quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A Importância dos Sonhos (trechos)

O homem utiliza a palavra escrita ou falada para expressar o que deseja transmitir. Sua linguagem é cheia de símbolos, mas ele também, muitas vezes, faz uso de sinais ou imagens não estritamente descritivos.

O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós. O que simbolizamos exatamente ainda é motivo de controversas suposições.

Uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto "inconsciente" mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão. A imagem de uma roda pode levar nossos pensamentos ao conceito de um sol "divino" mas, neste ponto, nossa razão vai confessar a sua incompetência: o home é incapaz de descrever um ser "divino". Quando, com toda a nossa limitação intelectual, chamamos alguma coisa de "divina", estamos dando-lhe apenas um nome, que poderá estar baseado em uma crença, mas nunca em uma evidência concreta.

Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente. Esta é uma das razões por que todas as religiões empregam uma linguagem simbólica e se exprimem através de imagens. Mas este uso consciente que fazemos de símbolos é apenas um aspecto de um fato psicológico de grande importância: o homem também produz símbolos, inconsciente e  espontaneamente, na forma de sonhos.

O homem, como podemos perceber ao refletirmos um instante, nunca percebe plenamente uma coisa ou a entende por completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distância pode ver, quão acuradamente consegue ouvir, o quanto lhe significa aquilo em que toca e o que prova, tudo isso depende do número e da capacidade dos seus sentidos. Os sentidos do homem limitam a percepção que este tem do mundo à sua volta. Utilizando instrumentos científicos pode, em parte, compensar a deficiência dos sentidos. Consegue, por exemplo, alongar o alcance da sua visão através do binóculo ou apurar a audição por meio de amplificadores elétricos. Mas a mais elaborada aparelhagem nada pode fazer além de trazer ao seu âmbito visual objetos ou muito distantes ou pequenos e tornar mais audíveis sons fracos. Não importa que instrumentos ele empregue; em um determinado momento há de chegar a um limite de evidências e de convicções que o conhecimento consciente não pode transpor.

Além disso, há aspectos inconscientes na nossa percepção da realidade. O primeiro deles é o fato de que, mesmo quando os nossos sentidos reagem a fenômenos reais, a sensações visuais e auditivas, tudo isto, de certo modo, é transposto da esfera da realidade para a da mente. Dentro da mente estes fenômenos tornam-se acontecimentos psíquicos cuja natureza extrema nos é desconhecida (pois a psique não pode conhecer sua própria substância). Assim, toda experiência contém um número indefinido de fatores desconhecidos, sem considerar o fato de que toda realidade concreta sempre tem alguns aspectos que ignoramos desde que não conhecemos a natureza extrema da matéria em si.

Há, ainda certos acontecimentos de que não tomamos consciência. Permanecem, por assim dizer, abaixo do limiar da consciência. Aconteceram, mas foram absorvidos subliminarmente, sem nosso conhecimento consciente. Só podemos percebê-los nalgum momento de intuição ou por um processo de intensa reflexão que nos leve à subsequente realização de que devem ter acontecido. E apesar de termos ignorado originalmente a sua importância emocional e vital, mais tarde brotam do inconsciente como uma espécie de segundo pensamento. Este segundo pensamento pode aparecer, por exemplo, na forma de um sonho. Geralmente, o aspecto inconsciente de um acontecimento nos é revelado  através de sonhos, onde se manifesta não como um pensamento racional, mas como uma imagem simbólica. Do ponto de vista histórico, foi o estudo dos sonhos que permitiu, inicialmente, aos psicólogos investigarem o aspecto inconsciente de ocorrências psíquicas conscientes.

Fundamentos nestas observações é que os psicólogos admitem a existência de uma psique inconsciente apesar de muitos cientistas e filósofos negarem-lhe a existência. Argumentaram ingenuamente que tal pressuposição implica a existência de dois "sujeitos" ou (em linguagem comum) de duas personalidades dentro do mesmo indivíduo. E estão inteiramente certos: é exatamente isto o que ela implica. É uma das maldições do homem moderno esta divisão de personalidades. Não é, de forma alguma, um sintoma patológico: é um fato normal, que pode ser observado em qualquer época e em quaisquer lugares.

O que chamamos psique não pode, de modo algum, ser identificado com a nossa consciência e o seu conteúdo. Quem quer que negue a existência do inconsciente está, de fato, admitindo que hoje em dia temos um conhecimento total da psique. É uma suposição evidentemente tão falsa quanto a pretensão de que sabemos tudo a respeito do universo físico. Nossa psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir nem a psique nem a natureza.

A consciência é uma aquisição muito recente da natureza e ainda está num estágio "experimental". É frágil, sujeita a ameaças de perigos específicos e facilmente danificável. Como já observaram os antropólogos, um dos acidentes mentais mais comuns entre os povos primitivos é o que eles chamam "a perda da alma" - que significa, como bem indica o nome, uma ruptura (ou, mais tecnicamente, uma associação) da consciência.

Os fatos, com os quais nos familiarizamos através dos estudos dos antropólogos, não são tão irrelevantes para a nossa civilização como parecem. Também nós podemos sofrer uma dissociação e perder nossa identidade. Podemos ser dominados e perturbados por nossos humores, ou tornamo-nos insensatos e incapazes de recordar fatos importantes que nos dizem respeito e a outras pessoas, provocando a pergunta: "Que diabo se passa com você?". Pretendemos ser capazes de "nos controlarmos", mas o controle de si mesmo é virtude das mais raras e extraordinárias. Podemos ter a ilusão de que nos controlamos, mas um amigo facilmente poderá dizer-nos coisas a nosso respeito de que não tínhamos a menor consciência.

Não resta dúvida de que, mesmo no que chamamos "um alto nível de civilização", a consciência humana ainda não alcançou um grau razoável de continuidade. Ela ainda é vulnerável e suscetível à fragmentação. Esta capacidade que temos de isolar parte de nossa mente é, na verdade, uma característica valiosa. Permite que nos concentremos em uma coisa de cada vez, excluindo tudo o mais que também solicita a nossa atenção. Mas existe uma diferença radical entre uma decisão consciente, que separa e suprime temporariamente uma parte da nossa psique, e uma situação na qual isto acontece de maneira espontânea, sem o nosso conhecimento ou consentimento e mesmo contra as nossas intenções. O primeiro processo é uma conquista do ser civilizado, o segundo é aquela "perda da alma" dos primitivos e pode ser causa patológica de uma neurose.

Portanto, mesmo nos nossos dias, a unidade da consciência ainda é algo precário e que pode ser facilmente rompido. A faculdade de controlar emoções que, de um certo ponto de vista, é muito vantajosa, seria, por outro lado, uma qualidade bastante discutível já que despoja o relacionamento humano de toda a sua variedade, de todo o colorido e de todo o calor.

É sob esta perspectiva que devemos examinar a importância dos sonhos - fantasias inconscientes, evasivas, precárias, vagas e incertas do nosso inconsciente. Para melhor explicar meu ponto de vista gostaria de contar como ele se foi desenvolvendo com o passar dos anos e como cheguei à conclusão de que os sonhos são o mais fecundo e acessível campo de exploração para quem deseje investigar a faculdade de simbolização do homem.

Os sonhos têm uma significação própria, mesmo quando provocados por alguma perturbação emocional em que estejam também envolvidos os complexos habituais do indivíduo. (Os complexos habituais do indivíduo são pontos sensíveis da psique que reagem mais rapidamente aos estímulos ou perturbações externas.) É por isso que a livre associação pode levar de um sonho qualquer aos pensamentos secretos mais críticos.

Nesta altura ocorreu-me, no entanto, que se até ali eu estivera certo, podia-se razoavelmente deduzir que os sonhos têm uma função própria, mais especial e significativa. Muitas vezes os sonhos têm uma estrutura bem definida, com um sentido evidente indicando alguma ideia ou intenção subjacente - apesar de estas últimas não serem imediatamente inteligíveis. Comece, pois, a considerar se não deveríamos prestar mais atenção à forma e ao conteúdo do sonho em vez de nos deixarmos conduzir pela livre associação de uma série de ideias para então chegar aos complexos, que poderiam ser facilmente  atingidos também por outros meios.

Este novo pensamento foi decisivo para o desenvolvimento da minha psicologia. A partir deste momento desisti, gradualmente, de seguir as associações que se afastassem muito do texto de um sonho. Preferi, antes, concentrar-me nas associações com o próprio sonho, convencido de que o sonho expressaria o que de específico o inconsciente estivesse tentando dizer.

Esta mudança de atitude acarretou uma consequente mudança nos meus métodos, uma nova técnica que levava em conta todos os vários e amplos aspectos do sonho. Uma história narrada pelo nosso espírito consciente tem início, meio e fim; tal não acontece com o sonho. Suas dimensões de espaço e tempo são diferentes. Para entendê-lo é necessário examiná-lo sob todos os seus aspectos - exatamente como quando tomamos um objetivo desconhecido nas mãos e o viramos e reviramos até nos familiarizarmos com cada detalhe.

Para conhecer e entender a organização psíquica da personalidade global de uma pessoa é importante avaliar quão relevante é a função de seus sonhos e imagens simbólicas.

A maioria das pessoas sabe, por exemplo, que o ato sexual pode ser simbolizado por uma imensa variedade de imagens (ou representado sob forma alegórica). Cada uma destas imagens pode, por um processo associativo, levar à ideia da relação sexual e aos complexos específicos que incluem no comportamento sexual de um indivíduo. Mas, da mesma maneira, podemos  desenterrar estes complexos graças a um devaneio em torno de um grupo de letras indecifráveis do alfabeto russo. Fui assim, levado a admitir que um sonho pode conter outra mensagem além de uma alegoria sexual, e que isto acontece por motivos determinados. Para ilustrar esta observação:

Um homem sonha que enfiou uma chave numa fechadura, ou que está empunhando um pesado pedaço de pau, ou que está forçando uma porta com aríete. Cada um destes sonhos pode ser considerado uma alegoria, um símbolo sexual. Mas o fato de o inconsciente ter escolhido, por vontade própria, uma destas imagens específicas - a chave, o pau, ou o aríete - é também de maior significação. A verdadeira tarefa é compreender por que a chave foi escolhida em lugar do pau, ou por que o pau em lugar do aríete. E vamos algumas vezes descobrir que não é ato sexual que ali está representado mas algum aspecto psicológico inteiramente diverso.

Na Idade Média, muito antes de os filósofos terem demonstrado que trazemos em nós, devido a nossa estrutura glandular, ambos os elementos - o masculino e o feminino -,dizia-se que "todo homem traz dentro de si uma mulher". É a este elemento feminino, que há em todo homem, que chamei "anima". Este aspecto "feminino" é, essencialmente, uma certa maneira, inferior, que tem o homem de se relacionar com o seu ambiente e sobretudo com as mulheres, e que ele esconde tanto das outras pessoas quanto dele mesmo. Em outras palavras, apesar de a personalidade visível do indivíduo parecer normal, ele poderá estar escondendo dos outros - e mesmo dele próprio - a deplorável condição da sua "mulher interior".

Fácil compreender por que quem sonha tem tendência para ignorar e até rejeitar a mensagem do seu sonho. A consciência resiste, naturalmente, a tudo que é inconsciente e desconhecido. Já assinalei a existência, entre os povos primitivos, daquilo a que os antropólogos chamam "misoneísmo", um medo profundo e supersticioso ao novo. Ante acontecimentos desagradáveis, os primitivos têm as mesmas reações do animal selvagem. Mas o homem "civilizado" reage a ideias novas da mesma maneira, erguendo barreiras psicológicas que o protegem do choque trazido pela inovação. Pode-se facilmente observar este fato na reação do indivíduo ao seu próprio sonho, quando ele é obrigado a admitir algum pensamento inesperado. Muitos pioneiros da filosofia, da ciência e mesmo da literatura têm sido vítimas deste conservadorismo inato dos seus contemporâneos. A psicologia é uma das ciências mais novas e, por tratar do funcionamento do inconsciente, encontrou inevitavelmente o misoneísmo na sua forma mais extremada.


Retirado de O Homem e seus Símbolos, concepção e organização de Carl Gustav Jung, Edição Especial Brasileira, 11ª Edição, Editora Nova Fronteira, tradução de Maria Lúcia Pinho, Rio de Janeiro, 1964.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Medo e Coragem

Na tradição afro-brasileira do candomblé, Oxalá é o deus da paz. Alegre, sonhador e calmo, o mais criativo dos deuses fazia uma certa confusão ao criar. Conta-se que tudo o que Oxalá ia encontrando pelos caminhos do mundo o encantava tanto que ele parava para aproveitar de sua beleza. Assim, quando viu as árvores, deitou-se à sombra delas e passou um longo tempo adormecido. Tomou a seiva de uma árvore, e seu sabor era tão doce que o embriagou. Quando se deparou com os rios, demorou mais tempo ainda banhando-se em suas águas. Resultado: o mundo nunca ficava pronto.

Os outros deuses foram se irritando com o belo e tranquilo Oxalá. Então Oduduá, a deusa da terra, ofereceu-se para apressar a criação do mundo. E concluiu tudo antes que Oxalá, que repousava sob uma árvore, despertasse.

Ao acordar de seus sonhos e ver o mundo criado, o deus da paz se enfureceu. E ninguém pode ser mais terrível, vingativo e destrutivo do que ele. Por quê? Porque Oxalá não consegue controlar a raiva, o ódio, sentimentos estranhos à sua natureza.

É por isso que Oxalá apenas encontra equilíbrio quando se aproxima de Ogum, o deus da guerra. Ogum é a personificação da velocidade, do movimento e da inquietude. É ele quem comanda as mudanças, abre os caminhos, controla o próprio medo transformando-o na mais pura coragem. Pode parecer estranho, mas Ogum, o deus da guerra, só luta para conquistar a paz. Ele sabe que sua principal missão é ensinar aos homens que a felicidade existe. Assim, é Oxalá quem ajuda o amigo Ogum a descansar, rir, divertir-se, confiar na vida e respirar aliviado. Em troca, o deus da guerra ajuda o deus da paz a dominar a própria ira, ter coragem, ir em frente, achar seus caminhos em vez de perder-se na beleza do sonhos.


Trecho do prefácio de Heloisa Pietro retirado do livro de contos organizado por ela intitulado O Livro dos Medos, Companhia das Letrinhas, 2ª Edição, 2007, São Paulo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

11. Há Línguas melhores que outras

Cada situação de comunicação exige a sua variedade do idioma. Apesar disso, há a crença de que há variedades melhores que outras. A razão para que certas variantes de uma Língua tenham mais prestígio é social, não tem relação com motivações linguísticas. Os grupos com maior domínio social impõem os seus valores e a sua forma de falar, defendendo que esta é a mais correta.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

10. Pessoas cultas usam a norma culta

Qualquer manifestação linguística vem marcada pelo fenômeno da variação. Curiosamente, persiste entre nós a ideia de que a variedade padrão, a norma culta, escapa a essa heterogeneidade. Não é o que as pesquisas têm demonstrado. Desde os anos 1970, maiormente depois de 1978, os pesquisadores do Projeto de Estudo da Norma Urbana Linguística Culta passaram a constatar que a norma do Português Brasileiro é heterogênea. Depois disso, o Projeto de Gramática do Português Culto Falado no Brasil procedeu a uma descrição minuciosa da norma, com base nos materiais levantados pelo projeto anterior, identificando diferenças por toda parte. Elas não impedem a intercompreensão, mas existem.

Impossível resumir aqui a enorme bibliografia gerada pelos dois projetos. Mesmo assim, peço a atenção do leitor para o que Dinah Callou, João Antônio de Moraes e Yonne Leite descobriram, no capítulo intitulado "Mapeamento dos processos", publicado em Maria Bernardete M. Abaurre (Org.) A Construção Fonológica da Palavra (Contexto, 2013), que é o volume VII da série Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Eles observaram seis processos: palatalização do /s/ em final de sílaba (meninos ou meninosh?), fricativização e posteriorização do /r/ antes e depois de vogal (comer ou comeR?), palatalização do /t/ e do /d/ diante de /i/ (dia ou djia?), vocalização do /l/ em final de sílaba (anil ou aniu), nasalação da vogal de consoante nasal (bànana ou bãnana?), elevação da vogal média pretônica [e] à [i] e [o] à [u] (pequeno ou piqueno? moleque ou muleque?).


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 9 de novembro de 2024

9. O Português europeu é o mais correto

Mito de origem colonialista. Torna fato que o Português no Brasil é corrompido, e a variedade original - portanto, de referência - é a de Portugal. Como constata Marcos Bagno em Preconceito Linguístico (Parábola, 1999: 23 - 28), há diferenças de uso de país a país - e diferença não é deficiência ou inferioridade. O efeito prático dessa ideia é fazer o brasileiro sentir-se em dívida ou desvantagem para com a tradição gramatical.


Texto de Sírio Possenti, professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

8. O padrão gramatical é universal

A maioria dos tratados de gramática surgiu por uma necessidade de padronização da linguagem. Com as variadas regiões geográficas e os seus sotaques, seria complicado para as pessoas, por exemplo, escreverem do jeito que cada um realmente fala. A gramática padroniza a Língua para que (ao menos) por meio da escrita possamos nos entender. O problema é que as pessoas ainda consideram a gramática dos tratados normativos como a única forma de linguagem em qualquer situação de comunicação em que se insiram. Mas cada ocasião e ambiente exige um registro gramatical.


Texto de Sírio Possenti, professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

7. Há línguas perfeitas

Um grande mito em relação às Línguas é que, em algum momento, teria havido Línguas perfeitas. Sua tradução quase diária é que teria havido, para cada Língua, uma época em que ela foi melhor, em que se falava mais corretamente. A forma mais comum deste mito (ou mentira), no dia a dia, é a tese da decadência da Língua (das Línguas). Os que defendem esta tese não sabem (ou fingem não saber) que ela é brandida desde sempre. Uma versão é o mito de babel, mas a tese repetida em Roma, Alexandria, na França, Inglaterra, é repetida nos EUA e, claro, no Brasil. Curiosamente, em cada época essa tese é defendida na Língua da época...


Texto de Sírio Possenti, professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

Somente Assim (45)

 "Nisto é glorificado meu Pai, que deis muito fruto; e assim sereis meus discípulos." - Jesus. (JOÃO, 15:8)


Em nossas aflições, o Pai é invocado.

Nas alegrias, é adorado.

Na noite tempestuosa, é sempre esperado com ânsia.

No dia festivo, é reverenciado solenemente.

Louvado pelos filhos reconhecidos e olvidado pelo ingratos, o Pai dá sempre, espalhando as bênçãos de sua bondade infinita entre bons e maus, justos e injustos.

Ensina o verme a rastejar, o arbusto a desenvolver-se e o homem a raciocinar.

Ninguém duvide, porém, quanto à expectativa do Supremo Senhor a nosso respeito. De existência em existência, ajuda-nos a crescer e a servi-Lo, para que, um dia, nos integremos, vitoriosos, em seu divino amor e possamos glorificá-Lo.

Nunca chegaremos, contudo, a semelhante condição, simplesmente através dos mil modos de coloração brilhante dos nossos sentimentos e raciocínios.

Nossos ideais superiores são imprescindíveis, e no fundo assemelham-se às flores mais belas e perfumosas da árvore. Nossa cultura é, sem dúvida indispensável, e, em essência, constitui a robustez do tronco respeitável. Nossas aspirações elevadas são preciosas e necessárias, e representam as folhas vivas e promissoras.

Todos esses requisitos são imperativos da colheita.

Assim também ocorrer nos domínios da alma.

Somente é possível glorificar o Pai quando nos abrimos aos seus decretos de amor universal, produzindo para o bem eterno.

Por isso mesmo, o Mestre foi claro em sua afirmação.

Que nossa atividade, dentro da vida, produza muita fruto de paz e sabedoria, amor e esperança, fé e alegria, justiça e misericórdia, em trabalho pessoal digno e constante, porquanto, somente assim o Pai será por nós glorificado e só condição seremos discípulos do Mestre Crucificado e Redivivo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Cecília e a Crônica

Embora só tardiamente Cecília Meireles viesse a publicar em livro as primeiras crônicas, era longa sua prática do gênero. Por mais de trinta anos, com breves intervalos, escreveu prosa circunstancial, de glosa ao cotidiano, com tal versatilidade, que poucos de nossos escritores poderiam mostra, no gênero, igual desembaraço. Do jornalismo, que exerceu, pelos anos de 30 e 40, na constância do dia a dia, lhe adveio a tarimba necessária à pronta manipulação do assunto, a habilidade no recorte do insólito, o registro do grotesco ou a graça da matização irônica. Primeiro no Diário de Notícias, depois em A Nação e A Manhã, sua pena se afina pelo exercício permanente. A "Página de Educação" lhe recolhe, no primeiro jornal, a coluna cotidiana - "Comentário" -, onde, no entusiasmo pelas novas ideias pedagógicas, treina o estilo polêmico, defendendo a influência da arte na educação, pregando a laicização da escola, criticando indecisões da política do governo ou ironizando a incapacidade de ministros relutantes. E entre uma e outra invertida, entre alusões zombeteiras, o comentário às gentes, às coisas, às datas, numa exploração oportuna da matéria cotidiana.

A partir de 1950, embora sem a obrigatoriedade do dia a dia que caracterizara seu trabalho naqueles jornais, é constante a presença de Cecília Meireles na imprensa brasileira. No Rio de Janeiro, é ainda o Diário de Notícias que lhe publica os comentários de viagens pelo mundo afora; em São Paulo, Minas Gerais e Sul do país, distribuem-se suas crônicas por numerosos periódicos, numa atividade que surpreende a quantos só venham a conhecer a Cecília cronista num primeiro livro tardio e publicado em coautoria. Por curiosa singularidade, as crônicas de Quadrante viriam não do jornal, em que Cecília iniciara um processo de comunicação mais ampla, mas do rádio, onde o processo termina.

Da colaboração escrita para programas radiofônicos nas emissoras Rádio Ministério da Educação e Cultura e Rádio Roquette Pinto nos primeiros anos de 60, se formou a bibliografia de Cecília Meireles como cronista: Quadrante (1962), Quadrante II, Escolha o seu sonho (1964), Vozes da cidade (1965) e Inéditos (1968). Os três primeiros títulos saíram ainda em vida da autora e a ela se deve a seleção das peças que publicou; os dois últimos são obras factícias, em parte (Vozes da cidade, pelo que toca a Cecília) e no todo (Inéditos, que, como os dois que o antecedem, inclui uma ou outra peça já publicada). O primeiro, o segundo e o quarto livros reúnem crônicas de diversos autores e reproduzem, na sua titulação, o nome dos programas radiofônicos em que se leram os respectivos textos. Só o título de Escolha o seu sonho foi dado pela autora.

A conveniência de que se reeditassem as crônicas de Inéditos favoreceu a reformulação do livro. Assim, juntaram-se-lhe os escritos incluídos em obras coletivas e desfez-se a imprecisão do título substituindo-se ele por Ilusões do Mundo, que, provindo de uma das crônicas, atende ao clima geral da obra e à concepção ceciliana do mundo como sonho, matéria de ilusão.

Registro do mundo circundante, a crônica de Cecília Meireles é também uma projeção de sua alma no universo das coisas. Alimenta-se da referencialidade, das coisas concretas, de fatos e situações que envolvem o ser humano em seu comércio diário, mas matiza subjetivamente tudo isso. No comentário da vida e suas situações risíveis ou pungentes, de entusiasmo ou revolta, tem sempre Cecília Meireles uma ironia sem travo ou uma ternura sem excesso, mas que sentimos morna e brotada de uma aceitação maior do mundo e seus desconcertos e do pobre ser humano que se esforça nos labirintos da vida.


Nota editorial escrita por Darcy Damasceno e retirada do livro Ilusões do Mundo, de Cecília Meireles, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1976.

domingo, 3 de novembro de 2024

Conhecem?

Eu não sei que mania se meteu na nossa cabeça moderna de que todas as dificuldades da sociedade se podem obviar mediante a promulgação de um regulamento executado mais ou menos pela coação autoritária de representantes do governo.

Nesse caso de criados, o fato é por demais eloquente e pernicioso.

Por que regulamentar-se o exercício da profissão de criado? Por que obrigá-los a uma inscrição dolorosa nos registros oficiais, para tornar ainda mais dolorosa a sua situação dolorosa?

Por quê?

Porque pode acontecer que sejam metidos nas casas dos ricos ladrões ou ladras; porque pode acontecer que o criado, um dado dia, não queira mais fazer o serviço e se vá embora.

Não há outras justificativas senão estas, e são bem tolas.

Os criados sempre fizeram parte da família: é concepção e sentimento que passaram de Roma para a nobreza feudal e as suas relações com os patrões só podem ser reguladas entre eles.

A Revolução aniquilando a organização da família feudal, trouxe à tona essa questão da famulagem; mas mesmo assim, ela não rompeu o quadro familiar de modo a impedir que os seus chefes regulem a admissão de estranhos no lar.

A obrigação do dono ou dona de casa que procura um criado, que o põe debaixo do seu teto, é saber quem ele é; o resto não passa de opressão do governo sobre os humildes, para servir à comodidade burguesa.

Querem fazer das nossas vidas, dos indivíduos, das almas, uma gaveta de fichas. Cada um tem que ter a sua e, para obtê-la, pagar emolumentos, vencer a ronha burocrática, lidar com funcionário arrogantes e invisíveis, como em geral, são os da polícia.

Imagino-me amanhã na mais dura miséria, sem parentes, sem amigos. Sonho fazer-me esquivo e bato à primeira porta. Seria aceito, mas é preciso a ficha..

Vou buscar a ficha e a ficha custa vinte ou trinta mil-réis. Como arranjá-los?

Eis aí as raízes da regulamentação, desse exagero de legislar, que é o característico da nossa época.

Toda a gente sabe a que doloroso resultado tem chegado semelhante mania.

Inscrito um tipo nisto ou naquilo, ele está condenado a não sair dali, a ficar na casta ou na classe, sem remissão nem agravo.

Deixemos esse negócio entre patrões e criados, e não estejamos aqui a sobrecarregar a vida dos desgraçados com exigências e regulamentos que os condenarão toda a sua vida à sua lamentável desgraça.

Os senhores conhecem a regulamentação da prostituição em Paris? Os senhores conhecem o caso de Mme. Comte? Oh! meu Deus!


Vida Urbana, 15-1-1915. Conto de Lima Barreto retirado do livro Crônicas Escolhidas, Editora Ática, São Paulo, 1995.