio é, porém, aquele que cumpre bem os seus deveres e executa as obras que são para fazer-se no mundo, renunciando a seus frutos, concentrado na ciência do Eu Real. (*)

Jesus, o excelente Mestre, viveu trabalhando e exaltando o valor da ação como meio de dignificação e paz.

Dentro do mesmo enfoque, Allan Kardec estabeleceu a tríade do Trabalho, Solidariedade e Tolerância, completando que, só a Caridade salva, por ser esta a ação do amor a serviço do homem e da Humanidade.


(*) Bhagavad-Gita - Tradução de Francisco Valdomiro Lorenz - 4ª Edição, Editora O Pensamento (Nota da autora espiritual)

Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª edição, 2014.

sábado, 11 de setembro de 2021

Jesus

Comiam todos o caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse:

- Sei um ninho!

A Mãe levantou para ele os olhos negros, a interrogar. O Pai, esse, perdido no alheamento costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder à Mãe, ou para acordar o Pai, repetiu:

- Sei um ninho!

O velho ergueu finalmente as pálpebras pesadas, e ficou atento, também.

A criança, então, um tudo-nada excitada, contou. Contou que à tarde, na altura em que regressava a casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E tanto olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o manhuço negro, lá no alto, numa galha.

A Mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.

Mas o menino continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.

De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe, inquieto, com a respiração suspensa, a ouvir.

E o pequeno ia subindo. O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito, colado a ele, trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braços; e só então as pernas avançavam até onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca rija.

A subida levou tempo. Foi até preciso descansar três vezes pelo caminho, nos tocos duros dos ramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque eram já só vergônteas as pernadas da ponta.

Transidos, nem o Pai nem a Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequeno chegasse ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho tinha só um ovo.

Aqui, o menino fez parar o coração dos pais. Inteiramente esquecido da altura a que estava, procedera como se viver ali, perto do céu, fosse viver na terra, sem precisão dos braços cautelosos agarrados a nada. E ambos viram num relance o pequeno rolar, cair do alto, da ponta do cedro, no chão duro e mortal de Nazaré.

Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.

E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egito, que ouvira ler a um vizinho.

Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.

A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho  depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.

E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe.


Conto de Miguel Torga retirado do livro Bichos, Editora Coimbra, 5ª Edição, 1984.

Caminho da Autoiluminação

 O homem atinge um alto nível de evolução quando consegue unir o sentimento e o conhecimento, utilizando-os com sabedoria.

Nesse estágio é-lhe mais fácil desenvolver a paranormalidade, realizando o autodescobrimento e canalizando as energias anímicas e mediúnicas para o serviço de consolidação do bem em si mesmo e na sociedade.

O seu amadurecimento psicológico permite-lhe compreender toda a magnitude das faculdades parapsíquicas, superando os impedimentos que habitualmente se lhe antepõem à educação.

Desse modo, a mediunidade põe-se em contato com o mundo espiritual de onde procede a vida e para o qual retorna, quando cessado o seu ciclo material, ensejando-lhe penetrar realidades que se demoram ignoradas, incursionando  com destreza além das vibrações densas do corpo carnal.

O exercício das faculdades mediúnicas, no entanto, se reveste de critérios e cuidados, que somente quando levados em conta propiciam os resultados pelos quais se anela.

A mediunidade é inerente a todos os indivíduos, em graus de diferente intensidade. Como as demais, é uma faculdade amoral, manifestando-se em bons e maus, nobres e delinquentes, pobres e ricos.

Pode expressar-se com alta potencialidade de recursos em pessoas inescrupulosas, e quase passar despercebida em outras, portadoras de elevadas virtudes.

Surge em criaturas ignorantes, enquanto não é registrada nas dotadas de cultura.

É patrimônio da vida para crescimento do ser no rumo da sua destinação espiritual.

O uso que se lhe dê responderá por acontecimentos correspondentes no futuro do seu possuidor.

Uma correta educação da mediunidade tem início no estudo das suas potencialidades: causas, aplicações e objetivos.

Adquirida a consciência mediúnica, o exercício sistemático, sem pressa, contribui para o equilíbrio das suas manifestações.

Uma conduta saudável, calcada nos princípios evangélicos, atrai os bons Espíritos, que passam a cooperar em favor do medianeiro e da tarefa que ele abraça, objetivando os melhores resultados possíveis de empreendimento.

O direcionamento das forças mediúnicas para fins elevados propicia qualificação superior, resultando em investimento de saber eterno.

Se te sentes portador de mediunidade, encara-a com sincero equilíbrio e dispõe-te a aplicá-la bem.

O homem ditoso do futuro será um indivíduo PSI, um sensível e consciente instrumento dos Espíritos, ele próprio lúcido e responsável pelos acontecimentos da sua existência.

Desveste-te de quaisquer fantasias em torno dos fenômenos de que és objeto e encara-os com realismo, dispondo-te à sua plena utilização.

Amadurece reflexões em torno deles e resguarda-os das frivolidades, exibicionismos vãos, comercialização vil, recurso para a exaltação da personalidade ou das paixões inferiores.

Sê paciente com os resultados e perseverante nas realizações.

Toda sementeira responde à medida que o tempo passa.

A educação da mediunidade requer tempo, experiência, ductilidade do indivíduo, como sucede com as demais faculdades e tendências culturais, artísticas e mentais que exornam o homem.

Quem seja portador de cultura, de bondade e sinta a presença dos fenômenos paranormais, está a um passo da realização integral, a caminho próximo da autoiluminação.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador,  4ª Edição, 2015.

sábado, 4 de setembro de 2021

Companhia Perturbadora

Reflexionas, sofrido, em tentativas racionais para compreender por que pessoas aparentemente generosas falam mal de ti, são inamistosas para contigo, recusam a tua presença fraterna...

Consideras, magoado, que nada de mal lhes fizeste, antes reservaste respeito e consideração para com elas.

Intentastes um relacionamento agradável, e foste repelido.

Supões que se trata de antipatia provinda de existências passadas...

Não apenas estes, a quem conheces, opõem-se a ti e comentam desairosamente a teu respeito.

Ouviram falar sobre ti, ou viram-te em um momento breve, não possuindo justificativas para objetar-se aos teus labores.

Multiplicam-se, porém, em todas as áreas humanas, estas ocorrências.

Inimigos surgem inesperadamente, retalhando os grupos sociais com as tesouras da intriga, da maledicência, da malquerença.

Se pudesses ou devesses interrogá-los pelos motivos da inimizade, argumentariam com veemência, explicariam de variada forma, todavia, não se dariam conta da geradora real desse desconcerto.

Sabendo disfarçar-se, ela permanece oculta, no entanto destila veneno e atira petardos aguçados que atingem muitas vidas.

Essa companheira perturbadora é a inveja.

Aqueles que não cresceram emocionalmente cultivam-na, infelizes com o triunfo dos outros, a sua aparência de felicidade, a beleza, a inteligência e a saúde de que sejam portadores...

O invejoso não necessita de razões para externar os sentimentos inferiores, que se convertem em rancor, ojeriza ou sistemática perseguição.

Desejando superar as demais criaturas, não vence as más inclinações morais, entregando-se à campanha inglória da crucificação de outras vidas.

Luta com tenacidade contra a inveja.

Dilui o sentimento negativo na solução do respeito às conquistas alheias.

Desconheces os testemunhos ocultos e silenciosos daqueles a quem invejas ou contra os quais competes.

Muitos desses indivíduos são mais nobres do que parecem, porquanto, sob dores morais e físicas muito fortes, não se deixam trair, aparentando uma realidade que não estão vivendo, como forma de preservar o equilíbrio social e familiar.

O êxito, a fama, o destaque, a glória são conquistas efêmeras, e aqueles que as alcançam oferecem um tributo muito pesado.

Não invejes ninguém nem posição alguma.

Contenta-te com o que tens, o que és; anelas e luta pelo teu crescimento interior e a tua realização plenificadora.

Não é o volume do que se faz, que realmente revela a pessoa que o realiza. Cada ser vale a medida do seu esforço em relação aos recursos de que dispõe.

Executa o teu trabalho com amor, e dá-lhe o toque de ternura pessoal que o tornará especial e exclusivo.

Jesus referiu-se à fé do tamanho de um grão de mostarda, à alegria pelo reencontro de uma insignificante dracma que estava perdida, valorizando as pequenas-grandiosas coisas da vida como de real importância.

Assim, vigia as nascentes dos teus sentimentos, a fim de que a inveja não se transforme em algoz das tuas aspirações e tormentosa inimiga daqueles que lutam e sofrem, no processo da evolução, no qual todos nos encontramos situados.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Mal Nenhum

 Enquanto a vida cai ao seu redor

Lamento te encontrar assim!

Enquanto tudo pode ser melhor

Você só pode achar ruim!

E já vai longe

O tempo que a gente se entendeu

Longe como um sonho que já se perdeu!

Longe, tão distante

O professor de mim, lamento de enxergar assim!

Aonde havia força, uma luz

Há hoje o medo de mostrar

Um lado fraco, o passo que conduz

A vida ao seu real lugar,

Pois não há mal nenhum

Em se deixar transparecer

Tudo aquilo que à gente faz temer

Mal nenhum não ser capaz de esconder

Sofrer para encontrar a paz

E não há mal nenhum não ser

Um super homem não

Mal nenhum em evitar comparação

Então quem sabe lá no fundo ainda

Possa ver

Meu velho amigo, meu irmão

De novo!


Música de Fernando Forni gravada no CD Amálgama, de Roseli Martins, Tratore, 2003.

Pequenos Segredos

 Essa senhora

Que passa aqui na rua

Insuspeita, só

Guarda um segredo inconfessável:

Ela sai com um garotão

Da idade do seu filho

Enquanto o seu marido

Esquenta a pança no fogão


Esse rapaz

Dentro do elevador

Tem mil mulheres atrás

Mas passa a noite toda olhando

A vizinha nua

Enquanto a sua namorada fica pela rua

E cai nos braços de qualquer um


Mas é tão normal

Eles são tão normais

Como você é tão normal

Com os seus pequenos segredos


Essa mulher 

Tem seus 29 anos

E como outra qualquer

Narra as suas aventuras amorosas

Pras amigas, que não sabem que a moça

Nunca se deitou com um homem sequer


Esse garoto

Leva a namoradinha no domingo pro almoço

E apresenta pra família

Mas no escuro do seu quarto

Bate papo e faz juras de amor

A um homem pela internet


Música de Clara Gurjão gravada no CD Ela, com a participação de Sílvia Machete. Produção Independente de 2016.

Filhos de Plutão

 É da natureza do signo

Estar sempre de mal com alguém

Ficar sempre de bem

Não digo ficar zen

Pois isso é impossível


É da natureza do signo

Sentir a dor, fazer doer também

Palavras afiadas

Frase envenenada

O corte incisivo


É agressivo, é progressivo, é instintivo

É corrosivo, decisivo, intensivo

A culpa que ocupa espaço

Já embutida no preço


É dolorido feito um beijo sem abraço

É tão estranho quanto o carnaval cair em março

É o tresloucado trem fora do trilho

É o encontro de dois fios desencapados


Música de Roseli Martins que faz parte do CD Amálgama, gravado em 2003 pela Tratore. 

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O mundo é tentador, rapaz

O mundo é tentador, rapaz

Nem tente bater asas se tem medo de voar

O mundo é tentador, rapaz

É muita vida, é muito riso, muito chão pra explorar


Quero ficar,

Nem vem que não tem

Quando cê foi com a farinha, o pão prontinho te entreguei

Nesse lugar

Não tem reza nem amém

Nem vem falar no meu ouvido, em hedonismo me formei


Tente lembrar

Do dia em que deixei você chegar devagarinho

Sem querer me apegar

Desalinhar

Tua ordem descompor

Eu dou as cartas nesse jogo e viro a mesa sem pudor


O mundo é tentador, rapaz

Nem tente bater asas se tem medo de voar

O mundo é tentador, rapaz

É muita vida, é muito riso, muito chão pra explorar


Pra onde mira teu sentido

Tua libido, os teus ouvidos

Pra onde vai a tua língua, a tua ginga

A tua rima, a tua sina


Eu deito e rolo, me embolo

Em muitos colos, por outros solos,

Deslizo e sinto infinito

Em cada giro, em cada grito, eu admito que...


O mundo é tentador, rapaz

Nem tente bater asas se tem medo de voar

O mundo é tentador, rapaz

É muita vida, é muito riso, muito chão pra explorar


Música de Clara Gurjão gravada no CD Ela, Produção Independente de 2016. 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

A Hora e a Vez

 Vê quantas voltas

Tem que dar o amor

Fica com medo de querer chegar

Paga a promessa que não fez

Diz a verdade ao mentir

E não tem volta não

Volta não


Olha no espelho

E só vê o amor

Agora sabe que perdeu a paz

Jogou o laço e se prendeu

O inesperado aconteceu

A vez da caça

E a hora do caçador


Eu não sabia 

Que era pra valer

Até um dia encontrar você

A gente sabe

Que o amor não tem juízo

Mas brinca com feitiço

E quando se vê

Vai ser você...

Vai ser você

Dono do meu coração

Vai ser você!


Música de Cláudio Nucci, Zé Renato e Ronaldo Bastos gravada no disco Pelo Sim Pelo Não, de 1985, pela gravadora CBS.

A Hora e a Vez da Águia

 A construção da nova civilização no Terceiro Milênio passa por um gesto de extrema coragem. A coragem de fazer caminho onde não há caminho. Já e agora. Em momentos cruciais, da prova maior, onde vamos inspirar-nos? De que fundo vamos tirar os materiais para a nova construção?

Devemos imbuir-nos da esperança de que o caos atual prenuncia uma nova ordem, mais rica e promissora de vida para todos. Bem versejava Camões (1524-1580):


"Depois de procelosa tempestade

Soturna noite e cibilante vento

Traz a manhã serena claridade

Esperança de porto e salvamento".


Mas, para que este salvamento ocorra, precisamos ter bem clara a convicção de que este futuro necessário não se fará a partir dos princípios que organizaram o passado. Foram eles que levaram ao impasse atual. Quem ainda persiste em neles crer, labora num profundo equívoco. E desta vez não há tempo para ensaios, equívocos e erros. Pois não haverá possivelmente tempo para correções.

Em contextos assim devemos recorrer às grandes metáforas, cujo sentido emerge cristalino. Voltamos a contar a história de um educador e líder político da pequena República de Gana, na África Ocidental, James Aggrey. Ela foi objeto de nosso primeiro livro A águia e a galinha, uma metáfora da condição humana. Vamos novamente transcrevê-la, dada a sua beleza e sua densidade.

"Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/ a rainha de todos os pássaros.

Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:

- Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia.

- De fato - disse o camponês. É águia. Mas eu criei-a como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de envergadura.

- Não - retrucou o naturalista. Ela é e sempre será uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.

- Não, não - insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.

Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergue-a bem alto e desafiando-a disse:

- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!

A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.

O camponês comentou:

- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!

- Não - tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia sempre será uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.

No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no telhado da casa. Sussurrou-lhe:

- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!

Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.

O camponês sorriu e voltou à carga:

- Eu lhe havia dito, ela virou galinha!

- Não - respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.

No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.

O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:

- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!

A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do Sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte.

Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com  o típico kau-kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto. Voou... Voou... Até confundir-se com o azul do firmamento...

E terminou conclamando: 

- Irmãos e irmãs, meus compatriotas! Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. E muitos de nós ainda acham que somos efetivamente galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, companheiros e companheiras, abramos as asas e voemos. Voemos como as águias. Jamais nos contentemos com os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar". 

Antecipando uma reflexão, já podemos dizer: todos nós temos, de um jeito ou de outro, uma dimensão-galinha e uma dimensão-águia dentro de nós.

A dimensão-galinha é o sistema social imperante, o nosso arranjo existencial, a nossa vida cotidiana, os hábitos estabelecidos e o horizonte de nossas preocupações. São também as limitações, os enquadramentos e formações histórico-sociais que, quando absolutizados, se transformam em impasses, em descaminhos, em falta de perspectiva e em desesperança para as pessoas e para as coletividades.

A dimensão-águia são os sonhos, os projetos, os anelos, os ideais e as utopias que, mesmo frustrados, nunca morrem em nós porque sempre de novo ressuscitam. Eles representam a águia em nós, águia que nos ergue continuamente para o alto, para descobrir novos caminhos e direções diferentes. Para recordar-nos o chamado do novo possível.

Ai de quem deixa morrer a águia dentro de si ou permite que ela se transforme numa galinha! Ou indiferentemente aceita que uns poucos se organizem para reduzir todos a simples galinhas. Somos águias! Águias feitas para as alturas!

O momento atual significa a hora e a vez da águia. Não pede uma reflexão específica sobre a galinha. A dimensão-galinha é dominante nos tempos atuais. O que importa é resgatar a dimensão-águia, articulada com a dimensão-galinha. Esta opção pela águia é a condição de nossa sobrevivência e da inauguração promissora da nova civilização e do Terceiro Milênio. Ou então seremos condenados a continuar galinhas ou águias que foram domesticadas e desnaturadas para permanecer junto às galinhas.


Trecho do livro O Despertar da Águia, de Leonardo Boff, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 25ª Edição, 2015.