domingo, 11 de fevereiro de 2024

Prova Falsa

Quem teve a ideia foi o padrinho da caçula - ele me conta. Trouxe o cachorro de presente e logo a família inteira se apaixonou pelo bicho. Ele até que não é contra isso de se ter um animalzinho em casa, desde que seja obediente e com um mínimo de educação.

- Mas o cachorro era um chato - desabafou.

Desses cachorrinhos de raça, cheio de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de galocha. E, como se isto não bastasse, implicava com o dono da casa.

- Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas quando eu entrava em casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de francesa.

Ainda por cima era puxa-saco. Lembrava certos políticos da oposição, que espinafram o ministro, mas quando estão com o ministro ficam mais por baixo que tapete de porão. Quando cruzavam num corredor ou qualquer outra dependência da casa, o desgraçado rosnava ameaçador, mas quando a patroa estava perto abanava o rabinho, fingindo-se amigo.

- Quando eu reclamava, dizendo que o cachorro era um cínico, minha mulher brigava comigo, dizendo que nunca houve cachorro fingido e eu é que implicava com o "pobrezinho".

Num rápido balanço poderia assinalar: o cachorro comeu oito meias suas, roeu a manga de um paletó de casemira inglesa, rasgara diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava para locais incríveis. A vida lá em sua casa estava se tornando insuportável. Estava vendo a hora em que se desquitava por causa daquele bicho cretino. Tentou mandá-lo embora umas vinte vezes e era uma choradeira das crianças e uma espinafração da mulher.

- Você é um desalmado - disse ela, uma vez.

Venceu a guerra fria com o cachorro graças à má educação do adversário. O cãozinho começou a fazer pipi onde não devia. Várias vezes exemplado, prosseguiu no feio vício. Fez diversas vezes no tapete da sala. Fez duas na boneca da filha maior. Quatro ou cinco vezes fez nos brinquedos da caçula. E tudo culminou com o pipi que fez em cima do vestido novo de sua mulher.

- Aí mandaram o cachorro embora? - perguntei.

- Mandaram. Mas eu fiz questão de dá-lo de presente a um amigo que adora cachorros. Ele está levando um vidão em sua nova residência.

- Ué... Mas você não o detestava? Como é que ainda arranjou essa sopa pra ele?

- Problema de consciência - explicou: - O pipi não era dele.

E suspirou cheio de remorso.


Texto de Stanislaw Ponte Preta retirado do livro Para Gostar de Ler, Volume 13 - Histórias Divertidas, Editora Ática, São Paulo, 1993.

Maria José

Faz um ano que Maria José morreu. Era meiga quase sempre, violenta quando necessário. Eu era menino e apanhava de um companheiro maior, quando ela me gritou da sacada se eu não via a pedra que marcava o gol. Dei uma tijolada no outro e acabei com a briga como por milagre.

Visitava os miseráveis, internava indigentes enfermos, devotava-se ao alívio de misérias físicas e morais do próximo, estudava o mistério teológico, exigia sempre o mais difícil de si mesma, comungava todos os dias, ingressou na Ordem Terceira de São Francisco. Mas nunca deixou de ter na gaveta o revólver que recebera, menina-e-moça, das mãos do pai, e que empunhou no quintal noturno, perseguindo um ladrão, para espanto de meus cinco anos.

Tratou-me com a dureza e o carinho que mereciam a rebeldia e o verdor da minha meninice. Ensinou-me a ler as primeiras sentenças; me falava no Cura de Ars e nos dois Franciscos, o de Sales e o de Assis; apresentou-me aos contos de Edgar Poe e aos poemas de Baudelaire; dizia-me sorrindo versos de Antônio Nobre que decorara em menina; discutia comigo as ideias finais de Tolstoi; escutava maternalmente meus contos toscos. Quando me desgarrei nos primeiros enleios adolescentes, Maria José com irônico afeto me repetia a advertência de Drummond: "Paulo, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será".

Logo que me fiz homenzinho, deixou a dureza e se fez a minha amiga: nada me perguntava, adivinhava tudo.

Terna e firme, nunca lhe vi a fraqueza da pieguice. Com o gosto espontâneo da qualidade das coisas, renunciou às vaidades mais singelas. Sensível, alegre, aprendeu a encarar o sofrimento de olhos lúcidos. Fiel à disciplina religiosa, compreendia celestialmente as almas que se transviam. Fé, Esperança e Caridade eram para ela a flecha e o alvo das criaturas.

Tornara-se tão íntima da substância terrestre - o dor - que se fazia difícil para o médico saber o que sentia; acabava dizendo que doía um pouco, por delicadeza.

Capaz de longos jejuns e abstinências, já no final da vida, podia acompanhar um casal amigo a Copacabana, passar do bar da moda ao restaurante diferente, beber dois ou três uísques em santa serenidade e aceitar com alegria o prato exótico.

Gostava das pessoas erradas, consumidas de paixão, admirava São Paulo e Santo Agostinho, acreditava que era preciso se fazer violência para entrar no reino celeste.

Poucas horas antes de morrer, pediu um conhaque e sorriu, destemida e doce, como quem vai partir para o céu. Santificara-se.

Deus era o dia e a noite de seu coração, o Pai, a piedade, o fogo do espírito.

Perdi quem me amava e perdoava, quem me encomendava à compaixão do Criador e me defendia contra a mundo de revólver na mão.


Texto de Paulo Mendes Campos retirado do livro Para Gostar de Ler, Volume 5 - Crônicas, Editora Ática, São Paulo, 9ª Edição, 1994.

O Telefone

Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:

Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.

Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página 1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra o quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos.

Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me a honra e o extraordinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e falamos de coisas antigas - mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser as parolas vadias de cupinchas velhos - quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém lhe queria falar, o que infelizmente eu não podia permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser usado "pelo assinante, pessoas de sua família, seus representantes ou empregados".

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; "dura lex sed lex"*; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho - mesmo que esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois "o uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o aparelho".

Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair.

Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia - porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo o potencial tremendo de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado - cuém cuém cuém - quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar. Falar nisso, vou comer; são horas. Vou comer contemplando tristemente o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão, pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.

Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife, e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas o cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.

* a lei é dura, mas é a lei.

Texto de Rubem Braga retirado do livro Para Gostar de Ler, Volume 4 - Crônicas, Editora Ática, São Paulo, 8ª Edição, 1994.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O Homem Nu

Ao acordar, disse para a mulher:

- Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

- Explique isso ao homem - ponderou a mulher.

- Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar - amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:

- Maria! Abre aí, Maria. Sou eu - chamou em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiando no lanço de escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

- Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a desce.

- Ah, isso é que não! - fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe do seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime de Terror.

- Isso é que não - repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois, experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou desce? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

- Maria! Abre esta porta! - gritava, desta vez esmurrando a porta sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

- Bom dia, minha senhora - disse ele, confuso. - Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

- Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

- Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

- É um tarado!

- Olha, que horror!

- Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

- Deve ser a polícia - disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.


Crônica de Fernando Sabino retirada do livro Para Gostar de Ler, Volume 3 - Crônicas, Editora Ática, São Paulo, 14ª Edição, 2000.

Horóscopo

- Telefonaram do escritório, bem. Seu chefe mandou perguntar por que você não foi trabalhar.

- E você deu o motivo?

- Não.

- Podia ter dado.

- Ora, Alfredinho, isso é motivo que se dê?

- Por que não? Se há motivo, está justificado. Sem motivo é que não cola.

- Então eu ia dizer ao seu chefe que você não trabalha hoje porque o seu horóscopo aconselha: "Fique em casa descansando"?

- E daí, amor? Se meu signo é Touro, e se Touro acha conveniente que eu não faça nada, como é que eu vou desobedecer a ele?

- É, mas com certeza seu chefe não é Touro, e não vai achar graça nisso.

- Ele é Áries, está ouvindo? E o dia não está para relações entre Áries e Touro. Pega aí o jornal. Faz favor de ler com esses belos olhos cor de pervinca: "Áries - Evite  rigorosamente discussões com subordinados".

- Mas se ele evitar, não tem perigo para você.

- Ele pode evitar, sim, deve evitar. E para colaborar com ele, eu fico em casa.

- Mas se você não comparece, ele pode vir ao telefone e pegar numa discussão danada com você, dessas de sair fogo.

- Não atendo telefone durante o dia. Não posso atender. Não vê que estou descansando, que o horóscopo me mandou descansar? É favor não fazer rebuliço nesta casa. Amor e paz, para o descanso do guerreiro.

- Pra mim você está é com preguiça, e das bravas.

- Posso estar com preguiça, e daí? Preguiça é relaxante, restaura as energias, predispõe para o trabalho no dia seguinte. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se eu não faço nada hoje, não é porque estou com preguiça. É em atenção a um mandamento superior, à mensagem que vem dos astros, você não percebe?

- Percebo, sim, mas não concordo.

- Pode-se saber por que a excelentíssima não concorda com aquilo que percebe e que está devidamente explicado?

- Pode.

- Então explica, vamos.

- Gozado, Alfredinho, até parece que para você só existem dois signos no zodíaco: Touro e Áries, você e o patrão.

- Espera lá, você queria que eu não prestasse atenção em Touro? Áries eu li hoje por acaso, porque está ao lado de Touro, em coluna paralela.

- Coincidência: você saber que seu chefe é Áries, e...

- É, sim.

- E por que você guardou na cabeça que ele é Áries?

- Ora por quê! Ele fez anos no mês passado, amorzinho. Até contei a você que oferecemos a ele uma batedeira. Soubemos que a mulher precisava de batedeira, fizemos uma vaquinha, pronto. Mas por que você diz que para mim só existem dois signos?

- Pelo menos Sagitário você ignora.

- Como que eu ia ignorar Sagitário, se é o signo de você, minha orquídea de novembro 25?

- É, mas esqueceu de ler que o dia é propício para reuniões sociais de sagitário, e sabia que esta sua orquídea de novembro 25 vai reunir hoje as amigas aqui em casa? Trate de se mandar, querido.

- Sem essa! Touro me manda descansar em casa, e você me enche a casa com mulheres?

- É Sagitário que recomenda, mon ange.

- Sagitário não ia fazer isso comigo! Eu já tinha harmonizado Touro com Áries!

- Pode continuar harmonizando, se for descansar em casa de Tostes, que é Virgem, eu sei, ele é nosso padrinho de casamento. O horóscopo do Tostes recomenda prestar serviço a um amigo. Assim, Touro, Virgem, Áries e Sagitário ficam inteiramente harmonizados, cada um na sua, um por todos, todos por um. Ande, vá se vestir rapidinho, rapidinho, e rua, seu vagabundo!


Crônica de Carlos Drummond de Andrade retirado do livro Para Gostar de Ler, Volume 2 - Crônicas, Editora Ática, São Paulo, 4ª Edição, 1980.

Tempo de Chuva

Era bom, no tempo de chuva, ficar brincando na enxurrada. A mãe achava ruim, prometia bater, mas Pitu não resistia. Mal começava a chover, saía na chuva, molhava o corpo, corria pra lá e pra cá. Se a chuva era forte, melhor: Pitu preparava barcos e ia soltá-los na enxurrada que passava entre a rua e o passeio. Molhava o corpo. Sujava de barro o corpo e a calça. Era uma festa! O rio se enchia mais e ficava bom pra pescar bagres. Os bagres deviam ter medo da luz, pois só apareciam à noite. De dia, só lambaris e cascudos. À noite mudava o anzol e iam pescar bagres. A mãe ficava nervosa, quando Marquinhos não estava no Bálsamo pra ir junto. Não gostava que fossem apenas os meninos menores. Beirada de rio era um perigo, tinha cobras, podiam cair dentro. Muita gente que sabia nadar morria enroscada em ramos ou pedras. Ela tinha muito medo e ficava falando, falando... No sítio, era mais gostoso, João ia junto, pescavam no açude, traíra e tilápia. Peixe de açude é menos chato, fácil de cair na isca. No rio, só dava peixe miúdo e era chato achar minhocas ou aleluia. No sítio, quando tinham milho verde, era fácil: os peixes do açude vinham sem demora. Depois, uma travessa cheia de peixes fritinhos, como só o João sabia fazer. O céu estava carregado de nuvens escuras, começavam os relâmpagos e trovões distantes. A mãe tinha muito medo deles. Pitu ria e achava uma bobagem dela. Ficava muito feliz, sabia que ia cair muita chuva, das grossas. A enxurrada desceria forte da rua de cima. As águas ficariam vermelhas ou marrons e os bagres sairiam mesmo com a luz do dia. O Marquinhos estava em Ribeirão e não poderia denunciá-lo pra mãe. Pura inveja do Marquinhos. O que tinha de mais ele brincar na chuva, na enxurrada? A garganta dele não era manhosa como a do irmão. Nem gripe ele tinha. A chuva já estava caindo. Trovejava muito, muitos relâmpagos. Peixe não gosta de trovão, some, parece que tem medo como a mãe. Ele se alegrava com a chuva, enquanto a mãe queimava os ramos bentos...


Texto de Elias José, As Curtições de Pitu, São Paulo/Brasília, Editora Melhoramentos/INL, 1976. página 20, 21. Retirado do livro Aulas de Redação, 5ª série, Maria Aparecida Negrinho, Editora Ática, São Paulo, 1993.

Aceita a correção (6)

 "E, na, toda correção, no presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois, produz um fruto pacífico de justiça nos exercitados por ela." - Paulo. (HEBREUS, 12:11.)


A terra, sob a pressão do arado, rasga-se e dilacera-se, no entanto, a breve tempo, de suas leiras retificadas brotam flores e frutos deliciosos.

A árvore, em regime de poda, perde vastas reservas de seiva, desnutrindo-se e afeando-se, todavia, em semanas rápidas, cobre-se de nova robustez, habilitando-se à beleza e à fartura.

A água humilde abandona o aconchego da fonte, sofre os impositivos do movimento, alcança o grande rio e, depois, partilha a grandeza do mar.

Qual ocorre na esfera simples da Natureza, acontece no reino complexo da alma.

A corrigenda é sempre rude, desagradável, amargurosa; mas, naqueles que lhe aceitam a luz, resulta sempre em frutos abençoados de experiência, conhecimento, compreensão e justiça.

A terra, a árvore e a água suportam-na, através de constrangimento, mas o Homem, campeão da inteligência no Planeta, é livre para recebê-la e ambientá-la no próprio coração.

O problema da felicidade pessoal, por isso mesmo, nunca será resolvido pela fuga ao processo reparador.

Exterioriza-se a correção celeste em todos os ângulos da Terra.

Raros, contudo, lhe aceitam a bênção, porque semelhante dádiva, na maior parte das vezes, não chega envolvida em arminho, e, quando levada aos lábios, não se assemelha a saboroso confeito. Surge, revestida de acúleos ou misturada de fel, à guisa de remédio curativo e salutar.

Não percas, portanto, a tua preciosa oportunidade de aperfeiçoamento.

A dor e o obstáculo, o trabalho e a luta são recursos de sublimação que nos compete aproveitar.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Cada palavra, uma história

 Semelhanças entre vocábulos de idiomas diferentes nem sempre indicam parentesco entre eles


Todos já ouviram falar algo sobre o Indo-europeu e muitas vezes, por isso mesmo, existe uma ideia errônea da chamada "árvore genealógica das línguas", proposta pela Stammbaumtheorie de August Scheleicher, em meados do século 19.

Hoje, amadurecidos, os linguistas sabem que a história das línguas não se confunde com a história das culturas e, muito menos, com a das etnias. O inglês é falado por estadunidenses, nigerianos e indianos, e exemplos assim podem ser multiplicados infinitamente.

Mais que isso: nenhum idioma nunca foi falado por um povo homogêneo. A formação da identidade nacional e do seu consequente nacionalismo é fato recente na história da humanidade.

Começou, provavelmente, no final da Guerra dos Cem Anos, e no início do século 15 tínhamos suas primeiras evidências. Os renascentistas eram extremamente patriotas, e esse sentimento foi crescendo com as conquistas napoleônicas e o romantismo afora, até o final da Segunda Guerra Mundial. É um forte traço remanescente e ainda distante de seu fim.

Por isso, indo-europeus nunca existiram: o que houve de fato eram povos falantes de Indo-europeu. A miscigenação e o bilinguismo - muitas vezes promovidos por casamentos e comércio - foram os grandes motivos da expansão de uma língua desde a Antiguidade. Se não difundiam o idioma, expandiam a compreensão das palavras: empréstimos ocorrem desde a Pré-história. Assim, muitas palavras comuns entre o Indo-europeu e o Kartveliano (de onde saíram muitas línguas atuais do Cáucaso, sendo a mais conhecida o Georgiano) se devem a empréstimos mútuos. Os defensores da teoria do Nostrático - língua-mãe de inúmeros outros idiomas, protolíngua que inclui grande número de troncos - esbarram sempre nessa dificuldade.


Árvore das Línguas

Hoje se sabe que a árvore das línguas é, na verdade, a árvore das estruturas linguísticas. O léxico comum não garante afinidade genealógica entre os idiomas. Por isso, o Inglês possui muitas palavras parecidas com o Francês, Italiano, Português e não é considerada língua românica, mas germânica, isto é, aparentada com o Alemão, Holandês, Sueco, Norueguês.

Ainda assim, um falante de Português que desconheça o Inglês, lendo um texto nessa língua, tem muito mais probabilidade de entender algumas palavras - com "education", "incontestable", "laryngitis" e "submarine" - do que se estivesse diante de suas correspondentes em Alemão - "Erziehung", "Unbestreitbar", "Kehlkopfentzündung" e "Unterseeboot". Como dizer, então, que Inglês e Alemão são parentes mais próximas do que Inglês e Português?

A proximidade está na estrutura e não no vocabulário: mais de 70% das palavras inglesas vieram do Francês normando, devido a fatos históricos, como o domínio da França sobre o território inglês. Também os falantes de Árabe e de Persa são na maioria muçulmanos, usam o mesmo alfabeto, têm um grande número de palavras comuns, embora suas línguas sejam de troncos completamente diferentes: o Persa é Indo-europeu, e o Árabe é semítico.

Se compararmos, contudo, os artigos, as preposições, os numerais, as flexões verbais e outros elementos do chamado "inventário fechado" dos idiomas encontraremos aí mais semelhança entre diferentes línguas de uma mesma família do que de outras. O Português tem preposições como "de", "em", "com" e "a", e numerais como "dois", "três" e "quatro", que equivalem a formas muito parecidas em Espanhol, Italiano, Francês, Romeno. Já o Inglês "the", "out", "on", "four" e "seven" se assemelham muito ao Alemão "der", "das", "aus", "an", "vier" e "sieben". Por isso são parentes.


História individual

Voltando agora às diferenças: novamente temos aí um falso problema. Tomemos como exemplos os termos alemães que já apresentamos.

"Erziehung" ("educação") tem o radical "zieh", que quer dizer "puxar", equivalente ao "duc-" latino do qual vem "e-duc-ação". "Unbestreitbar" ("incontestável") também é palavra culta, criada na Idade Média, com radical "streit-", que quer dizer "brigar" (o radical latino equivalente é "pugn-"): as partes da palavra "Un-be-streit-bar" equivalem literalmente a algo como "in-im-pugn-ável".

A palavra "Kehlkopfentzündung" ("laringite") é claríssima para qualquer falante de Alemão - diferentemente de tantas palavras médicas em Português, formadas sobre radicais gregos e latinos como "cistotomia", "onicorrexia", "encefalopatia", que excluem os leigos. É formada de duas palavras: a primeira, "Kehlkopf", literalmente significa "cabeça da garganta", nome popular da laringe, adotada pela Medicina alemã; e a segunda "Entzündung", tem o radical "zünd-", "pôr chamas, acender". Daí novamente, temos a influência da palavra latina que gerou o termo "in-flam-ação" em Português. Em "Unterseeboot" ("submarino") também os elementos do decalque são muito claros: "Unter" significa "sub", "See" quer dizer "no mar" e "Boot", barco. Ou seja: "barco submarino".

Não são, portanto, palavras cultas, ligadas à Ciência e à Tecnologia, que nos auxiliarão a chegar mais próximo do Indo-europeu. O contato dos idiomas promove os empréstimos e as referências, embora alguns sejam difíceis de ser reconhecidos.

Se o Alemão criou muitos termos travestindo palavras latinas durante o período do Sacro Império Romano-Germânico, o Tcheco, durante o período do reino da Boêmia, já se baseou no Alemão para criar as suas: "vy-slov-nost" equivale ao Alemão "Aus-sprache", que significa "pronúncia"; "caso-pis" equivale a "Zeit-schrift", "revista"; e as partes da palavra "za-mûst-nán-i" equivalem a "An-ge-stellt-er", "empregado". Não são palavras da vida moderna que garantem que o Tcheco seja eslavo e, o Alemão, germânico.

Conclui-se que algumas palavras são universais (e o Francês contribuiu muito para que o fossem nos séculos 18 e 19), outras são restritas a algumas línguas, outras ainda, têm sua universalidade escondida. Deveríamos pensar seriamente se não há uma história individual de cada palavra ao lado de uma história das estruturas linguísticas, comumente chamada de "história das línguas".


Texto de Mário Eduardo Viaro, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Material retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano I, número 4, Escala Educacional, São Paulo.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Consegues Ir? (5)

 "Vinde a mim..." - Jesus. (MATEUS, 11:28)


O crente escuta o apelo do Mestre, anotando abençoadas consolações. O doutrinador repete-o para comunicar vibrações de conforto espiritual aos ouvintes.

Todos ouvem as palavras do Cristo, as quais insistem para que a mente inquieta e o coração atormentado lhe procurem o regaço refrigerante...

Contudo, se é fácil ouvir e repetir o "vinde a mim" do Senhor, quão difícil é "ir para Ele"!

Aqui, as palavras do Mestre se derramam por vitalizante bálsamo, entretanto, os laços da conveniência imediatista são demasiado fortes; além, assinala-se o convite divino, entre promessas de renovação para a jornada redentora, todavia, o cárcere do desânimo isola o espírito, através de grades resistentes; acolá, o chamamento do Alto ameniza as penas da alma desiludida, mas é quase impraticável a libertação dos impedimentos constituídos por pessoas e coisas, situações e interesses individuais, aparentemente inadiáveis.

Jesus, o nosso Salvador, estende-nos os braços amoráveis e compassivos. Com ele, a vida enriquecer-se-á de valores imperecíveis e à sombra dos seus ensinamentos celestes seguiremos, pelo trabalho santificante, na direção da Pátria Universal...

Todos os crentes registram-lhe o apelo consolador, mas raros se revelam suficientemente valorosos na fé para lhe buscarem a companhia.

Em suma, é muito doce escutar o "vinde a mim"...

Entretanto, para falar com verdade, já consegues ir?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

O filólogo que virou sinônimo de dicionário

 Um dos maiores eruditos brasileiros do século XX, Antônio Houaiss defendia o nacionalismo, a democracia e uma política linguística para o Português


No início de 1985, o Brasil vivia os primeiros tempos do retorno da democracia. A enciclopédia Retratos do Brasil lançou, então, um volume com 86 depoimentos sobre o significado dos anos da ditadura e o que se poderia esperar para o futuro. Em sua maioria, os convidados eram políticos, como  Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Mas, entre eles, figurava um estudioso de questões linguísticas, um filólogo de discurso afiado. Sem eufemismos, Antônio Houaiss afirmava que "o balanço dos 21 anos de autoritarismo militar" era "não apenas melancólico, senão que também catastrófico".

Para o futuro, ele sugeria "mudanças imediatas na estrutura da posse da terra, na estrutura da produção agrícola e na estrutura da nossa dívida externa e interna". Em particular, salientava que "do ponto de vista da educação, sem uma transformação das bases do primeiro ciclo, fazendo-o universal, gratuito e compulsório, por um mínimo de sete anos, acompanhado de atendimento alimentar, de vestuário e de habitação, tudo o que se quiser realizar, em termos de formação de gerações futuras, será tão elitista quanto tem sido a nosso História".

Nesses poucos enunciados, aparecem sintetizados alguns aspectos essenciais do pensamento e da ação pública de um dos mais eruditos brasileiros do século XX: o nacionalismo e a busca do desenvolvimento social, que Antônio Houaiss manteve atuantes quando tratou de temas relativos à Língua Portuguesa.


Múltiplos saberes e ofícios

A erudição de Houaiss era impressionante. Por vezes, desconcertante. Sem nenhum favor, podemos dizer que foi professor, linguista e filólogo, teórico da literatura e crítico literário, tradutor, bibliógrafo (e bibliófilo), incansável organizador de enciclopédias e dicionários, diplomata, homem político comprometido com o socialismo, conhecedor de culinária - enfim, um humanista na acepção clássica do termo.

E não foi um homem apenas de saberes, mas também de práticas. Como diplomata, ocupou cargos na República Dominicana e na Grécia, bem como junto à Organização das Nações Unidas, a ONU, tanto em Genebra quanto em New York. Como político, ajudou a fundar o Partido Socialista Brasileiro, do qual é presidente de honra, chegando a ministro da Cultura, em 1993, durante o governo de Itamar Franco. Suas ideias políticas valeram-lhe, inclusive, a aposentadoria compulsória do Itamarati e a cassação de seus direitos políticos após o golpe de 1964.

Como estudioso da linguagem, publicou inúmeras obras filológicas e de crítica literária. Além disso, traduziu a obra Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, um dos marcos da literatura modernista do século XX. A tradução envolve imenso conhecimento das línguas inglesa e portuguesa, dada a necessidade de verter os incontáveis jogos de linguagem do original.

Foi também enciclopedista, tendo coordenado a Delta Larousse, a Mirador e a Barsa, além de ser um dos coautores da enciclopédia Koogan-Houaiss. Em 1973, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, instituição que viria a presidir em 1995.

Seu maior projeto, talvez seu maior sonho, foi a criação do mais completo dicionário da Língua Portuguesa, que leva o seu nome e o qual, infelizmente, não viu publicado. Com mais de 228 mil verbetes, o dicionário Houaiss saiu em 2001, mas seu idealizador havia falecido em 1999, na mesma Rio de Janeiro que o vira nascer em 1915.


TODAS AS LÍNGUAS PODEM TUDO

Embora amplos e variados, podemos pensar que os escritos linguísticos de Antônio Houaiss tiveram motivações, sobretudo, políticas. Não no sentido partidário ou propriamente ideológico. Falamos, aqui, da política linguística.

Houaiss defendia a ideia de que, do ponto de vista estrutural, todas as línguas se equivalem. Ele dizia: "As tentativas de estudar as línguas dos homens sob a luz de uma especificidade funcional (...) revelam, na verdade, apenas certo tipo de dependência dessas línguas para com o momento cultural do povo que a fala ou a escreve". Assim, não é correto dizer que haja línguas estruturalmente mais aptas para a expressão, por exemplo, da filosofia ou das ciências ou da política ou de qualquer outro universo de conteúdo.

Potencialmente, portanto, todas as línguas podem expressar todos os conteúdos. Entretanto, esse potencial pode ou não ser historicamente realizado. Por exemplo, idiomas como o japonês, o árabe, o chinês e o hindi, até o século XIX, não eram suporte para o pensamento científico moderno. O desenvolvimento do Japão, dos países árabes, da China e da Índia fez com que esse pensamento passasse a ser expresso nesses idiomas, eventualmente até como pensamento de ponta.

Mas esse fenômeno, é claro, pode não ocorrer - provavelmente não ocorrerá - para todas as línguas do mundo. Para Houaiss, "há, assim, um milagre linguageiro humano positivo: a isonomia sistêmica de todas as línguas; e há, em contrapartida, um milagre linguageiro negativo: só algumas foram eleitas".

É com essa abordagem - talvez excessivamente direta, mas nem por isso menos realista - que Houaiss pensou políticas linguísticas para a Língua Portuguesa, a principal delas, a unificação ortográfica dos países de Língua Portuguesa, que ele defendeu como um dos instrumentos imprescindíveis para o fortalecimento mundial do português.


Texto sem autoria identificada retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa, Ano 1, número 2, Escala Educacional, São Paulo.