sábado, 26 de abril de 2025

Cena de Fellini ao cair da tarde

Lenta e prazerosamente, adormece na banheira. Mas na transparência tão igual, que não trai nenhum movimento, a torneira continua aberta. E a água sobe silenciosa, até alcançar a beira de porcelana, inchar-se num instante de hesitação, para logo deslizar redonda ao longo dos azulejos, alcançar o chão, fazer seu caminho em direção aos tacos da sala.

Sem borbulhas, sem pressa, corre a água pelo apartamento. Nunca porém ultrapassando aquela mesma altura no peito do homem que, sentindo-se acariciado, mais sereno dorme.

O dia está quase acabando quando ele acorda, num sobressalto, trespassado por um grito marítimo de sirene. Através da porta aberta, além do corredor, vê a silhueta gigantesca recortando-se contra a parede rosa da sala. E chega-lhe tênue o som de um fox-trot que a banda de bordo executa, enquanto o transatlântico, luzes acesas no crepúsculo, desliza sobre a água escura.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

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