quinta-feira, 12 de julho de 2012

A terceira margem do rio

                       Guimarães Rosa

    Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que  testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não  figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente - minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
     Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
      Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva e pálida, mascou o beiço e bramou: - " Cê vai, ocê fique, você nunca volte! " Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: " Pai, o senhor me leva junto, nessa canoa? " Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo - a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
       Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram junto conselho.
       Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas - passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda - descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
       No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz,  e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
      Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazendo e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se  chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar um retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, e escuridão daquele.
       A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia, de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as  semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta de se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração na canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não,  de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
      Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado na noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão na cabeça e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficando preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu,mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
      Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas,  por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - " Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim... "; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi um dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
       Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com  minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei - na vagação, no rio no ermo - sem dar razão de seu feitio. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
       Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.
       Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: - " Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!... " E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
       Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por favor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
        Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.
        

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Impossível Acreditar Que Perdi Você

                          Cobel/Márcio Greyck

Não
Eu não consigo acreditar
No que aconteceu
É um sonho meu
Nada se acabou
Não
Eu não consigo viver sem você
Volte e venha ver
Tudo em mim mudou

Eu já não consigo mais
Viver dentro de mim
E viver assim
É quase morrer
Venha me dizer sorrindo
Que você brincou
E que ainda é meu
Só meu o seu amor

Hoje
Mais um dia de tristeza
Para mim passou
Nem no meu olhar
Nada se alegrou
Sinto-me perdido
No vazio que você deixou
Nada quero ser
Já nem sei quem eu sou

Esta canção recebeu duas regravações distintas e muito bonitas: uma versão mais suave feita por Rita Ribeiro e outra mais dramática feita pela Rosana. Ambas são de arrepiar...

A Distância

              Roberto/Erasmo


Nunca mais você ouviu falar de mim
Mas eu continuei a ter você
Em toda esta saudade que ficou
Tanto tempo já passou
E eu não te esqueci


Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia 
Sem você saber


O que restou do nosso amor ficou
No tempo esquecido por você
Vivendo do que fomos ainda estou
Tanta coisa já mudou
Só eu não te esqueci


Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia
Sem você saber


Eu só queria lhe dizer que eu
Tentei deixar de amar não consegui
Se alguma vez você pensar em mim
Não se esqueça de lembrar
Que eu nunca te esqueci


Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia
Sem você saber


gravação visceral feita por Simone em seu CD " Sou Eu ", de 1993.

Sem Saída

                Mutinho/Toquinho


Agora que você já me acostumou
A andar com os pés no chão, levitando
Me surpreender sorrindo sem ter por quê

Agora que você já me iluminou
Chegou feito a manhã clareando
Entrando pelas frestas do meu viver

Agora que você mesmo sem querer
Me envenena o sangue nas veias
E deixa à flor da pele os desejos meus

Agora que eu já sou e é bom de ser
Uma presa feliz na tua teia
Você vem me dizer simplesmente adeus

Me diz como se faz quando se sente 
A vida de repente sem saída, sem razão
Me diz como se vive nessa hora
E o que é que eu digo agora pro meu coração

Agora que esse amor é tão grande assim
E envolve a noite em doces gemidos
Enchendo de energia os dias meus

Agora que a alegria transborda em mim
Vazando pelos cinco sentidos
Você vem me dizer simplesmente adeus.

Música do então LP de Toquinho intitulado " Coisas do Coração " gravado em 1986.

Estranho

               Chico César


Eu bem que avisei
Sou estranho
Não chegue tão perto assim
Vai por mim
Você fez que não ouviu
Tomou de conta
Fez de conta que era charme alfenim
Ai de mim
Agora quero ir embora
Embora não deseje o fim
Vai por mim


Jeito de Amar

               Mauro Kwitko/Pisca


Quando você me chega
Com os olhos de quem me quer
Eu abro meu corpo
Desço do trono
Eu quero beijar seus pés
São seus os meus segredos
Que eu tenho guardado em mim
Mas eu me ofereço
Pago seu preço
Se você for mesmo assim

Mesmo sendo um sonhador
Da vida aventureiro
Aprendi que o amor
É mais que um simples sonho
É real

Esse é meu jeito de amar você
Já não dá mais pra mudar
A vida, eu sei, me fez perceber
Que esse é meu jeito de amar.

Música gravada em 1982 por Ney Matogrosso.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Circuito Fechado 5

                  Ricardo Ramos


Não. Não foi o belo, quase nunca, nem ao menos o bonito, porque tudo se veio esgarçando em rotina, sombra com vazio. Não foi o plano, o projeto, a lucidez conduzindo, já que o mistério se fez magia e baralhou os búzios da vontade. Não foi o imaginado, o sonhado, mas a verdade miúda e comovida sem ter de quê. Não foi o tempo que abarca vastamente, não, deve ser o que se conta aos pedaços, reconta, em mesquinha soma, e medrosa. Não foi o prometido, o esperado, antes foram os enganos, os engodos, os adiamentos sempre roubos, pequenos e de importância. Não foi nada útil, ou de se repartir, apenas o de guardar para comer sozinho. Não foi o brilhante, de anel e de relâmpago, simplesmente a luz no vidro. Não foi o bom, foi o barato, não foi o alegre, foi o pouco a pouco, não foi o claro, foi o difuso, pois os encargos chegam logo, e se aprendem, e ficam. Não foi o momento certo, a maior parte aconteceu de repente, ou cedo, ou tarde, afinal se repetiu. Não foi a viagem, a longa, larga viagem, de recordar, rever, que as paradas e os horários dividiram muito o roteiro, partiram, nublaram, não devolveram. Não foi o encontro nem a sua memória, não foi a paisagem nem o esquecimento, foi esse passar de pessoas e o seu reverso de imóvel, que se isola e não fala, porque não adianta. Não foi a cidade mas a rua, não foi a figura mas a boca, não foi a chuva mas a calha. Não foi o campo, nem a mata, o morro, nem o rio, a relva, nem a árvore, foi a janela de trem, de carro, de longe. Não foi o livro aberto, a oração disfarçada, a primeira lição. Não foi a lâmpada, o linho, a lenda. Não foi a casa, o quintal, o corredor com portas e pé-direito. Não foi o que vem de dentro, e sim o que bate, não se anuncia, e força, abre, e entra. Não foi o pacífico, o sem tumulto, foi até mesmo a guerra, ou melhor o combate, a escaramuça, perdidos de mãos nuas, limpas, as armas brancas. Não foi o amor, a certeza, o amanhã, foram as palavras que representam, a ideia de, o conceito, enfim a sua redução. Não foi pouco nem muito, foi igual. Não foi sempre, nem faltou, foi mais às vezes. Não foi o que, foi como e onde, e quando. Não, não foi.

Circuito Fechado 4

                  Ricardo Ramos


Ter, haver. Uma sombra no chão, um seguro que se desvalorizou, uma gaiola de passarinho. Uma cicatriz de operação na barriga e mais cinco invisíveis, que doem quando chove. Uma lâmpada de cabeceira, um cachorro vermelho, uma colcha e os seus retalhos. Um envelope com fotografias, não aquele álbum. Um canto de sala e o livro marcado. Um talento para as coisas avulsas, que não duram nem rendem. Uma janela sobre o quintal, depois a rua e os telhados, tudo sem horizonte. Um silêncio por dentro, que olha e lembra, quando se engarrafam o trânsito, os dias, as pessoas. Uma curva de estrada e uma árvore, um filho, uma filha, um choro no ouvido, um recorte que permanece, e todavia muda. Um armário com roupa e sapatos, que somente veste, e calçam, e nada mais. Uma dor de dente, uma gargalhada, felizmente breves. Um copo de ágate, sem dúvida amassado. Uma cidade encantada, mas seca. Um papel de embrulho e cordão, para todos os pacotes, a cada instante. Uma preocupação, um recuo, uma certeza, que se diluem e confundem, se gastam, e continuam. Um gosto de fruta com travo, um tostão guardado, azinhavrado, foi sempre a menor moeda. Uma régua de cálculo, nunca aprendida. Um quiosque onde se vendia garapa, os copos e as garrafas com o seu brilho. Uma gaveta, uma gravura, os guardados de chave e de parede. Um caminhar de cabeça baixa, atento aos buracos da calçada. Um diabo solto, uma prisão que o segura, um garfo e uma porta. Um rol de gente, de sonho com figuras, que passa, que volta, ou se some sem anotação. Uma folhinha, um relógio, muito adiantados. Uma hipermetropia que não deixa ver de perto, é necessário recuar as imagens até o foco. Um realejo que não soube aos sete anos, uma primeira alegria aos quatorze, uma unha encravada e um arrepio depois. Uma fábrica de vista, um descaroçador de algodão, uma usina com a tropa de burros, são os trechos de paisagem com e sem raiz. Um morto, uma dívida, um conto com história. Um  cartão de identidade cinzento floreada, só ela. Um lugar à mesa. Uma tristeza, um espanto, as cartas do baralho, passado, presente e futuro, onde estão? Uma resposta adiada. Uma vida em rascunho, sem tempo de passar a limpo.

Circuito Fechado 3

                   Ricardo Ramos


Muito prazer. Por favor, quer ver meu saldo? Acho que sim. Que bom telefonar, foi ótimo, agora mesmo estava pensando em você. Puro, com gelo. Passe mais tarde, ainda não fiz, não está pronto. Amanhã eu ligo, e digo alguma coisa. Guarde o troco. Penso que sim. Este mês, não, fica para o outro. Desculpe, não me lembrei. Veja logo a  conta, sim? É pena, mas hoje não posso, tenho um jantar. Vinte litros, da comum. Acho que não. Nas próximas férias, vou até lá, de carro. Gosto mais assim, com azul. Bem,  obrigado, e você? Feitas as contas, estava errado. Creio que não. Já, pode levar. Ontem aquele calor, hoje chovendo. Não, filha, não é assim que se faz. Onde está minha camisa amarela? Às vezes, só quando faz frio. Penso que não. Vamos indo, naquela base. Que é que você tem? Se for preciso, dou um pulo aí. Amanhã eu telefono e marco, mas fica logo combinado, quase certo. Sim, é um pessoal muito simpático. Foi por acaso, uma coincidência. Não deixe de ver. Quanto mais quente melhor. Não, não é bem assim. Morreu, coitado, faz dois meses. Você não reparou que é outra? Salve, lindos pendões. Mas que esperança. Nem sim nem não, muito pelo contrário. Como é que eu vou saber? Antes corto o cabelo, depois passo por lá. Certo. Pra mim, chega. Espere, mais tarde nós vamos. Aí foi que ele disse, não foi no princípio, quem ia adivinhar? Deixe, vejo depois. Sim, durmo de lado, com uma perna encolhida. O quê? É, quem diria. Acredito que sim. Boa tarde, como está o senhor? Pague duas, a outra fica para o mês que vem. Oh, há quanto tempo! De lata e bem gelada. Perdoe, não tenho miúdo. Estou com pressa. Como é que pode, se eles não estudam? Só peço que não seja nada. Estou com fome. Não vejo a hora de acabar com isto, de sair. Já que você perdeu o fim de semana, por que não veio pescar? É um chato, um perigo público. Foi há muito tempo. Tudo bem, tudo legal? Gostei de ver. Acho que não, penso que não, creio que não. Acredito que sim. Claro, fechei a porta e botei o carro pra dentro. Vamos dormir? É leia que é bom. Ainda agosto e esse calor. Me acorde cedo amanhã, viu?

Circuito Fechado 2

                     Ricardo Ramos


Dentes, cabelos, um pouco de ouvido esquerdo e visão. A memória intermediária, não a de muito longe nem a de ontem. Parentes, amigos, por morte, distância, desvio. Livros, de empréstimo, esquecimento e mudança. Mulheres também, com os seus temas. Móveis, imóveis, roupas, terrenos, relógios, paisagens, os bens da infância, do caminho, do entendimento. Flores e frutos, a cada ano, chegando e se despedindo, quem sabe não virão mais, como o jasmim no muro, as romãs encarnadas, os pés-de-pau. Luzes, do candeeiro ou vaga-lume. Várias vozes, conversando, contando, chamando, e seus ecos, sua música, seu registro. O alfinete das primeiras gravatas e o sentimento delas. A letra de canções que foram importantes. Um par de alpercatas, uns sapatos pretos de verniz, outros marrons de sola dupla. Todas as descobertas, no feitio de crescerem e se reduzirem depois, acomodadas em convívio, costume, a personagem, o fato, a amiga. As ideias, as atitudes, as posições, com a sua revisada, apagada consciência. O distintivo sem cor nem formato. Qualquer experiência, de profissão, de gosto, de vida, que se nivela incorporada, nunca depois, quando é preciso tomá-la entre os dedos como um fio e atá-la. Os bondes, os trilhos. As caixas-d'água, os cataventos. Os porta-chapéus, as cantoneiras. Palavras, que foram saindo, riscadas, esquecidas. Vaga praia, procissão, sabor de milho, manhã, o calor passado não adormecia. Um cheiro urbano, depois da chuva no asfalto, com o  namoro que arredondava as árvores. Ansiedade, ou timidez, mais antes e após, sons que subiam pela janela entrando muito agudos, ou muito mornos. Sino, apito de trem. Os rostos, as páginas. Lugares, lacunas. Por que não instantes? As sensações, todas as de não guardar. O retrato mudando na parede, no espelho. Desbotando. Os dias, não as noites, são o que mais ficou perdido.