sábado, 15 de março de 2025

Diferenças (63)

 "Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros." - Jesus. (JOÃO, 13:35.)


Nas variadas escolas do Cristianismo, vemos milhares de pessoas que, de alguma sorte, se ligam ao Mestre e Senhor.

Há corações que se desfazem nos louvores ao Grande Médico, exaltando-lhe a intercessão divina nos acontecimentos em que se reconheceram favorecidos, mas não passam das afirmativas espetaculares, qual se vivessem indefinidamente mergulhados em maravilhosas visões.

São simplesmente beneficiários e sonhadores.

Há temperamentos ardorosos que impressionam da tribuna, através de preleções eruditas e comoventes, em que relacionam a posição do Grande Renovador, na religião, na filosofia e na história, não avançando, contudo, além dos discursos preciosos.

São os simplesmente sacerdotes e pregadores.

Há inteligências primorosas que vazam páginas sublimes de crença consoladora, arrancando lágrimas de emoção aos leitores ávidos de conhecimento revelador, todavia, não ultrapassam o campo do beletrismo religioso.

São os simplesmente escritores e intelectuais.

Todos guardam recursos e méritos  especializados.

Existe, no entanto, nos trabalhos da Boa Nova, um tipo de cooperador diferente.

Louva o Senhor com pensamentos, palavras e atos, cada dia.

Distribui o tesouro do bem, por intermédio do verbo consolador, sempre que possível.

Escreve conceitos edificantes, em torno do Evangelho, toda vez que as circunstâncias lho permitem.

Ultrapassa, porém, toda pregação falada ou escrita, agindo incessantemente na sementeira do bem, em obras de sacrifício próprio e de amor puro, nos moldes de ação que o Cristo nos legou. Não pede recompensa, não pergunta por resultados, não se sintoniza com o mal. Abençoa e ajuda sempre.

Semelhante companheiro é conhecido por verdadeiro discípulo do Senhor, por muito amar.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 8 de março de 2025

O Terceiro Olho

Pode parecer um papo neo-hippie ou xamanismo de papelaria, mas alguns escritores têm de fato uma espécie de terceiro olho no centro da testa. E, no Brasil, poucos o utilizam tão bem quanto Marina Colasanti. Como o assunto aqui é literatura, explico com um conto da própria autora.

"O que não está à vista" narra a história de um menino com o tal terceiro olho, de íris escura sempre mais atenta, mais interessada, mais desperta que as outras duas. E o aparente poder de fazê-lo ver coisas que todos os demais ignoravam.

Não por acaso o personagem logo passa a desenhar. E, retratando a solidão dos pastos e a aridez da vida, chama a atenção não apenas dos pais, do marceneiro, do lenhador, do ferreiro ou do boticário - mas também a curiosidade do rei, que deseja posar para o menino de talento inigualável.

Para não entregar o desenrolar, não digo o que aconteceu quando o monarca sentou-se em frente à tela e encarou as tintas vindas da China e os pincéis feitos de pelo de marta. Revelo apenas  que, ao fim do trabalho, o rei destruiu o seu retrato e ordenou que costurassem para sempre as pálpebras extras do garoto - cujo olho, agora voltado para dentro, passa a ver o que parecia não existir. E, prestando atenção ao seu interior, faz do rapaz um contador de histórias.

Carregado de poesia, o conto sobre a arte de criar narrativas fecha o livro Quando a Primavera Chegar, lançado no ano passado pela editora Global. Nele, Marina faz escorrer pelas mãos dos leitores 17 textos que não apenas flertam com a estrutura e os temas dos contos clássicos - ou contos de fadas, como são mais conhecidos. Eles, de fato, fazem parte desse universo, o que pode gerar surpresa em quem acha que essas histórias morreram com os irmãos Grimm ou com Hans Christian Andersen.

Pois dentro da extensa e rica obra da escritora há várias narrativas. Nascida na Etiópia, no centro de uma família italiana, Marina mudou-se para cá ainda criança e comemorou os seus 80 anos, em 2017, como uma das mais premiadas autoras para crianças, jovens e adultos do País. Como em todos bons contos de fadas, os seus costumam ter geografia incerta, criando fundações no inconsciente coletivo e nos fantasmas, segredos e desejos de cada leitor.

Isso porque esse tipo de história tem origem praticamente irrastreável, em uma Europa pré-literária, onde poucos sabiam ler e passavam as aventuras de criação coletiva, sem autor  definido, de boca em boca por gerações. Só muito depois que parte delas foram recolhidas em livros por autores como Grimm, Andersen e Perrault, que nada tinham de infantis.

De certa forma, Marina resgata essa atmosfera em seus contos, sobretudo em Quando a Primavera Chegar - título que é categorizado como infantojuvenil, mas que coloca muito marmanjo na roda para pensar. Não apenas pela linguagem, que não abre concessões nem nivela o vocabulário por baixo, evitando o tatibitate comum às obras que subestimam a inteligência de crianças e adolescentes. Mas também pelos temas que o atravessam: a busca pelo verdadeiro amor, o encontro com a morte, a dor da separação, a passagem para a vida adulta e outras questões que regem a natureza humana desde que caminhamos pela Terra.

A história "Povo é necessário", por exemplo, traz uma trama política em que um rei governa seus domínios sem a presença de população. No perturbador "Lá fora, as castanheiras", uma madrinha cria uma casa de bonecas que emula o quarto de uma menina doente. Já "Em busca de cinco ciprestes" revela um home que sai em jornada por um tesouro que lhe é revelado em sonho.

Mas são as histórias de amor e de morte que fazem do livro faísca elétrica. Os exemplos são muitos, mas destaco um de cada. Em "A Casa da Morte", uma filha carrega sua mãe já debilitada até a residência da dama de preto - e, de certa forma, trava um diálogo com o conto "História de uma Mãe", de Hans Christian Andersen, que funciona como uma narrativa espelhada: nele, a matriarca vai até a casa da Morte para resgatar um filho que foi levado.

Já "A Cicatriz Inexistente" produz uma alegoria poderosa sobre o casamento. Na trama, uma mulher vai à guerra procurar por seu marido combatente. Encontrando o corpo dele estirado e decapitado, tateia por perto até encontrar a cabeça sem membros, que é costurada ali mesmo sobre o pescoço. O problema é que, ao voltar para casa, ela vê que se confundiu: aquele não é o rosto de seu marido. O homem fala outra Língua, tem estranhos gostos e não compartilha das mesmas preferências do primeiro. Mas é esse outro quem está por perto. E os dois seguem vivendo sob o mesmo teto.

Ou a leitura e seus significados podem ser completamente diferentes. Marina gosta de dizer que os contos de fadas não trazem apenas explicações sobre a vida humana, vindas de tempos imemoriais. Mas concentram níveis de leitura tão profundos que permitem múltiplos entendimentos possíveis - cabendo ao leitor ou ao ouvinte encontra aquele que mais dialoga com suas interrogações.

Fato inquestionável é a capacidade que a escritora tem de criar histórias, dar vida e profundidade a personagens e tirar o leitor de sua posição de equilíbrio. Ao mergulhar nos 17 contos, somos rodeados por carruagens misteriosas, autômatos apaixonados, donzelas, agricultores, bonecos de madeira, sereias e aranhas que tomam toda a paisagem com suas teias.

A diversidade não se restringe aos contos de fadas. Vale lembrar que o último prêmio Jabuti recebido por Marina Colasanti foi com Breve História de um Pequeno Amor (FTD), que levou a estatueta de melhor livro de ficção de 2014 com uma história infantil sobre a relação da narradora com uma pomba. Nada de princesas ou estrutura de contos clássicos.

É essa polivalência narrativa que vem fazendo seu nome ser indicado pelo Brasil ao prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel de literatura infantojuvenil. E é esse redemoinho literário que desabrocha de maneira cristalizada, feito pedra preciosa, no conto do menino com o terceiro olho.

"Eu parti de um terceiro olho. E cheguei aonde não suspeitava chegar no princípio, à essência da escritura e da contação de contos", disse Marina na época do lançamento de Quando a Primavera Chegar.

Mas, na verdade, ela foi além. A história instiga o terceiro olho de cada leitor - por mais adormecido ou atrofiado que esteja, ele inevitavelmente passa a se remexer com vontade de contar as próprias narrativas. E isso é poderoso.


Texto de Bruno Molinero retirado da revista Conhecimento Prático Literatura, Ano 8, Edição 77, Abril/Maio de 2018, Editora Escala, São Paulo.

Devagar, mas sempre (62)

 "Mas ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova, de dia em dia." - Paulo. (II CORINTIOS, 4:16.)


Observa o espírito de sequência e gradação que prevalece nos mínimos setores da Natureza.

Nada se realiza aos saltos e, na pauta da Lei Divina, não existe privilégio em parte alguma.

Enche-se a espiga de grão em grão.

Desenvolve-se a árvore, milímetro a milímetro.

Nasce a floresta de sementes insignificantes.

Levanta-se a construção, peça por peça.

Começa o tecido nos fios.

As mais famosas páginas foram produzidas, letra  a letra.

A cidade mais rica é edificada, palmo a palmo.

As maiores fortunas de ouro e pedras foram extraídas do solo, fragmento a fragmento.

A estrada mais longa é pavimentada, metro a metro.

O grande rio que se despeja no mar é conjunto de filetes líquidos.

Não abandones o teu grande sonho de conhecer e fazer, nos domínios superiores da inteligência e do sentimento, mas não te esqueças do trabalho pequenino, dia a dia.

A vida é processo renovador, em toda parte, e,  segundo a palavra sublime de Paulo, ainda que a carne se corrompa, a individualidade imperecível se reforma, incessantemente.

Para que não nos modifiquemos, todavia, em sentido oposto è expectativa do Alto, é indispensável saibamos perseverar com o esforço de autoaperfeiçoamento, em vigilância constante, na atividade que nos ajude e enobreça.

Se algum ideal divino te habita o espírito, não olvides o servicinho diário, para que se concretize em momento oportuno.

Há ensejo favorável à realização?

Age com regularidade, de alma voltada para a meta.

Há percalços e lutas, espinhos e pedrouços na senda?

Prossegue mesmo assim.

O tempo, implacável dominador de civilizações e homens, marcha apenas com sessenta minutos por hora, mas nunca se detém.

Guardemos a lição e caminhemos para diante, com  melhoria de nós mesmos.

Devagar, mas sempre.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Reconhecimento e publicação

 O que o autor busca com a publicação de seu livro? Seja reconhecimento, dinheiro ou premiações, em algum momento o escritor necessita efetuar questionamentos.


Não sei se você pretende escrever um livro, se está escrevendo ou já escreveu e precisa decidir o modo como conduzir sua obra. O fato é que em algum momento você terá de definir qual é a melhor maneira de publicá-lo. E essa decisão carrega tanto de ambição pessoal, sentimento de pertença à tradição literária quanto de percepção do que representa este seu livro no horizonte das publicações e produções criativas.

Não se trata de uma pergunta simples, e as respostas são múltiplas e muitas vezes contraditória. Veja: não estou falando aqui em fazer sucesso. O sucesso é uma categoria relativa, e você terá em algum momento de definir mais ou menos o que almeja ao escrever um livro. O sucesso pode derivar do fracasso. Haveria muito a escrever sobre isso, mas, para os devidos fins, vale dizer que o sucesso não é uma categoria do fazer artístico. Falemos, portanto, do reconhecimento.

O que o reconhecimento significa para você? Algumas alternativas:

a. Publicar o livro, simplesmente: é inegável que ver um livro publicado já é em si um mérito e exige o reconhecimento de várias instâncias, externas e internas, ao autor - sim, ter um livro publicado é um grande reconhecimento.

b. Ganhar ou ser finalista de algum grande prêmio literário: Oceanos, Prêmio São Paulo de Literatura, Jabuti e outros prêmios são marcos na vida de um autor. Sem desmerecer a legitimidade dessa ambição, é fato que existem muitos livros por aí, e os espaços de premiação, bastante restritos. Na maior parte das vezes, um livro pega primeiro ou segundo lugar em um prêmio porque o corpo de jurados era este e não aquele.

c. Viver de Literatura: um lindo sentido de realização está presente nesse ideal; ao mesmo tempo, trata-se de uma faca de dois gumes, se o que você espera é que a literatura lhe dê tanto ou mais do que você deu a ela. Mesmo assim, a escrita tem um lugar concreto e legítimo neste mundo. Nada mais natural que existam pessoas que vivam da escrita, assim como existem pessoas que passam o dia em uma cozinha profissional, em um consultório ou em qualquer lugar em que desejem exercer sua paixão e ganhar por isso.

d. Ter mil leitores fiéis - ou cinco mil: essa ideia de reconhecimento vai além da coroação canônica de um corpo de jurados. Ter leitores já é uma espécie de atestado de pertencimento. Se você tem mil leitores fiéis poderá viver de literatura, ao passo que uma premiação pode ser facilmente esquecida ao cabo de algum tempo.

Tendo passado por várias modalidades possíveis de negociação com editoras, obtido bolsas e publicado alguns tantos livros, percebo que hoje o ato de publicar e de produzir a sua obra pode ser um momento verdadeiramente criativo do processo.

Pouca gente sabe o que fazer na hora de conduzir sua obra para a publicação. As orientações serão, em geral, pautadas por posturas idealistas muito pessoais. Escritores costumam ser péssimos vendedores. Felizmente, o autor aos poucos começa a aprender a se defender. É inescapável: se você está para ficar, e dependendo do que você quer para si, é sim importante dedicar um tempinho em conhecer os trâmites, prós e contras de cada possibilidade de edição.


Texto de Tiago Novaes. É escritor, professor de criação literária e doutor em Psicologia pela USP. Retirado da revista Conhecimento Prático Literatura, Ano 8, Edição 78, Junho de 2018, Editora Escala, São Paulo.

terça-feira, 4 de março de 2025

Carpintaria do processo criativo

Não há fórmulas mágicas nem modelos infalíveis para fazer literatura de qualidade. A própria ideia de qualidade aqui é tão subjetiva e historicamente indeterminada, incerta e mutante, que já renderia muito pano para teorias. Além disso, ensinar literatura, sua história, gêneros, estilos, é muito diferente de ensinar a escrever literatura, prosa ou poesia. Aquilo que se convencionou chamar de escrita criativa, para fins tanto didáticos quanto mercadológicos, na verdade é sempre um desafio, uma aposta, um risco, ou um experimento com a linguagem. Escritores e escritoras testam e distorcem o material de que dispõem para chegar a resultados novos, inusitados e às vezes surpreendentes. Ninguém cria a partir do nada, nem é tão original quanto imagina, ou gostaria. Cria-se a partir do que se lê e do que a leitura provoca na imaginação do leitor ou em sua consciência da linguagem, suas limitações e potencialidades.

As oficinas de criação literária são ambientes férteis para a troca de experiências de leitura e escrita, momento de aprendizado e de revisão da própria postura diante do texto e do projeto literário almejado: são como laboratórios, como um tabuleiro de jogos, um teatro vivo em que a palavras é o personagem central. Muita gente, no entanto, confunde essas oficinas e workshops com cursinho para escrever romances, contos e poemas bem resolvidos, que agradem a este ou àquele público e que obtenham reconhecimento, seja lá o que for isso.

Quando decidiu abandonar o trabalho e viver de forma modesta, quase um eremita, dedicado à escrita de haicais, o poeta japonês Matsuô Bashô (século XVII) recebia em sua casa ou viajava para encontrar-se com discípulos e falar de poesia, ler e discutir poemas, escrever. Teve dezenas de alunos e trocou correspondência com eles. Muitas de suas ideias renovadoras da estrutura do haicai foram debatidas e aprimoradas nesses encontros. Inúmeros poetas formaram-se ali, e novas tendências poéticas surgiram ou foram revistas criticamente. A própria escrita de Bashô transformou-se, explorando outros rumos, ritmos e temas.

O famoso ensaio do poeta russo Vladimir Maiakóvski "Como fazer versos", de 1926, vale por muitas oficinas de criação e pode muito bem ser usado como instigante material de apoio. Logo no início do texto, o esclarecimento: "eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta, para que escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Damos o nome de poeta justamente à pessoa que cria essas regras poéticas" - na tradução de Boris Schnaiderman. Claro que o poeta, em seguida, discorre sobre a relação do escritor do presente com a tradição, a partir de um ponto crítico de releitura do passado e também do presente. Mais adiante Maiakóvski afirma que "a criação de regras não constitui em si a finalidade da poesia, senão o poeta se tornará um escolástico, que se exercitará na formulação de regras para objetivos e teses inexistentes ou desnecessários".

Essa luta do poeta com a tradição e com o que se consolida como modelo estético vale também para a prosa. Ao inventar o romance moderno, Cervantes não dispunha de uma cartilha do gênero, mas teve que desconstruir as narrativas que o antecederam e desbravar um território desconhecido, criando os próprios mecanismos de sua ficção: o andamento da trama, o ritmo, a tensão permanente entre drama e comédia, diálogos precisos e ferinos, desenho dos personagens, ambientação, oscilação entre vozes descritiva e digressiva, mistura de realismo e fantasia, razão e delírio. Dom Quixote e Sancho Pança tornaram-se grandes paradigmas, como o rei Édipo de Sófocles, a serem reelaborados em chave ficcional e tempos diversos.

Em um dos muitos diálogos registrados na oficina de roteiro na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez discutia com os alunos a construção de uma cena na praia e a entrada dos personagens, quando um dos participantes propõe que o "homem vê a moça limpando peixes, cortando a cabeça de peixes". Nesse momento, Márquez intervém: "ou de crianças?". O aluno fica desconcertado: "como é?". E o autor de Cem Anos de Solidão provoca: "está faltando loucura nessa história. É isso que quero dizer. Vocês estão muito sérios". A proposta, então, desdobra-se e avança com a contribuição de outros participantes da turma até fecharem a sequência. Márquez não tentou impor suas ideias, mas provocar nos alunos as soluções criativas possíveis naquele texto.

A melhor e mais eficiente ferramenta para oficinas de escrita criativa ainda é a leitura crítica e exaustiva, debatida, compartilhada entre autores e alunos. No divertido e biográfico livro Sobre a escrita - a arte em memórias, Stephen King anota de modo claro e certeiro: "se você quer ser escritor, existem duas coisas a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito. Que eu saiba, não há como fugir dessas duas coisas, não há atalho". Não se trata, obviamente, de leitura devocional, mas de um exercício permanente de formação. Ler para entrar no universo imaginado por escritores e escritoras, para participar do jogo de linguagem proposto, para experimentar modos próprios, ou variantes, de escrita e reescrita da tradição, ou mesmo das tendências do presente. A escrita que se nutre de outras escritas em um processo labiríntico e borgeano.

Outro elemento essencial das oficinas de escrita criativa é a possibilidade de trocar experiências com outros autores e leitores, espiar a carpintaria do processo criativo. Ray Bradbury conta, no volume de ensaios e depoimentos O zen e a arte da escrita, que começou a escrever para valer aos 20 anos, fazendo diariamente listas de palavras em torno das quais ia compondo personagens e experimentando combinações, que logo se tornavam contos. Esse é só um exemplo de bastidor precioso que pode nos ajudar a entender como um escritor traça o seu caminho, desenvolve seu método e sua voz. Afinal, diz Bradbury, nada se perde nesse trajeto: "de uma curiosidade sempre perambulante por todas as artes, do rádio ruim ao bom teatro, da rima das canções de ninar à sinfonia, do brinquedo selvagem ao Castelo de Kafka".


Texto de Reynaldo Damazio retirado da revista Conhecimento Prático Literatura, Ano 8, Edição 79, Editora Escala, São Paulo, Agosto/Setembro de 2018.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Construção de Personagem

Personagens bem construídas são fundamentais para o desenvolvimento de uma boa trama, siga ela um caminho realista ou fantástico. Sendo assim, é natural dar atenção especial a elas, principalmente ao seu protagonista. Se bem realizada, essa etapa poderá esclarecer os caminhos mais interessantes a seguir no decorrer da escrita.

Existem algumas perguntas que podem ajudar a entender melhor quem é a sua personagem:

1- O que ela deseja?

2- O que ela está disposta a fazer para conseguir isso?

3- Qual é o maior medo dela?

4- Como ela reagiria ao se deparar com esse medo (seja uma pessoa, seja uma situação)?

É importante perceber que essas perguntas falam de questões que remetem ao âmago da personagem, não a aspectos externos, mas que uma coisa pode levar a outra naturalmente.

Em Perdido Street Station, livro do gênero new weird e uma das obras mais aclamadas de China Miéville, uma das personagens é um homem-pássaro que perdeu suas asas e quer voar novamente, por isso procura um artífice que pesquisa mecanismos de voo. No início, o leitor tem contato com esse desejo mais básico e ao longo do livro vai descobrindo mais a respeito dessa personagem peculiar. Já em Homens Elegantes, romance de aventura e humor de Samir Machado de Machado passado em 1760, o protagonista é Érico Borges, um soldado brasileiro que se sente estagnado e perdido quanto às suas ambições. Quando lhe oferecem a missão de investigar quem estaria enviando livros eróticos por meios clandestinos de Londres para o Brasil, ele vê a oportunidade de redescobrir o que o motiva verdadeiramente.

Como Jeff Vandermeer cita no seu Wonderbook, embora não seja uma regra, o protagonista costuma ser a personagem que mais tem a ganhar ou perder durante a história. É nesse processo de construção e conhecimento que descobrimos também se escolhemos o protagonista mais adequado para o que queremos contar.

Tramas realistas tendem a trazer respostas mais simples. Em Acre, de Lucrecia Zappi, Oscar é um homem que sente seu casamento ameaçado quando o ex-namorado de sua esposa se muda para o prédio onde eles moram. Por ser a única personagem desse triângulo capaz de carregar a dúvida e não a resposta, Oscar torna-se a escolha mais acertada nesse romance sobre decadência e paranoia. Se Oscar estiver certo em seu medo, ele perde a esposa para o ex. Se estiver sendo paranoico, corre o sério risco de perdê-la por conta do seu comportamento. De um jeito ou de outro, a tendência é ele se dar mal.

Divirta-se bastante nessa etapa, inclua novas perguntas. Faça-as inclusive para as personagens mais secundárias. Algumas delas poderão ser descartadas no caminho, e tudo bem. Outras ganharão mais importância aos seus olhos. Quanto mais enxuta essa seleção, maior a sua chance de se ater aos objetivos traçados. Afinal, como escritores, assim como nossas personagens, também precisamos saber o que estamos dispostos a fazer para escrever uma boa história.


Texto de Eric Novello retirado da revista Conhecimento Prático Literatura, Edição 79, Ano 8, Editora Escala, São Paulo, Agosto/Setembro de 2018.

Eric Novello é escritor, tradutor e roteirista com formação no Instituto Brasileiro de Audiovisual. Nasceu no Rio de Janeiro em 1978 e mora em São Paulo desde 2007. É autor de Ninguém nasce herói (Seguinte, 2017), Exorcismos, amores e uma dose de blues (Gutemberg, 2014), Neon Azul (Draco, 2010), entre outros.

domingo, 2 de março de 2025

Chico Buarque

Quando Chico Buarque apareceu ganhando festivais de TV, em 66, a Bossa Nova estava trocando de roupa. Deixara o intimismo dos primeiros tempos e a aliança aliança solitária do Samba com o Jazz (inspirada em alguns clássicos, é verdade) para redescobrir, o morro, o Nordeste e outros cantos do Brasil. Ainda assim foi um espanto a fulminante ascensão daquele rapaz de olhos verdes, filho de um historiador famoso e tão bom de poesia quanto poliglota em ritmos brasileiros.

Com Chico reapareceriam gêneros esquecidos dos modernistas como o Choro, a Marchinha, a Valsa, um tipo Noelesco sincopado, a Modinha, a Marcha-Rancho e uma série de outras preciosidades retiradas do fundo do baú de nossa fraca memória.

Com seu jeito tímido, escondido atrás do sorriso amarelo e o cigarro permanentemente aceso, Chico Buarque promoveu um verdadeiro renascimento da MPB tradicional.

Mais adiante, seus versos cortantes travaram combate com as trevas da Censura do regime militar e não se pode dizer que tenham perdido a guerra desigual. Aqui mesmo neste disco síntese soam vários clarões da batalha: Apesar de Você, Construção, Minha História, O Que Será, Meu Caro Amigo e, fechando o ciclo, o esperançoso Vai Passar. Através da leitura de metáforas deste reportar, de seu tempo, é possível reconhecer os avanços e recuos políticos do país.

Mas quem preferir outros campos de batalha mais acetinados, como a alcova da milenar guerra conjugal, também não deve mudar de autor. É o mesmo Chico, ao longo de sua obra tão diversificada e fértil, que nos oferece combustível para rir ou chorar com as desditas do coração. Do desenlace dolorido de Trocando em Miúdos à fala entrecortada de Bye Bye Brasil. Das súplicas de Mil Perdões, do lirismo de Olha Maria. Este disco viaja pelos inúmeros caminhos que tomou a arte do compositor de roteiros de cinema às peças de teatro. O que se ouve aqui é uma fatia do palpitante universo brasileiro, captada por uma privilegiada antena da raça.


Texto de Tárik de Sousa. Retirado do encarte do CD coletânea Personalidade. Gravadora Polygram, Rio de Janeiro, 1987.

sábado, 1 de março de 2025

Nunca desfalecer (61)

 "... Orar sempre e nunca desfalecer." - (LUCAS, 18:1)


Não permitas que os problemas externos, inclusive os do próprio corpo, te inabilitem para o serviço da tua iluminação.

Enquanto te encontras no plano de exercício, qual a crosta da Terra, sempre serás defrontado pela dificuldade e pela dor.

A lição dada é caminho para novas lições.

Atrás do enigma resolvido, outros enigmas  aparecem.

Outra não pode ser a função da escola, senão ensinar, exercitar e aperfeiçoar.

Enche-te, pois, de calma e bom ânimo, em todas as situações.

Foste colocado entre obstáculos mil de natureza estranha, para que, vencendo inibições fora de ti, aprendas a superar as tuas limitações.

Enquanto a comunidade terrestre não se adaptar à nova luz, respirarás cercado de lágrimas inquietantes, de gestos impensados e de sentimentos escuros.

Dispõe-te a desculpar e auxiliar sempre, a fim de que não percas a gloriosa oportunidade de crescimento espiritual.

Lembra-te de todas as aflições que rodearam o espírito cristão, no mundo, desde a vinda do Senhor.

Onde está o Sinédrio que condenou o Amigo Celeste à morte?

Onde os romanos vaidosos e dominadores?

Onde os verdugos da Boa Nova nascente?

Onde os guerreiros que fizeram correr, em torno do Evangelho, rios escuros de sangue e suor?

Onde os príncipes astutos que combateram e negociaram, em nome do Renovador Crucificado?

Onde as trevas da Idade Média?

Onde os políticos e inquisidores de todos os matizes que feriram em nome do Excelso Benfeitor?

Arrojados pelo tempo aos despenhadeiros de cinza, fortaleceram e consolidaram o pedestal de luz, em que a figura do Cristo resplandece, cada vez mais gloriosa, no governo dos séculos.

Centraliza-te no esforço de ajudar no bem comum, seguindo com a tua cruz, ao encontro da ressurreição divina. Nas surpresas constrangedoras da marcha, recorda que, antes de tudo, importa orar sempre, trabalhando, servindo, aprendendo, amando, e nunca desfalecer.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

47. Bilíngues falam sem sotaque? (Três mitos da pronúncia - 3)

É muito mais comum encontrar pessoas bilíngues que têm sotaque. Ter ou não um sotaque não determina a habilidade linguística de uma pessoa.


Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

46. Subsídio (Três mitos da pronúncia - 2)

Muita gente pronuncia como /z/ o /s/ de subsídio ou de "subsistência". Sempre que a letra /s/ ocorre depois de uma consoante oral, seu som será sempre o de /c/ de cebola, como em: "verso", "falso", "lapso" etc. Assim, a pronúncia do /s/ em "subsídio" e "subsistência" é a mesma do /s/ de "subsolo", "subsequente" etc. A exceção é a pronúncia de "obséquio" e derivados.


Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.