As acepções sobre o uso coreto da expressão "eis que" derivam da análise sobre a sua classificação
O jornal A Gazeta (ES) do dia 15.11.08 estampa, na página 22, uma frase dita por um advogado: "... o acusado afirma que somente viaja de carro, eis que tem fobia de avião." Domingos Paschoal Cegalla, no seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, alerta para o uso indevido de "eis que" com o sentido de "porque", erro frequente na linguagem jurídica. Normatividade à parte, parece que, se "eis que" é um verbete daquele dicionário, há de ser entendido, certamente, como uma locução. Nesse caso, seria uma locução adverbial temporal sui generis (com o sentido de "de surpresa", "repentinamente") e não uma locução conjuntiva, já que é possível analisar como período simples, oração absoluta, uma frase com "Eis que o anjo do Senhor anunciou à Maria". Vittorio Bergo, no seu dicionário Erros e Dúvidas de Linguagem (6. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro; Francisco Alves, 1986), chama "eis que" de "expressão designativa".
CLASSIFICAÇÕES
Normalmente, as locuções conjuntivas terminam com "que" (à proporção que, à medida que, por que, a fim de que etc.). No entanto, não deve causar estranheza o fato de "eis que" ser considerado locução adverbial e não locução conjuntiva, apesar desse "que". As locuções prepositivas terminam por preposição (apesar de, a respeito de, com relação a), mas, ainda assim, "não obstante" é uma locução prepositiva e não termina por preposição. Os dicionários de Língua registram "eis" como advérbio, o que é parcialmente adequado.
Pode ser, no entanto, que não se trate de uma locução adverbial. As gramáticas, à unanimidade, incluem "eis" como uma palavra pertencente ao grupo das "partículas denotativas". Partícula denotativa é o nome que classifica uma palavra "sem classificação", isto é, uma palavra que não pertence a nenhuma das dez classes (substantivo, adjetivo, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção, interjeição, artigo, numeral). Ora, "eis" é um dêitico que poderia ser incluído não entre partículas denotativas (no caso, partícula de designação), mas entre os chamados verboides. Dêitico é o nome que se dá a um termo que se refere ao contexto situacional, isto é, um termo de significação ocasional, como, por exemplo, hoje, assim, este, eu... O termo "verboide", criado por Rudolph Lens, designa não apenas as formas nominais de verbo, que são efetivamente verbos, embora atemporais, mas também expressões que não são verbos, mas que se comportam sintaticamente como tais.
Reitere-se aqui o fato de que uma oração é dita principal não por conter a ideia principal, mas por ter um de seus termos transformado em outra oração. Assim, um período composto como "As coisas que ele quer são as coisas que eu quero" tem por oração principal uma aparente tautologia: "as coisas são as coisas". O determinante de "coisas", nas duas ocorrências, foi transformado em oração subordinada adjetiva. Em "Eis que o anjo do Senhor anunciou à Maria", é possível analisarmos "eis" como oração principal e "que o anjo do Senhor anunciou à Maria" como oração subordinada substantiva objetiva direta.
ANÁLISE
Apesar de seguir esse raciocínio, essa análise poderia apresentar um problema. As gramáticas e dicionários especializados definem frase como um enunciado dotado de sentido completo, e oração como uma frase ou parte de uma frase com estruturação sintática (isto é, com sujeito e verbo, explícito, como na maioria das orações, ou subentendido, como nas orações comparativas e conformativas, por exemplo). Assim, em "O homem saiu" temos uma frase e uma oração; em "Ele disse que viria", temos uma frase e duas orações. Numa oração dita sem sujeito, entende-se que se trata de um sujeito zero: "São duas hora" o termo "duas horas" é predicativo de um sujeito zero. Mas em "Ei-lo que chega", se "ei-lo" é uma oração (oração principal), a definição tradicional de oração talvez não seja adequada, pois em "ei-lo" não há uma estrutura sintática. Numa frase como "Eis que chega o homem" ou "Eis que o homem chega", é possível pensar numa paráfrase desta outra: "Eis o home que chega". Mas seria impossível parafrasear dessa forma uma frase como "Ei-lo que chega", já que seria agramatical a construção "eis que o chega", uma vez que "o" não é pronome sujeito.
O ideal, portanto, é analisar efetivamente "eis" não como partícula denotativa de designação, mas como verboide, seguido de um objeto direto, oracional ou não (Eis que o Anjo anunciou à Maria.). A mesma análise caberia em construções como "oxalá" e "tomara". As orações com verboides seriam consideradas orações com sujeito zero, isto é, orações sem sujeito, o que permitiria manter o conceito de oração como um enunciado ou parte de um enunciado dotado de estruturação sintática.
Os tais verboides
Seguindo a definição de Rudolph Lenz, em Português, seriam considerados verboides não apenas o Infinitivo, o Gerúndio e o Particípio, que se comportam como verbos, embora não conjugáveis (à exceção do infinitivo pessoal que é conjugável, embora permaneça atemporal, mas também expressões inadequadamente consideradas interjeições pelos dicionários de Língua, como oxalá, tomara, que não são verbos, mas têm objeto direto. Nesse caso, numa frase como "Ei-lo que chega", a oração "que chega" é uma subordinada adjetiva e, obviamente, "ei-lo" terá de ser classificado como oração principal, pois não existe oração subordinada sem uma principal. Afinal, uma oração subordinada é um termo de uma oração dita principal, transformado em outra oração, isto é, uma oração subordinada é sempre um termo oracional desenvolvido. Assim, em "Ele saiu, mas disse que voltaria", a oração "que voltaria" é um objeto direto da oração anterior, "mas disse", que é a oração principal do período, coordenada à primeira oração. Dessa forma, em "Tomara que tenhamos paz", "Oxalá tenhamos paz", a oração com verbo no subjuntivo (modo típico da subordinação) seria objeto direto de "tomara" ou de "oxalá". O conceito de verboide de Lenz pode ser considerado uma espécie de desdobramento de considerações sobre a morfologia do infinitivo, como a de Henrique da Rocha Lima em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (1972), que afirma que "o infinitivo é antes um substantivo" para justificar seu funcionamento sintético.
Texto de José Augusto Carvalho retirado da revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa, número 21, Escala Educacional, São Paulo.
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