sábado, 15 de junho de 2024

A Casa de Lili

Com a morte do marido, dona Carlota, gorda de noventa quilos, realizou uma célebre viagem de vapor - ela e a filha passeavam de guarda-pó no tombadilho. Paga a promessa em longes terras, deixaram na gruta da santa o retrato de Lili, com o pedido de um noivo; no verso da fotografia rabiscado o endereço. Qual a surpresa de dona Carlota, um ano mais tarde, bateu à porta o distinto moreno de bigodinho, que se oferecia para casar com a moça da gruta.

Quem passava na rua entrevia, pela cortina de bolinhas azuis, Lili ao piano e o cometa, perna cruzada, calça xadrez e polaina, sacudindo no soalho fulgurante a cinza do charuto.

Prateado lustre de canutilhos pendia do fio envolto em papel crepom. Loucas flores de parafina cresciam no estanho das carteiras de cigarro. Na mesinha, fruta de cera e bibelô de gesso; ao pé, rica boneca de cachos. Cromo recortado de revista - e a moldura rendilhada na própria parede. Discretamente, a um canto, a preciosa escarradeira de porcelana azul.

De trole iam à missa, o caixeiro de palhetinha e bengala, Lili, a boca pintada em coração, o curto pescoço afogado na pele de coelho. Então se apresentou um circo na cidade. Antes do salto mortal, rufava o tambor e dona Carlota de boca aberta, sem engolir a pipoca. No intervalo, por entre as cadeiras, volantins em maiô branco de malha ofereciam o retrato colorido. Com o circo partiu o noivo, enfeitiçado da bailarina perneta.

Alegrou-se a gente perversa: um de nós teria surpreendido o caixeiro saltando a janela do quarto de Lili. Noite seguinte iluminou-se a sala, janelas abertas, ouviu-se o piano. Era a moça muito pintada, um pente de madrepérola no cabelo. Dona Carlota ouvia, rigidamente sentada, lenço de seda ao pescoço.

Lili continuou as lições de piano, gorducha, baixinha, um brilho de ouro no sorriso triste. A uma vizinha, que se referiu ao caixeiro, mostrou o oratório da família. Ao pé das imagens, o retratinho dos entes queridos, lá estava o do noivo. No cinzeiro da sala, intocável, o último charuto pela metade.

Tarde de verão, os cachorros estiravam-se às portas, língua vermelha de fora. A brisa ondulava nas janelas a franja das cortinas, rangiam os portões mal fechados. O pano embebido em gasolina, Lili esfregava o soalho. No degrau da soleira a impressão de um pé descalço. Os maledicentes indagavam do noivo.

- O pobre morreu - respondia Lili - e está morto.

Um dia surgiu o caixeiro na estação. Foi proibido pelo delegado descer à cidade. Passaram-se anos. Dona Carlota se finou de arteriosclerose e, à hora do enterro, a moça tocou a sua valsa predileta. Perdidas as alunas, e sem recurso, obrigada a vender o piano. Então um menino, cesta no braço, batendo nas portas, oferecia medonhas rosas negras.

Instalou-se na casa a família de um primo. Pronto ele consumiu as famosas prendas, até o cinzeiro com o último charuto. Lili não saía do quarto, um dos sobrinhos levava o prato de comida. De manhã na colcha de retalhos, vestida e de sapato, boquinha duramente pintada. Festões e grinaldas abafavam a alcova. Ela se envenenara com o perfume das flores?

Depois a mulher do primo ficou leprosa e a casa foi posta à venda.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

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