terça-feira, 25 de junho de 2024

Duas Rainhas

Duas gorduchinhas, filhas de mãe gorda e pai magro. Não sendo gêmeas, usam vestido igual, de preferência encarnado com bolinha. Sob o travesseiro mil bombons, o soalho cheio de papelzinho dourado.

Rosa tem o rosto salpicado de espinhas. Dois anos mais moça, Augusta é engraçadinha, para quem gosta de gorda. Três vezes noiva de sujeitos cadavéricos, esfomeados por aquela montanha de doçuras gelatinosas. Os amores desfeitos pela irmã.

- A Rosa é muito tirana - desculpa a outra sem azedume.

Duas pirâmides invertidas que andassem, largas no vértice e fininhas na base. Manchas roxas pelo corpo de se chocarem nos móveis. Lamentam-se da estreiteza das portas. Sua conversa predileta sobre receita de bolo. Nos aniversários, primeiras a sentarem-se à mesa ou, para lhes dar passagem, todos têm de se levantar.

O terceiro noivo, mais magro, com mais cara de fome, conquista Augusta, apesar da oposição da irmã. Instalados na casa do pais, Glauco proíbe-a de acompanhá-lo ao portão. Não a leva ao baile, queixa-se de que nela todos se esbarram. No cinema, as suas carnes opulentas extravasam da cadeira. O marido, inquieto, vigia a todo instante o vizinho.

Segue-o ao banheiro, enquanto ele faz a barba. Fechados no quarto, não saem senão para as refeições.

- Já se viu - exclama Rosa para a mãe - que pouca vergonha!

O marido quase não dorme - transborda Augusta do leito -, embevecido a vê-la roncar. Por insinuação dele, preocupa-se com as formas. Ela perde alguns quilos, Rosa engorda. Saem juntas para as compras.

- A senhora está esperando? - pergunta a caixeira para Rosa. - De quantos meses?

- Minha irmã que...

Augusta tricoteia casaquinho de lã, que nunca termina. Com dor no coração soube o marido que é falsa a gravidez - ela come escondida. Cada gaveta, manancial de gulodice. Então a arrasta em longas caminhadas; a moça tropeça de pé inchado e, de esfregar uma na outra, em carne viva a coxa roliça.

Glauco deu para beber. Recusa-se a fazer visita, desconfia do riso às suas costas.

- Você tem vergonha de mim - choraminga Augusta.

- Que bobagem, meu bem.

- Tem, sim.

- Se ao menos evitasse bolinha no vestido.

- Bem avisei - suspira Rosa. - Esse casamento não dava certo.

Ele tentou aliança com o sogro. Discutiu com Augusta, Rosa e a sogra, dona Sofia. A moça chorou, fez dieta e perdeu dois quilos, que recuperou semana seguinte.

Sempre beliscando algum petisco e anunciando uma para outra:

- Amanhã é dia de regime!

Lambiscam e recordam os sonhos. Nenhuma borboleta ou esquilo. Todos os bichos proporcionais: rinoceronte, foca, hipopótamo. As noites de Rosa agitam-se de cavalos empinados relinchantes. Augusta prefere um elefante branco:

- O elefante chegou, ergueu as patas, riu para mim.

- Não se olhe tanto ao espelho - resmunga o marido.

Uma tarde explode o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram Rosa em pranto. Glauco investiu, derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

- Minha rainha das pombinhas!

Ai de Augusta, só quer morrer: entre golinhos do licor de ovo, ingere punhado de pílulas, catando azuis e rosas, enjeitando as amarelas - língua babosa, de porrinho, jura eterna viuvez.

Agora as duas no quarto do casal. O marido, esse, no de hóspede. Chega tão bêbado que dona Sofia lhe tira o sapato e deita-o vestido. Cada uma engordou cinco quilos - abaixo do joelho enrolam a meia na liga.

- Viu o Glauco?

- Magro que dá pena.

Abanam-se com ventarola. Mordiscam bombom prateado de anisete:

- Não sei onde com a cabeça.

- Gente magra é tão feia!

Contemplam-se orgulhosas: bem pequeno o pé torneado com roscas de mesa antiga de jacarandá.

- Amanhã dia de regime - anuncia Augusta, em nuvem de talco para evitar queimadura nas dobras.

Depois do almoço ficam de pé par facilitar a digestão. Sem encostar no peitoril, dói o estômago dilatado. Mãos apoiadas na janela - uma janela para cada uma -, vendo a gente magra e feia que passa.

- Que tal pedacinho de goiabada? - sugere uma delas.

Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os joelhos.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério dos Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

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