domingo, 30 de março de 2025

"Vareia"

 Ao assinar um contrato, a secretária orienta: "aponha aí sua rúbrica". Vou ao Facebook para relaxar e lá, alguém curioso sobre a morte de um amigo comum, pergunta: "O que ouve com ele?" Saio procurando uma trégua.


Na barraca onde vejo algumas pessoas tomando água de coco, certamente terei. Diante do anúncio: "guarapa e água de cocô", desisto. Não quero isso não. No escritório, atendo uma cliente pela Assistência Judiciária, em busca de executar pensões alimentícias atrasadas. O rol de filhos é grande. Analiso as certidões de nascimento e depois de quatro nomes masculinos, encontro, finalmente, o de uma menina: Dhionata! "Como vai a menina, senhora?" Me reprova no ato: "Dhionata não, doutor. Dhíonata. É menino, tá? Entendi que a intenção do registro de nascimento era Jonathan e nunca mais na vida associei nomes com sexo.

Juro que tudo aí é verdade, e só não dou nome aos bois porque não é ético. O Brasil transformou-se, todos sabem, num grande circo. Ninguém se preocupa mais em ser sério, quanto mais escrever e falar corretamente, e, assim, a pobre Língua pátria está morrendo. E não é somente nas conversas coloquiais que isto se dá. No mundo da mídia e dos negócios, também. As moças do 0800 foram treinadas para responder: "vou estar encaminhando a sua reclamação..." Não seria mais curto e fácil "Encaminharei sua reclamação"? Para que serve o futuro perfeito? Talvez ele seja perfeito demais, ou difícil de pronunciar, enrolando a língua. Deve ser isto. Não, não é não! A situação está mesmo crítica. Em 2014, 529 mil candidatos tiraram zero na redação do ENEM, acreditem. Em 2013, até mesmo 845 corretores de redação do mesmo ENEM foram igualmente reprovados por não alcançarem a nota mínima 7 nas próprias redações!

Ao longo da vida de curioso e piedoso com o nosso idioma, coleciono esses pequenos e dolorosos assassinatos na Língua de Camões. Cito, para ilustrar, algumas bem conhecidas como "assustar e adoçar o cheque" - diabético esse traumatizado cheque! -, "entre parentes" - reunião de família!, "célebro", "a gente fazemos", "avoar", "crasse", esta escrita de mil maneiras, menos "exceção". Outras, menos frequentes, mas que valem dez daquelas: "o avião degola", "tenho oregiza de camarão", "a corrupção afeta todo mundo, exclusive eu", "tive um ilídio de amor", "quem não risca não apetisca".

Conectada nas redes sociais, a moçada está cada vez mais alienada da história, geografia e conhecimentos gerias. No ENEM de 2014, foram registradas essas pérolas: "O Ateísmo é uma religião anônima", "A alimentação é o meio de digerirmos o corpo", "Eles negão de pés juntos que não são corruptos", "Os portugueses, depois que descobriram Fernandes de Noronha, assinaram o Tratado de Tortas Ilhas". É triste, mas a realidade é que estamos construindo uma sociedade sem qualquer compromisso com a acribia no uso da Língua Portuguesa. Mais triste ainda é constatar o estado de total depauperamento que campeia no mundo de Educação Nacional. Professores pessimamente remunerados que, para sobreviver, têm de ter mais de um emprego, sacrificando as horas de preparação das aulas pela sobrevivência. Completo desalento é constatar que neste país de falsa democracia, não há efetivo interesse em investir numa educação decente, sempre descente, por conta de interesses eleitoreiros. O voto de cabresto continua de forma disfarçada. Mesmo os jornalistas e novelistas ajudam a empobrecer o vernáculo: não dizem mais "vê-la", mas sim "ver ela", "amá-la", mas "amar ela", criando associações de palavras que beiram o hilário e o ridículo. Nossa presidente até tentou fazer alguma coisa, exigindo ser chamada pelo feminino "presidenta"*, mas não resolveu as queixas que criou entre os profissionais masculinos, que agora exigem ser tratados por "dentisto" e "nutricionisto".

Após ler Máximo Gorki, quando adolescente, enfrentei o patrão do meu pai, que exigia que ele devolvesse a multa do FGTS, naquela época de 10%. Irritadíssimo porque um "moleque" ousou afrontá-lo, quis me bater. Nervosinho que eu já era, lembrei-me de Gorki e retorqui: "O senhor não passa de um bilioso!" Tenho certeza que ele ficou mais irado ainda por não compreender que eu somente  dissera que ele era amargo como bílis. Pensou, naturalmente, que eu o xingara feio. Mas correu a acertar os direitos do meu querido pai. E aí percebi que falar e escrever corretamente eram uma grande vantagem neste mundo de Deus.

Não é arrogância, nem esnobismo. É gratidão e elegância. Gratidão com a Língua que me foi ensinada. Elegância porque é muito mais sonoro e agradável de ouvir "eu a amo", do que "quis amá-la mas não deu". De repente, eu teria esquecido a mala na rodoviária. "Amar-te-ei eternamente", por outro lado é elegância demais, não acham? Estão vendo a sutileza? Todo mundo gosta de coisas bonitas, tenho certeza.

Convenhamos, outrossim, que a vulgaridade de "vai lá em casa, fia", ou "eu vou aí", é de doer, concordam? Vamos lá: exercício de conjugação verbal: "Eu pêntio, tu pêntias, ele pêntia..." Pode? Pode sim, "eu faço questã!" Bom, vou parar por aqui. O carteiro está me mostrando um recibo para mim assinar. Ou seria eu? Caramba, isso pega!


Texto de José Carlos Ursini retirado da revista Conhecimento Prático Literatura, Edição 60, Maio/Junho 2015, Editora Escala, São Paulo.

* O uso da palavra "Presidenta" foi utilizada em 1868 por Moliére na peça "As Sabichonas" e por Machado de Assis em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" em 1881.

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