domingo, 15 de dezembro de 2024

A História de Adônis

A história do senhor e amado da grande Deusa do Amor estava ligada - entre nós, e presumivelmente também nos países orientais, onde foi adotada, na Síria, em Chipre e na Ásia Menor - à história de uma árvore, aquele arbusto árabe cuja goma extremamente fragrante os povos da Antiguidade prezavam acima de todas as suas seivas solidificadas. À goma dava-se o nome de "mirra" ou "esmirra".

A história continua dizendo que Mirra (ou Esmirra) era filha de um rei; filha do rei do Líbano, ou do rei Cíniras de Chipre, fundador de Pafo - ou, variamente, filha de outros reis. Mirra apaixonou-se mortalmente pelo pai. ) Várias razões foram aventadas para isso: a cólera do deus-sol, ou a cólera de Afrodite. Supõe-se que Mirra achava seus cabelos mais bonitos que os da deusa; e existem outras histórias semelhantes.) A filha conseguiu enganar o pai, ou embebedá-lo - ocorrência também encontrada numa história bíblica. Dormiu com ele, como uma rapariga desconhecida, por doze noites, ou menos. Afinal, o pai descobriu, mercê de uma lâmpada escondida, quem era sua companheira de cama e saiu em perseguição dela com a espada desembainhada. Mirra já concebera um filho desse amor proibido e estava cheia de vergonha. Suplicou aos deuses que não a deixassem estar em parte nenhuma, nem entre os vivos nem entre os mortos. Alguma divindade, possivelmente Zeus e Afrodite, compadeceu-se e ela foi transformada na árvore que chora o seu fruto em goma picante, o fruto da madeira: Adônis. Pois ele, o futuro amante de Afrodite, nasceu da casca rachada da árvore da mirra.

Adônis era tão belo, tão belo que, logo que nasceu, Afrodite escondeu a criança numa arca e deu-a a Perséfone para guardá-la em lugar seguro. A rainha do Mundo Subterrâneo abriu a arca, viu o menino e nunca mais quis devolvê-lo. A disputa entre as duas deusas foi levada à presença de Zeus. O rei dos deuses dividiu a posso de Adônis da seguinte maneira: durante uma terça parte do ano ele moraria sozinho; durante uma terça parte, com Perséfone; e durante uma terça parte, com Afrodite. Sobre a morte de Adônis, que todos os anos o levava para Perséfone, no Mundo Subterrâneo, dizia-se comumente que ele fora ferido por um javali enquanto caçava. Correu-lhe o sangue, e o riacho Adônis, no Líbano, passou a fluir vermelho. Imagina-se que Ártemis ou Ares mandou o javali contra o mancebo. Afrodite viu-se assim obrigada a prantear Adônis antes de poder realmente possuí-lo. Os festivais em que o seu deplorável amor era celebrado foram realizados em comemoração ao dia em que a deusa do amor se separou do seu jovem senhor. Ele jazia ali mortalmente ferido, amado e pranteado por Afrodite. Debalde tentou ela retê-lo. No dia seguinte, ele librou-se para longe no mar e no ar. Costumava dizer, todavia, que ele ainda estava vivo. As mulheres lhe trouxeram pequenos "jardins" - expressão simbólica e pitoresca, comum em nossa Língua, como em outras, para indicar-lhes a  própria feminilidade. Nos santuários orientais, entregavam-se a estrangeiros. Quem não fizesse teria, pelo menos, de sacrificar os cabelos a Adônis.


Texto de Karl Kerényi retirado do livro Os Deuses Gregos, Editora Cultrix, São Paulo, 1998.

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