sábado, 21 de setembro de 2024

Baile à fantasia

 A má tradução repetida de algumas palavras pode gerar imprecisão


Num comercial bem-humorado da Hertz, um homem fantasiado pede a um policial que lhe alugue a viatura (como dizem os da polícia) para que ele, civil, vá a um baile à fantasia. Curiosa é a forma como o "elemento" se dirige ao policial. Chama-o de "oficial":

"Oficial, o senhor pode me alugar a sua viatura para ir ao baile?"

A palavra "oficial" dirigida a um policial comum de ronda é resultado das centenas de vezes em que o termo inglês officer (agente da polícia, em inglês, entre outras coisas) foi traduzido como "policial" em jornais, filmes e noticiários brasileiros. Em vez de "policial" ou do popular "seu guarda", eles dizem "oficial". E já se percebe em notícias:

"Quando os oficiais chegaram, os assaltantes já tinham fugido".

Um falso cognato, portanto, dos vários que circulam por aí. Em Português, "oficial" só se aplica a autoridade de grau de comando de nível hierárquico superior a aspirante (no Exército, na Aeronáutica e na polícia Militar) ou de guarda-marinha (na Marinha de Guerra). Fora outras acepções não relacionadas com militares, claro.

Falso cognato é aquele que parece mas não é. (Cognato é palavra que vem da mesma raiz que outra. Ou outras.) É a palavra semelhante a outra, de outra língua, mas com significado diferente. Um já incorporado ao vocabulário brasileiro é "inteligência", no sentido de "coleta de informações", já que intelligence em inglês também significa "informação". Pegou tanto que o bem "inteligenciado" governo brasileiro criou já faz tempo a "Agência Nacional de Inteligência", que nos tempos da ditadura militar tinha o castiço nome de "Agência Nacional de informações". Talvez a única virtude da agência desenvolvida para infernizar adversários. O resultado é que Aurélio e Houaiss já registram em verbetes diferentes "inteligência"(1), a nacional, e o anglicismo "inteligência"(2) com o significado de "serviço de informações". O Aulete Digital ignora o anglicismo.

Há outros casos. Houve tempo em que "suporte" era aquilo suporta ou sustenta algo, como um sólido apoio de prateleiras, além de noções figuradas paralelas. Com a informática, "suporte" ganhou o significado de "material" destinado a receber a informação. Por fim, assumiu o significado anglo-americano de "ajuda" e "assistência técnica". "Vou lhe dar um suporte", pode dizer o rapaz informatizado, com celular grudado na mão, ao sujeito que carrega uma caixa de cervejas para temperar o churrasco.

Tolice investir contra estrangeirismos, como puristas nervosos, porque as línguas se interpenetram e se enriquecem com palavras ou estruturas que suprem umas as deficiências de outras. Difíceis de justificar, no entanto, são anglicismos como "oficial" e "planta", de plant, com o sentido de "fábrica" ou "complexo industrial". "Planta" por "fábrica" parece mostrar o papagaísmo de áreas técnicas, de brasileiros distraídos e obrigados a usar a língua inglesa com frequência, sem ter fixado bem a portuguesa. Uma hipótese, claro. Pode ser pedantismo. O fato é que "planta" fica melhor como denominação genérica de avencas, samambaias e trepadeiras (as vegetais).


Texto de Josué Machado retirado da Revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 109, Novembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

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