sábado, 4 de dezembro de 2010

Os Trabalhos da Mão

                              Alfredo Bosi


                  Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva-se de exemplo.
                  A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois massageia o músculo dorido.
                 A mão tateia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
                 A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.
                 Acusa com o índex, aplaude com as palvas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.
                 Mede com o palmo, sopesa com a palma.
                 Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o alí, o aí; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.
                 É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
                 Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe o silêncio. Saúda o amigo balançando, leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira o braço e diz adeus. Urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.
                 Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-as dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobra, guarda-a.
                 A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o legume, desfolha a verdura, descama o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrai o suco. Piloa de punho fechado, corta a quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre, enfarinha, entrouxa, enforma, desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.
                A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair.
                A mão faz som; bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do piano, empunha o arco do violino eo violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra.
                A mão, portadora do segredo. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrelaçados os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão mistura o sal e a água do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receberem o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam a extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a benção e o voto de paz.
               Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dútil anatomia: oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges, falanginhas e falangetas.
               Mas seria nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando na sua contradança de precisões e desejos.
               A mão lavra a terra há pelo menos oito mil anos, quando começou o Neolítico em várias partes do Globo. Com as mãos, desde que criou a agricultura, o homem semeia, poda e colhe. Empunhando o machado e a foice, desbasta a floresta; com a enxada revolve a terra, limpa o mato, abre covas. Com a picareta, escava e desenterroa. Com a pá, estruma. Com o rastelo e o forcado, gradeia, sulca e limpa. Com o regador, água. Desgalha com a faca e o tesourão.
              Manejando o cabo dos utensílios de cozinha, o homem pode talhar a carne, trinchar as aves, espetar os alimentos sólidos e conter os líquidos que escoariam pelas juntas das mãos em concha.
              Morar é possível porque mãos firmes de pele dura amassam o barro, empilham pedras, atam bambus, assentam tijolos, aprumam o fio, trançam ripas, diluem a cal virgem, moldam o concreto, argamassam juntas, desempenam reboco, armam o madeirame, cobrem com telha, goivo ou sapé, pregam ripas no forro, pregam tábuas no assoalho, rejuntam azulejos, abrem portas, recortam janelas, chumbam batentes, dão pintura a última demão.
              A mão do oleiro leva o barro ao fogo: tijolo. A mão do vidreiro faz a bolha de areia, e do sopro nasce o cristal.
              A mão da mulher tem olheiros nas pontas dedos: risca o pano, enfia a agulha, costura, alinhava, pesponta, chuleia, cerze, caseia. Prende o tecido nos aros do bastidor: tece e urde e borda.
              A mão do lenhador brande o machado e racha o tronco. Vem o carpinteiro e da lenha faz o lenho: raspa e desbasta com a plaina, apara com o formão, alisa e desempena com a lixa, penetra com cunha, corta com a serra, entalha com a talhadeira, boleia com o torno, crava pregos com o martelo, marcheta com as tachas, encera e lustra com o feltro.
              O ferreiro malha o ferro na bigorna, com o fogo funde, com o cobre o solda, com a broca o fura, com a lima rói, com a tenaz o verga, torce e arrebita.
              O gravador entalha e chanfra com o cinzel, pule com o buril. O ourives lapida com o diamante, corta com o cinzel, afina com o buril, engasta com a pinça, apura com o esmeril.
              O escultor corta e lavra com o escopro e o formão.
              O pintor, lápis ou pincel na mão, risca, rabisca, alinha, enquadra, traça, esboça, debuxa, mancha, pincela, pontilha, empastela, retoca, remata.
              O escritor garatuja, rascunha, escreve, reescreve, rasura, emenda, cancela, apaga...

Nenhum comentário:

Postar um comentário