domingo, 8 de novembro de 2020

Visitante Noturno

 O inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem fazer anunciar. E sem que se atinasse por que motivo escolhera aquele pouso. Não parecia bicho da noite, desses que não podem ver lâmpada acesa, e logo se aproximam, fascinados. Era uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima, sem explicação, sem sentido para ninguém.

Ninguém? O homem, que tem o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros, sentiu-lhe a presença e pensou imediatamente em esmagar o intruso. Chegou a mover a mão. Não o mataria com os dedos, mas com outra folha de papel.

Deteve-se. Não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido, sem fazer mal nenhum. Inseto nocivo? Talvez. Mas sua ignorância em entomologia não lhe dava chance de decidir entre a segurança e a injustiça. E na dúvida, era melhor deixar viver aquilo, que nem nome tinha para ele. Com que direito aplicaria pena de morte a um desconhecido infinitamente desprovido de meios sequer para reagir, quanto mais para explicar-se?

O inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em perspectiva. Dormia ou modorrava sobre a mesa literária, indiferente, simplesmente. Chegara por acaso, sumiria daí a pouco; deixá-lo viver a seu modo, que era um viver anônimo, desligado de inquietações humanas, invariável dentro da natureza: curto e pobre.

Uma ternura imprevista brotou no homem pelo animálculo que momentos antes pensara destruir. Como se alguém viesse de longe para vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho. Não conversava, não incomodava, era uma questão apenas de estar à sua frente, imóvel, em secreta comunhão. Ele fora o escolhido de um inseto, que poderia ter voado para outro apartamento, onde houvesse outra vigília de escrevedor de coisas, mas aquela fora a casa de sua preferência.

A menos que o acaso determinasse aquele encontro. Era possível. O mesmo inseto voara a esmo. O homem quis aferrar-se a esta hipótese, bem plausível. Já se envergonhava de ter envolvido o estranho numa aura de sensibilidade, e talvez voltasse ao impulso inicial de eliminação. A essa altura, espantou-se com a  mobilidade de suas reações. Passava de verdugo a sentimentalão, depois a observador cético e crítico, finalmente perdia-se na confusão das várias atitudes que podemos assumir diante de um inseto instalado na mesa de um escritório, a uma hora que ainda não é madrugada mas já é noite alta e de sono profundo.

Aquietou-se, afinal, na contemplação do "bicho da terra tão pequeno". Era alguma coisa parecida com um botão marrom rombudo, que tivesse olhos e um projeto de asas - o suficiente para deslocar-se no espaço em aventuras breves. E não era uma aventura simples: a altura do edifício exigia esforço grande para chegar da árvore até o décimo primeiro andar. Entretanto, o botão vivo a fizera, e ali estava, tranquilo ou cansado, à mercê do gigante indeciso, que procurava entender, não propriamente sua presença, mas a turbação que essa presença despertava no gigante.

O homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie, não avançaria muito no conhecimento do indivíduo, que era único por ser entre todos o que o visitava. E na multidão de insetos, imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado rumo.

Já não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado, quando o inseto fez ligeiro movimento que o colocou diretamente sob o foco de luz. Seria exagero encontrar expressão naqueles dois pontinhos negros e reluzentes, mas o fato é que deles parecia vir para os olhos do homem um sinal de atenção ou curiosidade. E os dois, homem e inseto, assim ficaram longo tempo, na muda inspeção, ou conversa, que não se conduzia a nada.

A nada? Muitas conversas entre homens também não levam a resultado algum, mas há sempre a esperança de um entendimento que pode vir das palavras ou de uma troca desprevenida de olhares. E o olhar pode penetrar mais fundo que as palavras. O homem sabia disto. Mas aí, notou que, sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver diretamente o real. A figura do inseto dizia-lhe pouco. Dos dois, talvez fosse ele, homem, o que menos habilitado se achava para uma forma de comunicação, aquém - ou além - dos códigos tradicionais.

Distraiu-se avaliando essas limitações e, ao voltar à observação do visitante, este havia desaparecido, decepcionado talvez com a incomunicabilidade dos gigantes. Não é todas as noites que um inseto nos visita. E, se consegue insinuar-nos alguma coisa, esta nunca jamais foi captada para os homens que merecem crédito; só os ficcionistas é que costumam registrá-la, mas quem leva a sério ficcionistas?


Crônica de Carlos Drummond de Andrade retirada do livro Boca de Luar, Editora Record, Rio de Janeiro, 1984.

sábado, 7 de novembro de 2020

Lamentações

 Aglutinam-se na massa humana as pessoas desesperadas.

Uma vaga de aflição paira ameaçadora no mundo, carregando os inquietos que perderam a direção de si mesmos, vitimados pelas circunstâncias dolorosas do momento

A insânia conduz expressivo número de criaturas que estertoram ao sabor do sofrimento, buscando fugir da realidade dos problemas, com a aparência voluptuosa de triunfadores nos patamares dos prazeres alucinantes.

A desordem campeia, e ameaças desumanas transformam-se em torpe conduta nos países do mundo, destroçados por guerras impiedosas em nome de religiões fanatizadoras, de raças asselvajadas, de interesses mesquinhos...

Os governantes da Terra perdem as rédeas da administração e negociam com organizações criminosas, estabelecendo colegiados políticos abomináveis.

A corrupção adquire cidadania, e a imoralidade desfruta de status, perturbando os valores éticos e morais.

Nuvens borrascosas avolumam-se nos céus já escurecidos da humanidade.

Tudo anuncia a chegada dos dias apocalípticos, convocando à razão, à renovação dos códigos, à interiorização espiritual.

Como consequência do período grave de transição, surgem o pessimismo, a desconfiança, as lamentações. De tal forma se vão arraigando no organismo individual e social, que os temas de conversações perdem os conteúdos ou se apresentam desconcertantes, caracterizados pelas sombras do desconforto, da mágoa, dos irrefreáveis desejos de vingança.

A lamentação grassa e perturba as mentes, impedindo a ação correta do bem, como se não adiantasse produzir com elevação, laborar com honradez.

Lamentar não é atitude saudável. Pelo contrário, produz deterioração dos conteúdos bons que ainda remanescem em muitas vidas e movimentam-nas, sustentando os ideais de engrandecimento humano.

A lamentação, qual ocorre com a queixa sistemática, é morbo portador de destruição, de desalento e morte.

Antídoto aos males que infestam os dias atuais, é ainda o amor a força única portadora de recursos salvadores.

Este é um ciclo que se encerra, dando início a outro, que se irradiará plenificador.

Os períodos de renovação fazem-se preceder por inumeráveis acontecimentos devastadores, nos mais diversos aspectos da natureza. O mesmo ocorre na área moral da humanidade.

Assim, não te desalentes, nem duvides do triunfo do bem. Não fiques, porém, inativo, aguardando que forças externas operem miraculosamente sem a tua contribuição.

És importante no contexto atual, em face do que penses e como ajas.

Produze, portanto, com esforço bem direcionado, oferecendo o teu contributo valioso, por menos expressivo que pareça.

Não cedas o passo aos aventureiros da desordem.

Permanece no teu lugar, realizando o que podes, deves e te cabe fazer.

Muita falta fazem Jesus e Sua doutrina no mundo.

Fala-se sobre Ele, discute-se-Lhe a mensagem, mas não se vive o ensinamento que dela deflui.

Sê tu quem confia e faz o melhor.

Se cada cristão decidido resolvesse por viver Jesus, a paisagem atual se modificaria, e refloresceria a primavera no planeta em convulsão.

Assim sendo, ama e contribui em favor do progresso, sem lamentação de qualquer natureza, em paz e confiança.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2015, 2ª Edição.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Elos Vivos

 Mãos abrasadas pela ansiedade ou pelas chamas itinerantes da tarde? Mãos de fogo consumindo-se de solidão. Por entre elas escorriam lancinantes alguns elos da corrente definindo Gustavo no que ele era, no seu próprio ser.

Deitado sob a árvore no canto mais recuado do quintal, a cabeça esmagando antigas notícias de uma revista, ele não vislumbrava horizontes, só sentia a vida que lhe doía. Não tinha esperança e o verde dos seus olhos diluía-se compreendendo tudo.

Os dedos passavam e repassavam os elos como quem desfia um terço áspero e incolor numa exploração exaustiva, revelando-se em gestos inconclusos, incendiados, indagativos: por quê? por quê?

Brigara com Aniette, a mulher, e não fora como de costume para o desabrigo das ruas onde os seus passos rangiam nas calçadas, enquanto ele repetia um estribilho de raiva e exasperação:

- Não volto mais para casa, não volto mais, não volto...

E quando os pés reclamavam repouso, entregava-se à mesa de um bar, terminando sempre refletido num copo vazio, em mais um sonho destroçado. Era quando os ventos da madrugada reconduziam-no para casa, somente eles impulsionavam os seus passos no itinerário da volta.

Naquele dia, também, não buscara refúgio na biblioteca como às vezes fazia, dissolvendo-se em letras que refeitas em palavras iam povoar as páginas dos livros por ele mal tocados. E havia aquele romance inacabado no qual sempre existiam fatos a acrescentar e a diminuir. Era ele o protagonista de uma história que era a sua e, ao mesmo tempo, não era. Pertencia ao mar que se despejava sem tréguas nas conchas das suas mãos? Ou o cachorro ladrando cheio de cismas no fundo do seu peito? Não podia buscar definições. Não lhe matava a sede aquelas águas azuis.

Um elo de silêncio chegou aos seus dedos hirtos. Tão intenso, tão palpável, que ele poderia desenhar usando a trajetória dos pensamentos, seguindo as pegadas das lembranças. Os seus dedos foram-se amaciando numa imponderabilidade de nuvem atravessando o verão. Era a vida que fluía calada. Gustavo escutava os intervalos das batidas do seu coração.

Onde e quando encontrara um silêncio daquele? Só quando ainda menino flagrara a entrega velada de uma flor ao primeiro pássaro da manhã. Naquela hora ele se fizera gesto e colhera para si a plenitude mágica daquele instante.

E como um barco preso à correnteza de um rio que fluísse em sentido contrário, da foz à cabeceira, ele continuou desaguando na infância.

Reviu a fruta aberta no chão amortalhado de folhas e deteve-se curioso diante daquela intimidade subitamente revelada, embora guardado permanecesse o mistério da vida. A sua baleeira nunca permitia aos canários o direito ao pouso. Chorou a sua solidão nos quartos escuros nos dias de febre ou trovoadas. Redescobriu moças regando flores nos jardins pejados de manhãs.

Outros elos desceram-lhe pelas mãos que ainda há pouco estiveram revestidas de saudade. Precisava fazer um acréscimo no romance: havia um vento desembestado descendo uma ladeira esquecida, um sol rubro de medo, uma borboleta de asas partidas.

Eram elos contorcendo-se na sua flexibilidade plástica. Devia ser mais tolerante com Aniette - dizia-lhe outro elo numa dureza de ferro.

Entre ele e Aniette adensava-se um rio de águas turvas rolando encachoeirado para um tempo que se desfazia no nada. Ela a reclamar dos seus mutismos prolongados, a queixar-se dos seus desleixos, da sua falta de iniciativa para resolver os problemas, a pedir a sua palavra quando ele preferia tê-la guardada no poço da garganta.

Ele a exigir o filho que ela não podia ter. Um filho é um caminho que continua e ele estava ali, os pés retidos numa viela. Outra vez veio o silêncio apaziguando tudo numa maciez de elo de algodão.

A tarde de há muito desmanchava-se na noite. Agora eram sombras que passeavam pelas suas mãos. Algumas cochilavam sorrateiras nos seus cabelos em desalinho. Elos de vidro retratavam-lhe o rosto, ora contrafeito, ora desanuviado. Era ele escorrendo-se em si - rio de comportas abertas resvalando pelo leito do tempo.

Um débil traço de luz alcançou-o por entre a folhagem da árvore. Certamente aquilo era arte da lua. Procurou-a. Lá estava: contida, frágil, minguante - um elo de fogo agônico aninhando-se no verde baço de seus olhos.

- Gustavo, vem jantar. Fiz uma sopa daquelas que você gosta. A voz de Aniette, ali diante dele, chegou-lhe mansa numa clara atitude de quem busca a reconciliação.

Ergueu-se aturdido. A lua saltou dos seus olhos indo abrigar-se no regaço de uma nuvem que a acolheu silente.

- Você me desculpa? - De muito longe veio a sua voz.

Aos seus pés caiu a corrente desfazendo-se em elos isolados rolando sem barulho pela inércia da terra seca.

- Ora...

Num impulso de ternura, Aniette estendeu a mão tentando segurar a dele. Só encontrou o vazio.


Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

Poema de Paulo Leminski retirado do livro Caminho da Poesia, Volume 1, Global Editora, Coleção Literatura em minha casa, 1ª Edição, São Paulo, 2003.

O Gato

No alto do muro
pulando no escuro
miando no mato
entrando em apuro
é o gato, seguro.

De antigo passado
e jeito futuro
movimento puro
ar sofisticado
é o gato, de fato

Só pode ser gato
esse bicho exato
acrobata nato
que só cai de quatro

Poesia de Marina Colasanti retirada do livro Caminho da Poesia, Volume 1, Coleção Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 1ª Edição, 2003.

domingo, 1 de novembro de 2020

A Raposa e o Gato

 Um dia, o gato encontrou a raposa no bosque e disse para si mesmo: vou cumprimentá-la. Ela é tão inteligente, tão experiente, tão respeitada por todo mundo...

E fez uma saudação amigável:

- Bom dia, querida Dona Raposa! Como tem passado? Como tem levado a vida, agora que as coisas andam tão caras?

A raposa ficou inchada de orgulho. Olhou o gato de alto a baixo e levou algum tempo para resolver se respondia ou não. Finalmente disse:

- Dobre a língua, seu patife lambedor de bigodes, seu palhaço de meia-tigela, seu pilantra caçador de ratos, você não se enxerga? Quem você pensa que é? Como ousa me perguntar como eu tenho passado? Quem é você? Que é que você sabe? O que aprendeu? Que artes domina?

- Só uma - respondeu o gato modestamente.

- E qual é, se mal pergunto?

- Quando os cachorros correm atrás de mim, consigo escapar, subindo numa árvore.

- Só isso? - disse a raposa. - Pois eu sou senhora de mil artes e além disso tenho um monte de truques que dariam para encher um baú... Fico de coração apertado só de pensar como você é indefeso. Venha comigo, vou lhe ensinar a escapar dos cachorros.

Justamente nesse momento, apareceu um caçador com quatro cachorros. O gato deu um pulo rápido para o tronco de uma árvore e foi lá para cima, para o meio da copa, onde as folhas e os galhos o esconderam por completo.

- Abra o baú, Dona Raposa, abra o baú! - gritava o gato.

Mas não adiantou nada. Os cachorros já tinham agarrado a raposa, que estava bem presa e imóvel nas patas deles.

- Que pena, Dona Raposa! - disse o gato. - Veja a encrenca em que a senhora está, com todas as suas mil artes. Se pelo menos soubesse subir em árvores, como eu, salvava sua vida...


Texto dos Irmãos Grimm (Jakob& Wilhelm) retirado do livro Contos de Grimm: animais encantados - Clássico Universal; Editora Nova Fronteira, Volume 4, Coleção Literatura em Minha Casa, Rio de Janeiro, 2ª Edição, 2002.

sábado, 31 de outubro de 2020

Espelho

 Quando uma casa desmorona por velhice mais abandono, parece que alguma coisa da essência das pessoas que viveram nela e foram felizes - pelo menos por algum tempo ou alternadamente, já que ninguém é feliz sempre - fica pairando sobre os escombros e sobre utensílios abandonados ou esquecidos pela última família que morou nela; tanto que o poeta Pessoa escreveu num poema: "O que eu sou hoje é terem vendido a casa \ e terem morrido todos \ Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez." Aquela casa deve ter sido vendida várias vezes, depois envelheceu e por fim caiu.

O entulho ficou lá enfeando a rua e servindo de abrigo a mendigos e outros desses que têm a mania de pensar que são rebeldes, contestadores, não querem trato com o que chamam de sistema, mas não levam esse pensamento às últimas consequências: não abrem mão de um bom churrasco de gato nem do ato mais visceral de descarregar seus detritos quando se sentem pesados por dentro. Em todo caso, uma vez aliviados lembram-se de que fizeram uma concessão aos costumes e pensam que se redimem deixando de se limpar. Cada qual com a sua filosofia, como disse o general de granadeiros Contumácio Coribantes, vencedor da Batalha de Filigranas, que, como se sabe, mudou o rumo da história dos países do lado de baixo do Equador.

Então o entulho do desabamento ficou lá poluindo a rua e atraindo moscas, lagartixas, ratos, baratas e outros entes obnóxios, até que saqueadores tomaram conhecimento e começaram seu trabalho sistemático de extrair e carregar tudo em que vissem algum valor. Durante dias, talvez semanas, caminhões, kombis e até burros-sem-rabo, que ainda existem para quem sabe onde achá-los, transportaram ladrilhos, azulejos, grades, pias, torneiras, painéis de vidraças milagrosamente inteiros, portas, portais, caixilhos e esquadrias de janelas, fechaduras antigas ainda perfeitas, algumas sem as chaves; dois ou três armários enormes de madeira maciça para guardar louça ou roupa de cama e mesa e que os últimos moradores não quiseram carregar, certamente devido ao tamanho e ao peso. Esses foram desmontados a duras penas e transportados em um caminhão novo com placa de Vassouras, RJ, que alguém anotou por curiosidade.

Havia também um guarda-roupa, esse não tão antigo nem de boa madeira, tanto que não resistiu ao esboroo da casa, ficou todo quebrado e desconjuntado e não interessou a nenhum dos primeiros predadores. Mas quando chegou o segundo escalão, o chamado pente-fino, formado pelos que se contentam com sobras e rebotalhos, alguém deu uma olhada no guarda-roupa arrebentado, talvez esperando ou desejando que em alguma das muitas gavetas, quem sabe, tivesse ficado algum objeto de valor, ou mesmo dinheiro, é impressionante o que existe de gente distraída no mundo, e muitas vezes o prejuízo de um distraído acaba sendo o lucro de um porfioso.

Dada a vista nas gavetas, quase todas ocadas por cupins, e nada encontrando, a pessoa notou que uma porta estava inteira e sã e poderia ser aproveitada, há sempre colocação para uma boa peça de madeira já curtida pelo tempo e vacinada contra cupins, poderia servir para tampo de mesa, para um banco, para prateleiras de estante, era só esperar o encontro dela com quem a estivesse procurando, se esses encontros nunca acontecessem não haveria necessidade de belchiores, que sempre existiram e sempre existirão.

Depois de muito esforço, solavancos e engenho porque o puxador, também de madeira, estava quebrado e não dava pega, o pente-fino conseguiu abrir a porta - e teve nova surpresa. Do lado de dentro havia um espelho biselado de metro e meio de altura e sessenta e cinco centímetros de largura em perfeitíssimo estado, só que por cima da grossa camada de poeira podia se escrever nele com um dedo uma frase completa, como "Todo governo e delinquente".

Razoável conhecedor de coisas antigas, o vasculhador de ruínas imaginou ou percebeu que o espelho tinha sido reaproveitado naquele armário: a moldura era diferente da madeira da porta, indicando que o espelho devia ter estado numa parede, talvez num salão, acima de um bufê ou de um sofá; ou num quarto de vestir; ou em uma loja de roupa ou calçado. E era importado, provavelmente da França, cujos artesãos inventaram esse tipo de corte chanfrado para evitar arestas nas margens de placas de vidro ou de madeira.

Mas - e o aço? Estaria ainda bom depois de tanta vivência e de tantos sacolejos?

Como saber, com tanta poeira encrostada em cima? Olhou em volta, viu umas folhas de jornal jogadas nas ruínas pelo vento. Pegou duas folhas, fez uma pelota, experimentou. A seco não adiantava, apenas espalhava a poeira. Só molhando o papel, mas onde achar água? O homem tinha expediente, não ia empacar por tão pouco. Procurou um lugar protegido da vista de quem passasse na rua e urinou na pelota de jornal. Com o papel molhado limpou duas pequenas áreas do espelho e por elas deduziu que o aço devia estar bom de ponta a ponta.

Satisfeito com o achado, nosso homem tornou a fechar a porta do armário, esperando encontrá-lo intacto quando voltasse com uma kombi de aluguel para levar o espelho; se ninguém o vira antes, certamente ninguém ia vê-lo naquele dia. Mas antes era preciso agradecer ao santo fumando um bom charuto ali mesmo, com calma; para quê pressa, se o dia estava ganho? Depois de limpado e exposto no belchior, o espelho não demoraria a encontrar comprador.

Não errou na previsão. Logo no primeiro dia um decorador se interessou, indagou o preço. Achou caro, fez uma contraproposta. Experiente, o belchior não quis vender ao primeiro interessado, mas anotou nome e telefone. Horas depois entrou um casal jovem procurando uma mesa de jantar extensível. Não gostaram das únicas duas que havia, ambas precisando de conserto, o que encareceria o preço final. Quando saíam, viram o espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz baixa, compraram sem regatear.

Depois de muito debate e experimentação concluíram juntos que o espelho ficaria bem na sala de visitas, instalado horizontalmente atrás do sofá de três lugares. Oposto a ele, separando a sala de visitas da de jantar, ficava uma marquesa de jacarandá trabalhado, também comprada em belchior e restaurada por empalhador recomendado pelo próprio vendedor. De cada lado do sofá havia uma poltrona Luís XV estofada de veludo caramelo pelo artista Mário Cotas, mas para isso tiveram que esperar seis meses, a lista de encomendas dele era enorme. Valeu a espera. A sala ficou coisa de revista, diziam os amigos.

E o casal ficou feliz com a sala. Quando saíam para algum compromisso social, sentiam-se como exilados e arranjavam pretextos para se retirar mais cedo e voltar depressa para a sala acolhedora. Logo perceberam que a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria sala plebeia, com móveis de sentar, tapetes, alguns quadros indiferentes, riquefifes vários - igual a um sem-número de outras.

Por causa do espelho, e parece que sem perceber, o casal ficou passando a maior parte do tempo na sala, e às vezes até dormiam nela, um no sofá, outro na marquesa. Por que faziam isso? Se perguntados, possivelmente não saberiam o que responder. Sentiam-se felizes na sala, seria a resposta singela. Mas não precisavam dar essa explicação a ninguém, primeiro porque eram sozinhos, e a senhora que cuidava da casa e da cozinha dormia fora; segundo, porque achavam aquilo natural, e o que é natural carece de explicação. Quanto mais olhavam para o espelho e viam a sala e eles mesmos refletidos no vidro impecável, mas quase etéreo, mais gostavam dele; e já estavam achando que o encontro deles com o espelho, ou o contrário - o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem -, podia ser alguma arrumação do destino; e se consideravam escolhidos. Imagine se o espelho tivesse ido para um novo-rico qualquer, um capadócio, um bicheiro, um fala-gritado?

Mas, como disse um cantador, a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele deve estar prevenido porque se desmancha à toa, basta um ventinho, uma palavra impensada.

Foi o que aconteceu, ao que parece, porque, quando voltaram o filme e o repassaram para ver se entendiam, ficaram achando que a mudança começara numa tarde esplêndida de domingo, o sol iluminando a varanda da frente, crianças brincando, gritando e rindo embaixo na praça, o casal na sala gozando a companhia do espelho. De repente a mulher, serena, alegre, reflexiva, deitada na marquesa, olhando pela porta da varanda e torcendo um chumaço de cabelo com o polegar e o indicador da mão direita, disse em voz calma, mais como se fosse um pensamento que tivesse lhe escapado pela boca:

- Não acha que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho?

O homem, sempre atencioso, deitado no sofá, os pés descalços sobre uma almofada, os joelhos dobrados, lendo o segundo volume do Corpo de Baile de Guimarães Rosa, pousou-o aberto sobre o peito e olhou intrigado para a mulher.

- Como é mesmo, filha?

- Eu disse alguma coisa? - indagou a mulher, olhando-o também intrigada.

- Disse que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho. Aliás, não disse; perguntou se eu não achava.

- Foi, é? Ora essa! - Voltou a torcer a mecha de cabelo por um instante, calada. Bem, se eu disse, então é porque estava pensando.

Ele pegou novamente o livro, mudou de ideia antes de localizar o ponto onde havia parado. Pousou-o de novo no peito. A observação da mulher ficou interessando mais.

- Esse pensamento é novo ou já lhe ocorreu antes? - perguntou.

Como não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que dias antes no trabalho, ao ouvir uma colega falar do fim de semana altamente relaxante que passara com o marido e amigos em um hotel-fazenda no Vale do Paraíba, fizera uma comparação e ficara em dúvida se eles dois estariam certos fechando-se tanto em casa e em si mesmos por causa do espelho, como se o mundo lá fora não existisse; e se indagara se isso não acabaria prejudicando-os de alguma maneira.

- Bem, já que o assunto pulou a cerca, é porque chegou a hora. Então não vamos continuar fazendo de conta que ele não existe. Eu também tenho me preocupado com o espelho de uns dias pra cá.

- É mesmo? Como assim? - disse ela, ao mesmo tempo em que passava da posição de semideitada para a de semi-sentada. 

- Um dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui conversando com Emer e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para eles para dizer qualquer coisa, tive uma sensação esquisita. Emer me perguntara sobre meninos de rua, a matança da Candelária. Quando dei minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram Emer e Zenaide. Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros. Esses aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles eram as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma vergonha, uma desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião verdadeira estava nas imagens refletidas. Fiquei horrorizado. Disfarcei, levantei, fui à varanda pretextando ter ouvido qualquer coisa lá fora. Felizmente você apareceu logo com o café.

- Me lembro que quando entrei com a bandeja você vinha da varanda. Só isso.

- Então eles também não devem ter notado. Ainda bem. Mas fiquei transtornado. Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles.

Ela olhou demoradamente para o espelho e disse: - Gostaria muito de pensar... pensar não, ter certeza... de que você tivesse imaginado isso.

- Eu também. Mas não dá para fraudar. Foi real.

Não falaram mais no assunto, mas pensaram muito, cada um por si. De tardinha fizeram um lanche na sala de jantar, esforçando-se os dois para não falarem no espelho nem olharem para ele. Depois ligaram a televisão, nada de interessante. Que tal um cinema à noite? Consultaram o jornal, optaram por uma comédia inglesa, "O Garçom Vermelho", de Peter Ustinov. Os ingleses são bons em comédia, e Ustinov melhor ainda, lembra-se de "Vice-Versa"?

O filme é a história de um garçom de Charlotte Stret que encontra a seu lado num banco de metrô uma bolsinha minúscula. Guarda-a no bolso para ver depois se contém algum valor. Quando a abre em casa, vê que tem um diamante do tamanho de ovo de codorna, com nota de venda de uma loja de Amsterdã. O preço, uma fortuna. O filme todo é o desespero do garçom para encontrar um lugar seguro onde esconder o diamante até poder dispor dele sem risco. Não tem experiência em atividades clandestinas e não pode consultar ninguém para não levantar suspeita. Não pode dividir o problema com a mulher porque ela tem coceira na língua. Todo esconderijo que imagina logo lhe parece escancarado. Levanta-se no meio da noite para mudar o diamante de lugar. Pensa engoli-lo para recuperá-lo no dia seguinte, e assim ir fazendo dia após dia, mas na primeira tentativa quase morre engasgado, o raio do diamante bem podia ser um pouco menor.

O homem vive sonolento, cochila no trabalho, o chefe o adverte. Finalmente o pobre garçom conclui que não existe em toda Londres um lugar seguro para quem não tem diamantes esconder um diamante do tamanho de um ovo de codorna. E resolve entregá-lo à polícia.

Em vez de distraí-los, o filme agravou as preocupações inconfessáveis do casal. Na mesma noite retiraram o espelho da parede, o que não foi difícil: bastou retirar com torquês as três escápulas do alto, içar o espelho das três escápulas que o sustentavam embaixo, depois virá-lo de frente para a parede e pousá-lo no chão atrás do sofá.

No dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam negócio pela primeira proposta, como tinham feito quando da compra. Mas continuaram usando espelhos, ele para fazer a barba, ela para se pintar e pentear.


Conto de José J. Veiga retirado do livro As Eternas Coincidências, Crônica & Conto, série Literatura em minha casa, Bertrand Brasil, Volume 2, Rio de Janeiro, 2003.

Meditação e Prece

 O homem comum vive para gozar, usufruir, beneficiar-se no imediatismo da exigência corporal.

O homem espiritual produz para o futuro, transformando as tendências do prazer imediatista em emoções salutares que armazena para os gozos transcendentais.

Desse modo, o primeiro come, dorme e fala muito, negando-se à meditação para crescer e iluminar-se.

O segundo, porque medita, come, dorme, e fala pouco, ponderando sobre os valores existenciais que lhe são de relevante significado para o processo de evolução.

Grande número de pessoas afirma que a meditação não lhe é uma experiência desconhecida.

Acreditam, desse modo, essas pessoas, que, cigarro na mão, olhar fixo num "ponto morto", entregam-se à meditação, quando vinculadas a sentimentos mais grosseiros, apenas estão divagando.

Algumas outras, embriagando-se com os alcoólicos, detém a mente na fixação de ideias perturbadoras e supõem meditar, quando somente fogem, sucumbindo ao peso da razão obnubilada.

A meditação exige disciplina mental, esforço constante e treinamento, mediante os quais exerce comando sobre as ideias desordenadas que desbordam dos arquivos da memória e assaltam a consciência, quando esta se detém a reflexionar.

O homem tem necessidade urgente de meditar para saber agir e entregar-se aos objetivos superiores que a vida lhe destina.

A meditação abre espaço para a convivência com a prece, que lhe é irmã gêmea.

A meditação aclara o raciocínio.

A prece ilumina-o.

A meditação acalma.

A prece dulcifica.

A meditação fortalece.

A prece sustenta.

A meditação liberta.

A prece conduz.

A meditação realiza.

A prece purifica.

A meditação dilata os valores que dormem no ser.

A prece canaliza-os para as realizações edificantes.

A meditação eleva às regiões sublimes de onde procede o Espírito.

A prece imanta-o às matrizes da sua origem e para cujo lar retornará.

A meditação dá vida.

A prece é combustível para a sua sustentação.

A meditação e a prece são instrumentos ao alcance de todos aqueles que empreendem a viagem de conscientização da sua realidade imortal.

Reserva-te o hábito da meditação e apoia-te no recurso da prece.

Antes de tomares decisões, medita, e antes de agires, ora.

A meditação te equacionará todas as dificuldades e a prece te concederá lucidez para a atitude correta.

Jesus, a cada passo, buscava o silêncio da Natureza, durante o Seu ministério, para meditar, logo entregando-Se à prece, de cujo concurso retornava à convivência dos homens, a fim de conduzi-los, sofrê-los e amá-los sem desfalecimento, até o fim.


Texto retirado do livro Momentos de Esperança; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A Prova do Gato

 O rapaz, moço, solteiro, rico, estava em seu apartamento de Copacabana, deitado no sofá, ouvindo jazz, quando tocaram a campainha; entrou em cavalheiro de 50 anos, muito bem vestido, que lhe apontou um revólver, logo depois de fechada a porta.

- Este revólver está carregado, mas não tenha medo, que estou com os nervos dominados. Porte-se como homem. O senhor é Fulano de Tal?

- Perfeitamente. Qual o problema? Por que esse revólver?

- Vamos com calma. Só quero umas informações.

- Não tenho nada com esse contrabando aí.

- Mas talvez tenha muito com outro tipo de pirataria. O senhor conhece a Conceição?

- Conheço várias.

- Estou falando da Conceição de Tal, morena, 28 anos, desquitada.

- Conheço ligeiramente.

- Diga a verdade, do contrário posso perder a paciência. Só estou aqui para saber a verdade, o resto não me interessa.

- Conheço.

- Muito bem.

- E a mim o senhor conhece?

- Não, nunca o vi mais gordo nem tão armado.

- Deixe de brincadeira: o senhor me conhece ou não?

- De nome.

- E de vista?

- Já o vi umas três vezes.

- Está melhorando. Sabe o senhor que não me casei até hoje com a Conceição por ter mulher e filhos? Mas que tenho com ela há mais de dois anos e três meses uma relação muito séria, muito honrada, muito digna? Sabe?

- Não tinha o prazer.

- Sabe ou não sabe?

- Sei mais ou menos.

- Mas pelo menos sabia da minha ligação?...

- Sabia.

- Preste atenção na resposta: o senhor esteve sábado no Copa com a Conceição?

- Estive. Fomos apresentados dois dias antes e fizemos boa camaradagem.

- O que o senhor chama de boa camaradagem?

- Me simpatizei amigavelmente com ela e a convidei para jantar.

- Só isto?

- Só isto.

- O senhor está mentindo. Minta outra vez, e eu sou capaz de perder a calma. Só isto?! O senhor depois não saiu de automóvel com ela?

- Bem, meu amigo, vou lhe dizer tudo.

- É o meu jeito. Meu problema é com ela; diga tudo e não se arrependerá.

- Às quatro horas da manhã saímos os dois de automóvel e demos uma volta até o Leblon.

- Beijos?

- Sim, beijos.

- O senhor tem certeza de que a Conceição é esta de que lhe falo?

- Certeza absoluta.

- Não há possibilidade de uma coincidência? Então, prossiga.

- Depois fui até o apartamento dela.

- Na rua tal, número tal, apartamento tal?

- Exatamente.

- Bem, mas isso não prova nada. O senhor até agora disse que deu um beijo na Conceição. Quero saber tudo. Escuta uma coisa: esse apartamento tem um tapete azul na sala?

- Tem um tapete azul, azul vivo.

- Ah, então deve ser ela mesma. E ela lhe mostrou um aparelho de alta-fidelidade?

- Mostrou.

- Foi presente meu. Que miserável! E depois?

- Depois... depois... ela me deu um drinque qualquer...

- Vinho do Porto?

- Isto mesmo: vinho do Porto.

- Tocou na vitrola um disco chamado This is Sinatra?

- Tocou... tocou... This is Sinatra...

- E depois?

- Bem, vai me compreender, mas eu acho que não é preciso contar mais nada...

- Pois vai contar tudo direitinho. Até agora o que houve entre o senhor e a Conceição foi um jantar e uns beijinhos. Além do mais, estou muito desconfiado de que se trata de uma amiga da Conceição, uma outra Conceição, de São Paulo. O senhor jura que ela não era paulista? Não tinha um certo sotaque?

- Não reparei.

- Porque a Conceição, a minha Conceição, me disse que ia subir para Petrópolis. Ah! Agora eu me lembro de um teste definitivo! Tinha lá um gato? Quando ela sobe, sempre leva o gato.

- Isto mesmo, um gato... Angorá, se não me engano.

- Certo, certíssimo, um gato angorá. Eu tenho ódio a esse gato! Um dia eu ainda mato aquele gato!

- O senhor tem toda razão: o gato fica pulando em cima da gente a noite toda.

- O pior é que fica miando... Já me arranhou todo... Ah, eu ainda mato aquele gato!... Boa-noite, cavalheiro. Eu vou matar aquele gato!...


Crônica de Paulo Mendes Campos retirada do livro As Eternas Coincidências, série Crônica & Conto, Literatura em minha casa, Volume 2, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2003.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Madrugada

 Desconhecidos - mas somente antes do encontro. Que acontecera no bar. Então, unidos pela mesma cerveja, pelo mesmo desalento, deixaram que o desconhecimento se transmutasse naquela amizade um pouco febril dos que nunca se viram antes. Entre protestos de estima e goles de cerveja depositavam lentos na mesa os problemas íntimos. Enquanto um ouvia, os olhos molhados não se sabia se de álcool ou pranto contido, o outro pensava que nunca tinha encontrado alguém que o compreendesse tão completamente. Era talvez porque não trocavam estímulos, apenas ouviam com ar penalizado, na sabedoria extrema dos que têm consciência de não poder dar nada. Uma mão estendida áspera por entre os copos era o consolo único que se poderiam oferecer.

Com a lucidez dos embriagados, haviam-se reconhecido desde o primeiro momento. Ou talvez estivessem realmente destinados um ao outro, e mesmo sem o álcool, numa rua repleta saberiam encontrar-se. o fulgor nos olhos e a incerteza intensificada nos passos fora a pergunta de um e a resposta de outro.

O primeiro estava ali sentado há duas horas, mas já fazia parte do ambiente. Um pouco porque seu terno era de cor igual às paredes do fundo, mas principalmente porque ele era todo bar. Na forma, no conteúdo. Mas exatamente, aquele bar em especial, que tinha uma coruja no nome e nos desenhos da parede. Ave que ele imitava involuntário, nos ombros contraídos, no olhar verrumante. Olhar que lançou sobre o outro no momento da entrada. Este vinha ainda incerto, como se buscasse. E sua imprecisão atingiu o paroxismo quando no choque de olhares. Vacilou sobre as pernas, a roupa parecendo mais amarrotada, subitamente um braço se descontrolou atingindo a mesa mais próxima, varrendo-a quase com doçura. A doçura dos que de repente encontraram sem querer de sobreaviso. A loura oxigenada deu um grito e o homem que a acompanhava aprumou-se em ofensa, pronto a atacar, macho pré-histórico protegendo a fêmea em perigo. Ainda perdido no espanto, o segundo bêbado não reagiu. Suas mãos estavam cheias apenas de perplexidade, não de ódio. Nesse momento, o primeiro bêbado enristou seu metro e noventa de altura, até então diluído no encolhimento de coruja em que se mantinha. Sem dizer palavra encaminhou-se para o amigo - pois que seus olhares haviam sido tão fundos que dispensavam ritos preparatórios antes de empregar o substantivo - e tomando-o pelo braço, levou para a mesa. O acompanhante da loura acalmou-se de imediato, enquanto esta ficava ainda mais oxigenada no despeito.

E os dois, satisfeitos com a inesperada oportunidade para a comunicação, foram objetivos ao assunto. Estavam sós. A mulher de um estava viajando; o outro não tinha mulher. Mas tinha noiva, e desconfiava que ela o andava traindo. O outro maravilhou-se com a coincidência, pois tinha quase certeza ser a viagem da mulher apenas um pretexto para encontrar com o amante. Unidos na mesma dor-de-cotovelo, sua amizade esquentou a razão de cem graus por segundo. Ambos estavam insatisfeitos nos respectivos empregos. Operários, planejaram greves, piquetes, sindicatos, falaram mal do governo. Um deles, que tinha lido uma frase de Marx num almanaque, citou-o com sucesso. E o engajamento era outro elo a reforçar a corrente já sólida que os unia. De elo em elo, ligavam-se cada vez mais. A tal ponto que simplesmente não cabiam mais em si mesmo. Os copos colocavam-se em pé, oscilantes como se estivessem em banho-maria, os cabelos despenteados, rostos vermelhos, olhos chispantes - furiosos e agressivos no diálogo. Nas outras mesas, seres provavelmente frustrados no desencontro farejavam briga e ergueram as cabeças, espreitando. Não sabiam que, por deficiência de vocabulário, a amizade não raro se descontrola e pode levar ao crime. Apenas os dois pressentiram isso, tão sensíveis haviam-se  tornado no investigar sem palavras do terreno que ora pisavam. Tudo neles era recíproco - e o medo de se ferirem cresceu junto para explodir num silêncio súbito. Então se encararam, mais desgrenhados do que nunca, e com tapinhas nas costas voltaram à delicadeza dos primeiros momentos.

Mas os frustrados que enchiam o bar estavam achando aquilo um grande desaforo. Não era permitido a duas pessoas se encontrarem num sábado à noite e, ostensivas, humilharem a todos com sua infelicidade dividida. O desespero não repartido dos outros era uma raiva grande, expressa nos gestos de quem não suporta mais. Com a sutileza dos donos de bar, o dono deste sentiu a hostilidade crescente. E medroso de que o choque resultasse em prejuízos para si, colocou-se sem hesitação ao lado da maioria. Dirigiu-se aos dois operários e pediu-lhes que se retirassem. Apoiado em seu metro e noventa, um deles quis reagir. Mas o outro, mais fraco e portanto menos heroico e mais realista, advertiu-o da inconveniência da reação. E olharam ambos os outros desencontrados pelas mesas - subitamente encontrados no mesmo ódio - formando uma muralha indignada. O mais alto, menos por situação financeira do que por força, caindo em si fez questão absoluta de pagar todos os gastos. De braço dado, saíram para a madrugada.

Fora, depararam com o frio e o brilho desmaiado das luzes de mercúrio. Encolheram-se devagar, as desgraças mútuas morrendo em calafrios. O domingo vinha vindo. Eles não sabiam o que fazer das mãos cheias de amizade e lembranças das mulheres ausentes. Bêbados como estavam, a única solução seria abraçarem-se e cantarem. Foi o que fizeram. Não satisfeitos com o gesto e as palavras, desabotoaram as braguilhas e mijaram em comum numa festa de espuma. Como no poema de Vinícius que não tinham lido nem teriam jamais. Depois calaram o olharam para longe, para além dos sexos nas mãos. Nas bandas do rio, amanhecia.


Texto de Caio Fernando Abreu retirado do livro Inventário do Ir-remediável, Editora Sulina, Porto Alegre, 2ª Edição, 1995.