sábado, 4 de maio de 2024

Não Somente (18)

 "Nem só de pão vive o homem." - Jesus. (MATEUS, 4:4.)


Não somente agasalho que proteja o corpo, mas também o refúgio de conhecimentos superiores que fortaleçam a alma.

Não só a beleza da máscara fisionômica, mas igualmente a formosura e nobreza dos sentimentos.

Não apenas a eugenia que aprimora os músculos, mas também a educação que aperfeiçoa as maneiras.

Não somente a cirurgia que extirpa o defeito orgânico, mas igualmente o esforço próprio que anula o defeito íntimo.

Não só o domicílio confortável para a vida física, mas também a casa invisível dos princípios edificantes em que o espírito se faça útil, estimado e respeitável.

Não apenas os títulos honrosos que ilustram a personalidade transitória, mas igualmente as virtudes comprovadas, na luta objetiva, que enriqueçam a consciência eterna.

Não somente claridade para os olhos mortais, mas também luz divina para o entretenimento imperecível.

Não só aspecto agradável, mas igualmente utilidade viva.

Não apenas flores, mas também frutos.

Não somente ensino continuado, mas igualmente demonstração ativa.

Não só teoria excelente, mas também prática santificante.

Não apenas nós, igualmente os outros.

Disse o Mestre: - "Nem só de pão vive o homem."

Apliquemos o sublime conceito ao imenso campo do mundo.

Bom gosto, harmonia e dignidade na vida exterior constituem dever, mas não nos esqueçamos da pureza, da elevação e dos recursos sublimes da vida interior, com que nos dirigimos para a Eternidade.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Retrato do artista quando adulto

Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra poética: emoção, economia de palavras e agudo senso estético. Dentro dele faz muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida. Entre amigos, o vozeirão grave atropela as sílabas, como se temesse a gagueira inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca tapa a fervura d'alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de piano entre o sim e o não.

Diante do olhar canibal dos fãs, quase que Chico olha para trás, convencido de que não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro, exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e identificado, no amor ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou, fraseou e cantou.

Francisco Buarque de Holanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São Paulo, trocou a régua e o compasso, da faculdade de Arquitetura, pela toada intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia, neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação Primeira de Mangueira, como todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.

Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil. Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No Teatro Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual Chico Buarque, cantor de plateias estudantis, fez sua estreia para o grande público. Havia também baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará, um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil...

Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas Mulheres de Atenas. Rostos macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os algozes de Antônio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos...

Chico foi para a Europa, no autoexílio inevitável. Fez espetáculos em favor dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Foi para São Bernardo do Campo apoiar, com Vinícius os metalúrgicos que, liderados por Lula, teimavam em sonhar um Brasil diferente.

Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem "militonto", que pula de palco em palco acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e quando faz noite, sua voz suave, de timbre acentuado e agudo, quase feminino, traduz paixões e feridas rupturas e arroubos. Porque canta o que sentimos sem encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de sonhar acordado.

Chico é ele e suas mulheres - Marieta, Sílvia, Helena e Luiza. Quarternura. Ele é feito de detalhes - o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progressistas, expõem suas ideias e acolhem críticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim. Aos 50 anos, para ele o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim, seresteiro, poeta, e cantador, olhos nos olhos, ele se chama Mané e dobra a Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Aliás, sempre andou na contramão. Nunca esteve à toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente sofrida que quer despedir-se da dor. Larápio rastaquera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor, Chico é apenas um artista brasileiro.

Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas trilhas, sofre de pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol, jamais se "miamizou". Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.

Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

sábado, 27 de abril de 2024

Cristo e nós (17)

 " E disse-lhe o Senhor em visão: - Ananias! E ele respondeu: - Eis-me aqui, Senhor! " - (ATOS, 9:10.)

Os homens esperam por Jesus e Jesus espera igualmente dos homens.

Ninguém acredite que o mundo se redima sem almas redimidas.

O Mestre, para estender a sublimidade do seu programa salvador, pede braços humanos que o realizem e intensifiquem. Começou o apostolado, buscando o concurso de Pedro e André, formando, em seguida, uma assembleia de doze companheiros para atacar o serviço da regeneração planetária.

E, desde o primeiro dia da Boa Nova, convida, insiste e apela, junto das almas, para que se convertam em instrumentos de sua Divina Vontade, dando-nos a perceber que a redenção procede do Alto, mas não se concretizará entre as criaturas sem a colaboração ativa dos corações de boa-vontade.

Ainda mesmo quando surge, pessoalmente, buscando alguém para a sua lavoura de luz, qual aconteceu na conversão de Paulo, o Mestre não dispensa a cooperação dos servidores encarnados. Depois de visitar o doutor de Tarso, diretamente, procura Ananias, enviando-o a socorrer o novo discípulo.

Por que razão Jesus se preocupou em acompanhar o recém-convertido, assistindo-o em pessoa? É que, se a Humanidade não pode iluminar-se e progredir sem o Cristo, o Cristo não dispensa os homens na obra de soerguimento e sublimação do mundo.

"Ide e pregai."

"Eis que vos mando."

"Resplandeça a vossa luz diante dos homens."

"A Seara é realmente grande, mas poucos são os ceifeiros."

Semelhantes afirmativas do Senhor provam a importância por ele atribuída à contribuição humana.

Amemos e trabalhemos, purificando e servindo sempre.

Onde estiver um seguidor do Evangelho aí se encontra um mensageiro do Amigo Celestial para a obra incessante do bem.

Cristianismo significa Cristo e nós.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Na inútil transparência

Sem que nunca tivesse conhecido o mar, limpava peixes. Todos os dias a abundância das águas parecia depositar-se na sua bancada. Dourados encastoavam os vermelhos cor de rubi, pescadinhas amontoavam-se como pérolas, brilhavam as escamas das cavalas. E ele, qual Netuno empunhando faca, decapitava garoupas, rasgava o ventre rosado dos badejos, fazia em postas a carne sangrenta dos atuns, em filés a magreza dos linguados, e escamava, cortava, aparava, as mãos mergulhando espertas em guelras e vísceras sem que jamais espinhas lhe fizessem vingança.

Assim o longo dos anos, tendo juntado tão lenta e determinadamente o dinheiro que lhe permitiria realizar seu único desejo, o dia chegou em que, contando todos os seus guardados, ele soube que veria o mar.

Viajou, viajou. E mais longa pareceu-lhe a viagem quando, tendo finalmente o imenso azul diante de si, percebeu que desde menino caminhava para ele.

Ungido, atravessou a areia, subiu pela grande língua de pedra que avançava água adentro. E chegando na ponta mais alta, rodeada pelas ondas, sentou-se. Agora, afinal, veria a dança dos peixes entre os fluxos, o aquático mover-se de robalos e pampos e arraias e polvos e lagostas e sargos.

Mas a transparência azul não entregava presenças. Só a superfície parecia mover-se, coroada de espumas junto à pedra. Paciente, o homem esperou, vendo a luz percorrer o seu trajeto, embora nenhum luzir de escama ou ondear de corpo iluminasse aquela água.

Por fim, já escuro, fez-se de pé. Como nunca antes, pesava-lhe o coração. Vira o mar, é verdade. Mas sem peixes a habitá-lo, nem parecia-lhe o mar. Tão grande a ausência, como se em noite escura e límpida, levantando os olhos, visse o céu todo negro, igual, sem uma estrela.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

sábado, 20 de abril de 2024

Não te perturbes (16)

 "E o mandamento que era para a vida, achei eu que me era para a morte." - Paulo. (ROMANOS, 7:10.)  

Se perguntássemos ao grão de trigo que opinião alimenta acerca do moinho, naturalmente responderia que dentro dele encontra a casa de tortura em que se aflige e sofre; no entanto, é de lá que ele se ausente aprimorado para a glória do pão na subsistência do mundo.

Se indagássemos da madeira, com respeito ao serrote, informaria que nele identifica o algoz de todos os momentos, a dilacerar-lhe as entranhas; todavia, sob o patrocínio do suposto verdugo, faz-se delicada e útil para servir em atividades sempre mais nobres.

Se consultarmos a pedra, com alusão ao buril, certo esclarecerá que descobriu nele o detestável perseguidor de sua sua tranquilidade, a feri-la, desapiedado, dia e noite; entretanto, é dos golpes dele que se eleva aos tesouros terrestres, aperfeiçoada e brilhante

Assim, a alma. Assim, a luta.

Peçamos o parecer do homem, quanto à carne e pronunciará talvez impropriedades mil. Ouçamo-lo sobre a dor e registraremos velhos disparates verbais. Solicitemos-lhe que se externe com referência à dificuldade, e derramará fel e pranto.

Contudo, é imperioso reconhecer que do corpo disciplinado, do sofrimento purificador e do obstáculo asfixiante, o respeito ressurge sempre mais aformoseado, mais robusto e mais esclarecido para a imortalidade.

Não te perturbes, pois, diante da luta, e observa.

O que te parece derrota, muita vez é vitória. E o que se te afigura em favor de tua morte, é contribuição para o teu engrandecimento na vida eterna.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 13 de abril de 2024

Tesouros Libertadores

Sempre quando ocorre o pensamento em torno dos tesouros terrestres, a imaginação desborda e passa a relacionar os valores que promovem os indivíduos à situação invejável da posse, da ostentação, da grandeza material.

Gemas preciosas e metais raros, títulos de vária ordem e posições relevantes, que permitem a bajulação e o destaque, quadros de artistas brilhantes e veículos especiais, fora de linha, propriedades fabulosas, residências, iates, aviões e muitos outros valores passam a ter-lhes significado.

Nada obstante, à medida que o tempo passa, enquanto se avolumam os compromissos de negócios, recreações e jogos para novas conquistas, invariavelmente, o tédio ou o estresse dominam os possuidores, que se fazem possuídos por tudo quanto julgam ter, e dão-se conta de que se encontram aprisionados na gaiola dourada da ilusão.

Raramente descobrem-se amados, embora a multidão daqueles que os aplaudem, mais interessados na projeção do próprio ego por estarem ao seu lado, do que por qualquer outro sentimento de afeição e respeito.

Concomitantemente, experienciam necessidades profundas no âmago do ser, que as quinquilharias valiosas não conseguem atender, e descobrem-se num grande vazio existencial, de que procuram fugir mediante comportamentos desregrados, embora às escondidas até o momento do do escândalo, a fuga pela drogadição, pelos devaneios do sexo ultrajante, pelas extravagâncias que chamam atenção e promovem na mídia, sem lograrem acalmar as ansiedades do sentimento nem as inquietações mentais.

Invejados por grande número de pessoas atormentadas, sofrem sorrateiras competições e experimentam os dardos venenosos da inveja que predomina em a sociedade contemporânea, bem vestidos e preocupados sempre com a aparência, recurso com que disfarçam as tristezas, sem que os tormentos interiores encontrem solução.

A gaiola dourada onde se acolhem não deixa de ser uma prisão atormentante que lhes impede a movimentação, a liberdade, a harmonia doméstica.

Cercados de guarda-costas, de funcionários especializados, não fruem o prazer da convivência familiar, porque se encontram sempre sob os holofotes da observação de todos, sem intimidade doméstica e, muito menos consigo próprios.

Essa complicada situação chama-se felicidade terrena, misturada com as bebidas finas e anestesiantes, responsáveis por futuras enfermidades irreversíveis, a que se empresta muito significado nos relacionamentos no mundo.

O interesse que muitos demonstram em participar do seu círculo de amizade tem como polo de atração usufruir das facilidades e das migalhas que excedem na mesa do seu temporário poder.

Quando adoecem e envelhecem são atendidos pelos melhores facultativos que encontram, e, apesar disso, nem sempre têm solucionados os problemas que os  aturdem, os transtornos em que se crucificam, cercados de muitos auxiliares e em tremenda solidão.

Raramente acreditam com certeza na imortalidade da alma, veem passar os anos turbulentos e as oportunidades brilhantes, avizinhar-se a morte sem esperança de perpetuidade na glória que desfrutaram e mais angustiados passam os últimos momentos existenciais dominados pelo medo da fatalidade orgânica - a desencarnação.

Aguardando-os, no entanto, além do pórtico da matéria está a vida exuberante que não souberam construir, a fim de fruí-la nessa nova etapa.

São afortunados de coisas nenhumas, mordomos que se supuseram donos e perderam-se na névoa da ilusão.

Não são esses recursos execráveis, mas sim o uso que deles se faz e a ilusão que proporcionam que merecem exame acurado.

É claro que existem exceções representadas em verdadeiros missionários do Bem, que multiplicam esses tesouros terrestres em bênçãos de progresso, de educação, de erradicação da miséria.

Esses tesouros ocupam espaço, sobrecarregam e ficam no mundo sob a direção de outras mentes também ávidas de poder.

Há outros tesouros que se constituem da cultura, do amor, dos sentimentos bem-conduzidos, com ou sem os recursos da posse temporal, que não ocupam espaço e sempre acompanham os seus possuidores durante o trajeto carnal e após o decesso tumular.

Invariavelmente, cuida-se de acumular recursos que proporcionam os prazeres sensoriais, olvidando-se aqueles transcendentes que preenchem os vazios da alma, as ansiedades do coração e os tormentos mentais.

Nesse sentido, Jesus veio enriquecer a Humanidade com as pérolas raras do sermão da montanha, que deveriam ser as mais ambicionadas para a completude na existência corporal.

As Suas parábolas são gemas preciosas de luz inapagável, que iluminam interiormente e tornam-se estrelas sublimes na escuridão do percurso carnal.

Os seus feitos são poderosos recursos que estão ao alcance de todos aqueles que tenham a coragem de segui-lO, insculpindo as Suas lições no cerne do ser.

Toda a Sua jornada foi uma incomum distribuição de alegrias e de esperanças, em demonstrações de que o sentido real da vida é amar, desde que sem o amor não existe vida.

O mais poderoso tesouro que se conhece é o amor por libertar o Espírito da ignorância e do primarismo, que possui a força de mover o mundo, por conseguir  transformar os metais grosseiros de que se constitui, em decorrência do processo evolutivo, em maleáveis sentimentos de abnegação e de sacrifício.

Os tesouros libertadores estão diante de todos, aguardando ser aplicados nos relacionamentos, utilizados na autotransformação, e se apresentam em incontáveis maneiras de os viver e possuir.


Texto retirado do livro Tesouros Libertadores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014.

Fraternidade (15)

                      "Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros."                          - Jesus. (JOÃO, 13:35)


Desde a vitória de Constantino, que descerrou ao mundo cristão as portas da hegemonia política, temos ensaiado diversas experiências para demonstrar na Terra a nossa condição de discípulos de Jesus.

Organizamos concílios célebres, formulando atrevidas conclusões acerca da natureza de Deus e da Alma, do Universo e da Vida.

Incentivamos guerras arrasadoras que implantaram a miséria e o terror naqueles que não podiam crer pelo diapasão da nossa fé.

Disputamos o sepulcro do Divino Mestre, brandindo a espada mortífera e ateando o fogo devorador.

Criamos comendas e cargos religiosos, distribuindo o veneno e manejando o punhal.

Acendemos fogueiras e erigimos cadafalsos, inventamos suplícios e construímos prisões para quantos discordassem dos nossos pontos de vista.

Estimulamos insurreições que operaram o embate de irmãos contra irmãos, em nome do Senhor que testemunhou na cruz o devotamento à Humanidade inteira.

Edificamos palácios e basílicas, famosos pela suntuosidade e beleza, pretendendo reverenciar-lhe a memória, esquecidos de que ele, em verdade, não possuía uma pedra onde repousar a cabeça.

E, ainda hoje, alimentamos a separação e a discórdia, erguendo trincheiras de incompreensão e animosidade, uns contra os outros, nos variados setores da interpretação.

Entretanto, a palavra do Cristo é insofismável.

Não nos faremos titulares da Boa Nova simplesmente através das atitudes exteriores...

Precisamos, sim, da cultura que aprimora a inteligência, da justiça que sustenta a ordem, do progresso material que enriquece o trabalho e de assembleias que favoreçam o estudo; no entanto, toda a movimentação humana, sem a luz do amor, pode perder-se nas sombras...

Seremos admitidos ao aprendizado do Evangelho, cultivando o Reino de Deus que começa na vida íntima.

Estendamos, assim, a fraternidade pura e simples, amparando-nos mutuamente... Fraternidade que trabalha e ajuda, compreende e perdoa, entre a humildade e o serviço que asseguram a vitória do bem. Atendamo-la, onde estivermos, recordando a palavra do Senhor que afirmou com clareza e segurança: - "Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros."


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 7 de abril de 2024

Visão

No centro do diz cinzentos, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio - foi então que aconteceu. Eu vinha sem raiva nem desejo - no fundo do coração as feridas mal cicatrizadas, e a esperança humilde como ave doméstica - eu vinha como um homem que vem e vai e já teve noites de tormenta e madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com toda a alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos pobres - eu vinha como um homem que faz parte da sua cidade, e é menos um homem que um transeunte, e me sentia como aquele que se vê nos cartões-postais, de longe, dobrando uma esquina - eu vinha como um elemento altamente banal, de paletó e gravata integrado no horário coletivo, acertando o relógio do meu pulso pelo grande relógio da estrada de ferro central do meu país, acertando a batida do meu pulso pelo ritmo da faina quotidiana - eu vinha, portanto, extremamente sem importância, mas tendo em mim a força da conformação, da resistência e da inércia que faz com que um minuto depois das grandes revoluções e catástrofes o sapateiro volte a sentar na sua banca e o linotipista na sua máquina, e a cidade apareça estranhamente normal - eu vinha como um homem de quarenta anos que dispõe de regular saúde, e está com suas letras nos bancos regularmente reformadas e seus negócios sentimentais aplacados de maneira cordial e se sente bem disposto para as tarefas da rotina, e com pequenas reservas para enfrentar eventualidades não muito excêntricas - e que cessou de fazer planos gratuitos para a vida, mas ainda não começou a levar em conta a faina da própria morte - assim eu vinha, como quem ama as mulheres de seu país, as comidas de sua infância e as toalhas do seu lar - quando aconteceu. Não foi algo que tivesse qualquer consequência, ou implicasse novo programa de atividades; nem uma revelação do Alto nem uma demonstração súbita e cruel da miséria de nossa condição, como às vezes já tive.

Foi apenas um instante antes de se abrir um sinal numa esquina, dentro de um grande carro negro, uma figura de mulher que nesse instante me fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a boca fresca e viva; que depois ainda moveu de leve os lábios como se fosse dizer alguma coisa - e se perdeu, a um arranco do carro, na confusão do tráfego da rua estreita e rápida. Mas  foi como se, preso na penumbra da mesma cela eternamente, eu visse uma parede se abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de todos os sonhos de luz. Com vento agitando árvores e derrubando flores, e o mar cantando ao sol.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.

sábado, 6 de abril de 2024

Indagação Oportuna (14)

 "Disse-lhes: - Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes?" - (Atos, 19:2)


A pergunta apostólica vibra ainda em todas as direções, com a maior oportunidade, nos círculos do Cristianismo.

Em toda parte, há pessoas que começam a crer e que já creem, nas mais variadas situações.

Aqui, alguém aceita aparentemente o Evangelho para ser agradável às relações sociais.

Ali, um indagador procura o campo da fé tentando acertar problemas intelectuais que considera importantes.

Além, um enfermo recebe o socorro da caridade e se declara seguidor da Boa Nova, guiando-se pelas impressões de alívio físico.

Amanhã, todavia ressurgem tão insatisfeitos e tão desesperados quanto antes.

Nos arraiais do Espiritismo, tais fenômenos são frequentes.

Encontramos grande número de companheiros que se afirmam pessoas de fé, por haverem identificado a sobrevivência de algum parente desencarnado, porque se livraram de alguma dor de cabeça ou porque obtiveram solução para certos problemas da luta material; contudo, amanhã prosseguem duvidando de amigos espirituais e de médiuns respeitáveis, acolhem novas enfermidades ou se perdem através de novos labirintos do aprendizado humano.

A interrogação de Paulo continua cheia de atualidade.

Que espécie de espírito recebemos no ato de crer na orientação de Jesus? O da fascinação? O da indolência? O da pesquisa inútil? O da reprovação sistemática às experiências dos outros?

Se não abrigamos o espírito de santificação que nos melhore e nos renove para o Cristo, a nossa fé representa frágil candeia, suscetível de apagar-se ao primeiro golpe de vento.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 2 de abril de 2024

O Milagre

Naquela pequena cidade as romarias começaram quando ocorreu o boato do milagre. É sempre assim. Começa com um simples boato, mas logo o povo - sofredor, coitadinho, e pronto a acreditar em algo capaz de minorar sua perene chateação - passa a torcer para que o boato se transforme numa realidade, para poder fazer do milagre a sua esperança.

Dizia-se que ali vivera um vigário muito piedoso, homem bom, tranquilo, amigo da gente simples, que fora em vida um misto de sacerdote, conselheiro, médico, financiador dos necessitados e até advogado dos pobres, nas suas eternas questões com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na expressão do termo: fizera de sua vida um apostolado.

Um dia o vigário morreu. Ficou a saudade morando com a gente do lugar. E era em sinal de reconhecimento que conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara. Era um quartinho modesto, atrás da venda. Um catre ( porque em histórias assim a cama da personagem chama-se catre), uma cadeira, um armário tosco, alguns livros. O quarto do vigário ficou sendo uma espécie de monumento à sua memória, já que a prefeitura local não tinha verba para erguer sua estátua.

E foi quando um dia... ou melhor, uma noite, deu-se o milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma vela para ler seu breviário, apareceu uma vela acesa.

- Milagre!!! - quiseram todos.

E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o filho doente, logo se ajoelhou do lado de fora do quarto, junto à janela, e pediu pela criança. Ao chegar em casa, depois do pedido - conta-se - a senhora encontrou o filho brincando fagueiro.

- Milagre!!! - repetiram todos. E o grito de "Milagre!!!" reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo começaram as romarias.

Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto é canto e ficava ali plantado, junto à janela, aguardando a luz da vela. Outros padres, coronéis, até deputados, para oficializar o milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela... a vela se acendia e começavam as orações. Ricos e pobres, doentes e saudáveis, homens e mulheres, civis e militares caíam de joelhos, pedindo.

Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os casos de doenças curadas, de heranças conseguidas, de triunfos os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos passaram também as romarias. Foi diminuindo a fama do milagre e ficou, apenas, mais folclore na lembrança do povo.

O lugarejo não mudou nada. Continua igualzinho como era, e ainda existe, atrás da venda, o quarto que fora do padre. Passamos outro dia por lá. Entramos na venda e pedimos ao português, seu dono, que vive há muitos anos atrás do balcão, a roubar no peso, que nos servisse uma cerveja. O português, então, berrou para um pretinho que arrumava latas de goiabada numa prateleira:

- Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês!

Achamos o nome engraçado. Qual o padrinho que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o português explicou que não, que o nome do pretinho era Sebastião. Milagre era apelido.

- E por quê? - perguntamos.

- Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do padre.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.