sábado, 30 de agosto de 2025

Os Disfarces de Eros

Trajetória paradoxal a daqueles que buscam explicar o fenômeno erótico. "O enigma do amor permanece", diria Reich ao fim de um ensaio destinado à compreensão científica do fenômeno. O erotismo é "uma imensa aleluia perdia num silêncio sem fim", confessaria Bataille em sua tentativa de verbalizar a experiência erótica. Silêncio, afasia, misticismo ou perplexidade parece ser o fim a que estão fadados aqueles que buscam rastrear os caminhos de Eros.

No entanto, são inúmeros os aventureiros que enveredaram por esta trilha. Nos campos da Filosofia e da Literatura a busca se estende desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias. A Psicanálise e a Medicina viriam, mais tarde, tentar atribuir um estatuto científico "ao grandioso criador". E embora para todos eles o enigma do amor permaneça insolúvel, há certos pontos em comum a que estudiosos chegaram que, se não levam à compreensão última de Eros, lançam ao menos algumas luzes em torno do fenômeno. A descoberta das articulações entre a repressão sexual e a dominação política, a que chegaram Reich e Marcuse, o discurso erótico como forma de "prazer e poder", analisado por Foucault e as relações entre erotismo e misticismo, estudadas por Bataille, funcionam como exemplo desta compulsão irrefreável na tentativa de entender Eros.

Parece-me que existe ao menos um ponto comum e essencial a que os estudiosos chegaram. Trata-se das relações entre continuidade e descontinuidade que estariam na base da experiência erótica e que implicariam a dialética de morte e vida em torno da qual o erotismo se articula. A tese platônica da divisão dos seres em duas partes e da trajetória de uma das metades em busca do seu correspondente desemboca na definição de eros como o unificador, o restaurador da "antiga perfeição". Essa ideia encontra ecos no pensamento de Rollo May, "Eros é o desejo, a ânsia e a eterna busca de expansão", de Freud, "desejo de união (ser um) com objetos no mundo", de D.H. Lawrence, "No amor, todas as coisas se misturam numa unidade de alegria e prazer" e de Bataille: "Nós somos seres descontínuos, indivíduos morrendo isoladamente numa aventura ininteligível, mas nós temos a nostalgia da continuidade perdida (...) A reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas ela envolve sua continuidade."

É, portanto, em torno desses impulsos antagônicos de morte e vida que o erotismo se articula. Ele nos dirige à morte, exatamente quando o que buscamos é perpetuar a vida, permanecer, continuar, prolongar indefinidamente o instante fugaz do gozo. Por isso a trajetória erótica é sempre absurda e obscura: ao tentar desafiar os limites da condição humana, Eros deve sucumbir, pois só na morte reside essa possibilidade remota de permanência, de continuidade. Ao sucumbir, Eros está dando origem a um novo tipo de vida, como o óvulo que, fecundado, dá origem a um novo ser. As novas formas de vida serão sempre incompletas, descontínuas e permanecerão nessa busca impossível que, fatalmente, as levará ao fim.

Estudar as manifestações do erotismo na literatura é, portanto, estudar também as relações dialéticas entre vida e morte que se desenvolvem nas trajetórias das personagens e que servem, muitas vezes, como ocorre na literatura realista, para encobrir, escamotear o fenômeno, numa época em que o decoro, a austeridade e o pudor literário não nos permitiam abrir as cortinas das alcovas.

O erotismo deve ser compreendido, pois, como fenômeno cultural, impulso consciente em que nos lançamos na tentativa de transcender os limites da existência. Não deve ser, por isso, confundido com qualquer atividade sexual, que só será erótica "quando não for simplesmente animal." Essa distinção é fundamental quando se pretende estudar o erotismo na literatura, pois aí os conceitos de erótico e pornográfico muitas vezes se confundem, já que esbarram em problema de ordem moral, religiosa e até política, variando de acordo com a cultura e com as necessidades dos diversos momentos históricos. Considerem-se as estratégias de controle da pornografia literária na era vitoriana nos Estados Unidos. A proibição da entrada das obras de Joyce no país, e das traduções de Boccacio e Casanova, nos dias de hoje compreendidos talvez como escritores de uma literatura de caráter erótico, mas nunca pornográfico, como se foram considerados na época, serve como exemplo da relatividade dessas noções.

As tentativas de conceituação do termo "pornografia", obedecem, evidentemente, a padrões de ordem moral (e o padrão estético, nesses casos, termina por confundir-se com o moral), dando origem, na maioria das vezes, a conceitos abstratos e arbitrários, impossíveis de detectar, como os da justiça inglesa da época: "Textos escritos com o único propósito de corromper a moral dos jovens, e com um teor capaz de chocar os sentimentos de decência de qualquer mente equilibrada." Igualmente absurdas eram as definições da justiça americana, que chegou a considerar como pornográficos quaisquer assuntos ou coisas que exibissem ou representassem visualmente pessoas ou animais mantendo relações sexuais. A maior parte desses argumentos esbarra em problemas de impossível resolução, como a penetração nas intenções de um autor ao escrever uma obra e é evidente que, em casos como esse, a última palavra seria dada a partir da maior ou menor flexibilidade dos critérios morais do juiz, vinculados, é claro, aos interesses da época.

Parece-me que as tentativas de delimitação de fronteiras entre erotismo e pornografia, em última análise, se misturam com as definições do artístico e do não artístico , não menos problemáticas. Obras que realizam a exploração do sexo com fim em si próprio, sem preocupações de caráter estético, são, em geral, consideradas como pornográficas, subliteratura. Obras que, a partir do sexo, abordam outros motivos e, por fim, transcendem o caráter exclusivamente sexual, são consideradas eróticas, literárias. Isso nos remete mais uma vez a Georges Bataille com sua definição da experiência erótica como a transcendência da experiência sexual rudimentar, animal.

Para o estudo do erotismo em dado período literário é, pois essencial que se adote uma perspectiva também histórica. O Realismo burguês pode ser compreendido, com Lúcia Miguel-Pereira, como o estilo que engloba os diversos movimentos do período Realista: O Realismo propriamente dito, o Naturalismo e o Regionalismo, que têm como unidade a tentativa de "fugir ao idealismo obedecendo em geral mais às ideias de seu tempo do que ao seu  temperamento". No estudo dos discursos eróticos dessa época estendi-me também ao Parnasianismo, por se tratar da manifestação do pensamento realista na poesia, e ao Simbolismo, com suas nuances de Decadentismo, já que esse estilo, contemporâneo dos demais, estrutura-se enquanto discurso do outro, enquanto reação ao pensamento positivista da época. Esses movimentos, apesar de obedecerem a uma "frouxa unidade essencial", como afirma a autora, desenvolvem-se através de uma "grande pluralidade de caminhos, de pontos de vista, de modos de escrever e de sentir", e é nessa diferença, nessa pluralidade, que se detectam as diversas falas de Eros.

O estudo do erotismo no Realismo burguês implica, portanto, a análise de diferentes discursos eróticos, produtos de uma época em que imperava uma burguesia cada vez mais poderosa, portadora de uma ideologia moralizadora, que buscava confiscar a sexualidade através da família conjugal: "No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se: o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos." Vinculando a existência de Eros à finalidade única da procriação, estavam garantidas a tranquilidade da família e a segurança do Estado. O sexo regulamentado mantinha, no canto escuro do quarto dos pais, equilíbrio e harmonia de toda uma sociedade. Numa época em que o pensamento burguês atinge o seu ápice, em que o trabalho e a mão-de-obra são cada vez mais requisitados em vista de uma industrialização crescente, seria de se esperar que os mecanismos de poder tentassem sufocar o erotismo, regulamentar a sexualidade, varrer da literatura os corpos nus, vestindo-os com palavras de bom tom e figurinos de bom gosto. As pesquisas de sexualidade sob uma perspectiva política já demonstraram que trabalho e erotismo se opõem, que "renúncia e dilação da satisfação constituem pré-requisitos do progresso."

No entanto, num estudo cuidadoso do Realismo burguês brasileiro, percebe-se que também aí o erotismo não está ausente. Subliminar, talvez, em alguma poesia parnasiana, canalizado para diferentes situações no romance e teatro realistas, mas nunca ausente. Evidente (e muitas vezes esvaziado por uma verbalização excessiva) na poesia simbolista, subvertendo a ordem nas obras de caráter decadente, e regulamentado, analisado, classificado e controlado através da scientis sexualis naturalista. Disfarçado, na maioria das vezes, mas nunca ausente.

Afinal, mesmo em tempos em que o decoro controlava os discursos o erotismo não poderia optar por desaparecer, já que ele existe na base de qualquer trabalho de arte, como existe na base da vida. Araripe Júnior, crítico da época, já havia pressentido isso, quando afirmou ser o "amor, ou melhor, a função genésica o elemento propulsor e inconsciente de toda e qualquer manifestação artística", e o eco de suas palavras pode ser ouvido em diversos perseguidores de Eros, como Bataille: "a poesia leva ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão de objetos distintos. Ela nos leva à eternidade, nos leva à morte, e, através da morte, à continuidade: a poesia é a eternidade".

O que pretendo, ao trilhar os caminhos de Eros nos diversos movimentos do Realismo burguês brasileiro, vai, portanto, um pouco além da simples constatação de sua existência nesse período. Estende-se à análise de seus discursos, à pesquisa de seus disfarces, ao desvendar de suas máscaras, numa época em que as máscaras eram necessárias para que Eros pudesse falar.


Texto de Lúcia Castello Branco retirado do livro Eros Travestido - um estudo do erotismo no realismo burguês brasileiro, Editora UFMG, Belo Horizonte, 1985.

Recebeste a Luz? (87)

 "Recebestes o Espírito Santo quando crestes?" - (ATOS, 19:2.)

O católico recolhe o sacramento do batismo e ganha um selo para identificação pessoal na estatística da Igreja a que pertence.

O reformista das letras evangélicas entra no mesmo cerimonial e conquista um número de  cadastro religioso do templo a que se filia.

O espiritista incorpora-se a essa ou àquela entidade consagrada à nossa Doutrina Consoladora e participa verbalmente do trabalho renovador.

Todos esses aprendizes da escola cristã se reconfortam e se rejubilam.

Uns partilham o contentamento da mesa eucarística que lhes aviva a esperança no Céu; outros cantam, em conjunto, exaltando a Divina Bondade, aliciando largo material de estímulo na jornada santificante; outros, ainda, se reúnem, ao redor da prece ardente, e recebem mensagens luminosas e reveladoras de emissários celestiais, que lhe consolidam a convicção na imortalidade, além...

Todas essas posições, contudo, são de proveito, consolação e vantagem.

É imperioso reconhecer, porém, que se a semente à auxiliada pela adubação, pela água e pelo sol, é obrigada a trabalhar, dentro de si mesma, a fim de produzir.

Medita, pois, na sublimidade da indagação apostólica: - "Recebeste o Espírito Santo quando creste?"

Vale-te da revelação com que a fé te beneficia e santifica o teu caminho, espalhando o bem.

Tua vida pode converter-se num manancial de bênçãos para os outros e para tua alma, se te aplicares, em verdade, ao Mestre do Amor. Lembra-te de que não és quem espera pela Divina Luz. É a Divina Luz, força do Céu ao teu lado, que permanece esperando por ti.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 24 de agosto de 2025

Introdução do Livro "1808"

O Brasil foi descoberto em 1500, mas, de verdade, só foi inventado como país em 1808. Foi quando a família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro fugindo das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte. Até então, o Brasil ainda não existia.

Pelo menos, não como é hoje: um país integrado, de dimensões continentais, fronteiras bem definidas e habitantes que se identificam como brasileiros. Até 1807, era apenas uma grande fazenda, de onde Portugal tirava produtos que levava embora. Ou seja, uma colônia extrativista, sem qualquer noção de identidade nacional.

As diferentes províncias eram relativamente autônomas. Não havia comércio nem estradas, meios de comunicação, nem, praticamente, contato entre elas. Tinham como único ponto de referência em comum o Governo Português, que ficava lá em Lisboa, do outro lado do Atlântico.

A vinda da Corte transformaria radicalmente esse cenário. Uma semana depois do seu desembarque em Salvador, o regente D. João (que ainda não era João VI) anunciou a abertura dos portos. Além disso - uma medida muito importante -, na chegada ao Rio de Janeiro, liberou o comércio e a indústria manufatureira, o que, na prática, era o fim do sistema colonial.

Antes disso, o Brasil não podia comerciar com nenhuma nação, a não ser com Portugal. E não podia fabricar nada por aqui - livros, sapatos, louça de casa, tecidos; tudo era comprado de Portugal ou por intermédio de Portugal. Eram três séculos de monopólio português que terminavam. Finalmente, o Brasil integrava-se ao sistema internacional de produção e comércio.

Foi o começo das grandes mudanças. Em apenas treze anos, entre a chegada e a partida da Corte, o Brasil deixou de ser uma colônia atrasada, proibida e ignorante, para se tornar uma nação independente. Nenhum outro período da história brasileira testemunhou mudanças tão profundas, tão decisivas, em tão pouco tempo.

Foi também um evento sem precedentes na história da humanidade. Nunca antes uma Corte europeia havia cruzado um oceano para viver e governar do outro lado do mundo. D. João foi o único soberano europeu a colocar os pés em terras americanas em mais de quatro séculos de dominação.

O propósito de 1808 - na sua edição original, lançada no Brasil em setembro de 2007 e em Portugal em fevereiro de 2008, e agora também nesta versão juvenil - é contribuir para que esse acontecimento, tão importante na história de ambos os países, se torne cada vez mais conhecido pelos leitores brasileiros e portugueses. Nesta nova versão, o texto de 1808 foi editado pela jornalista Denise Ortiz. As informações foram condensadas e, sempre que necessário, reordenadas para facilitar a compreensão. Nesse trabalho, feito com a orientação do autor, Denise teve o cuidado de preservar todos os detalhes fundamentais que compõem a história da Corte no Brasil, excluindo apenas alguns personagens e situações considerados acessórios. Os capítulos são ilustrados com cenas e personagens da época reproduzidos em aquarelas pela artista plástica Rita Bromberg Brugger. Gaúcha de Porto Alegre, Rita mora em Caxias do Sul e produz ilustrações com base em rigorosa pesquisa histórica.

Do mesmo modo, o texto de 1808, nas suas duas versões, é todo fundamentado em referências bibliográficas. O resultado pretende ser, ao mesmo tempo, atraente e educativo para os interessados em conhecer um pouco mais sobre a grande aventura da fuga da corte de D. João para o Brasil.


Introdução feito pelo autor do livro 1808, Laurentino Gomes (São Paulo, março de 2008); Edição Juvenil Ilustrada, Editora Planeta Jovem, São Paulo, 2015. O título do livro é 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.

sábado, 23 de agosto de 2025

Prefácio do livro A Tolice da Inteligência Brasileira

A realidade social não é visível a olho nu, o que significa que o mundo social não é transparente aos nossos olhos. Afinal, não são apenas os músculos dos olhos que nos permitem ver, existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, "selecionam" e "distorcem" o que os olhos veem, e "escondem" o que não deve ser visto. O leitor pode se perguntar: mas por que alguém faria isso? Por que existiria o interesse em esconder, distorcer ou, como dizemos na vida cotidiana, o interesse em "mentir" sobre como o mundo social realmente é? Ora, como diria o insuspeitado Max Weber, os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm "direito" à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio - mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança - necessita ser "legitimado", ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios.

Nas sociedades do passado o privilégio era aberto e religiosamente motivado: alguns tinham "sangue azul" por decisão supostamente divina, o que os legitimava terem acesso a todos os bens e recursos escassos. A sociedade moderna, no entanto, diz de si mesma que superou todos os privilégios injustos. Isso significa que os privilégios injustos de hoje não podem "aparecer" como privilégio, mas sim como, por exemplo, "mérito pessoal" de indivíduos mais capazes, sendo, portanto, supostamente justificável e merecido.

É isso que faz com que o mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando dependem do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do "convencimento", e não da "violência". Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma "violência simbólica" (Esta é uma noção do sociólogo francês Pierre Bourdieu para se diferenciar da noção de "ideologia" em Marx e enfatizar o trabalho da dominação social como tendo seu núcleo na tentativa de fazer o dominado aceitar por "convencimento" as razões da própria dominação.), perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da "violência física". é por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro, renda da terra ou aluguel.

A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere em grande medida para o bolso do 1% mais rico. Este livro é uma reflexão acerca do que torna possível desigualdade tão abissal e concentração de renda tão grotesca em um país formalmente democrático como o Brasil de hoje.

A tese central deste livro é que tamanha "violência simbólica" só é possível pelo sequestro da "inteligência brasileira" para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da "corrupção apenas do Estado".

E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado - concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro -, como o reino da virtude e da eficiência. E em um contexto no qual não existe fortuna de brasileiro que não tenha sido construída à sombra de financiamentos e privilégios estatais nem corrupção estatal sistemática sem conivência e estímulo do mercado. E também em um cenário em que as classes sociais que mais apoiam essa bandeira como se fosse sua - os extratos conservadores da classe média tradicional e setores ascendentes da nova classe trabalhadora - são precisamente as classes que mais sofrem com os bens e serviços superfaturados e de qualidade duvidosa que o 1% mais rico vende a elas. (Os serviços de telefonia celular no Brasil é um excelente exemplo que pode ser multiplicado para vários setores. Ramo privatizado no governo FHC em nome da "eficiência do mercado", apresenta uma das taxas de preço mais altas do mundo para um serviço de péssima qualidade e campeão de reclamações do PROCOM - em 2013, era um total de 172.000 reclamações. O mesmo acontece com o mercado automotivo: o preço que o brasileiro paga pelo automóvel chega a ser três vezes maior que nos outros países)

Não basta aos endinheirados controlar todos os grandes jornais e redes de TV para legitimar seus próprios interesses. Hoje em dia esses interesses precisam ser "justificados" de modo que pareçam "razoáveis" a fim de "convencer" os que são feitos de tolos por essas falsas justificações. Os endinheirados e poderosos têm que ser inteligentes o bastante para criar uma "ciência para seus interesses", como de fato construíram no Brasil, o que, espero, demonstraremos neste livro para além de qualquer dúvida. Afinal, a "ciência" - e os cientistas especialistas que a incorporam - é atualmente, quem herda o "prestígio" das grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é errado. Não existe notícia em jornal ou TV que não necessite do "aval" de um especialista.

É por isso que este livro parte da crítica da ciência social conservadora até hoje no Brasil como o fundamento último da dominação material e efetiva - que a grotesca divisão do PIB, ou seja, da riqueza social entre as pessoas, mostra tão bem - das classes do privilégio entre nós. A dominação social material e concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se "justificar" e convencer. E produzir "convencimento" é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado.

A ação combinada do "culturalismo conservador" com o "economicismo", os dois pilares da "inteligência brasileira" que criticaremos neste livro, leva a um extremo empobrecimento do debate político nacional. É preciso sempre levar em conta que, na sociedade contemporânea, a legitimação da dominação social é realizada pela "ciência" de modo semelhante à maneira como as grandes religiões do passado faziam nas sociedades tradicionais. São sempre ideias de intelectuais e especialistas que estão na base de programas de partido político, de planejamento do Estado, do que se ensina em salas de aula, do que se decide em tribunais e daquilo que se publica em jornais. Como a genealogia das ideias dominantes não é realizada ou explicitada, temos a impressão de que as ideias "brotam" espontaneamente. Isso não é verdade. São ideias-força de intelectuais e especialistas que se conectam a "interesses poderosos" e logram se "institucionalizar" como leitura dominante de toda uma sociedade sobre si mesma.

Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização. Na verdade, tanto o culturalismo, com sua generalização da corrupção apenas do Estado como contraposta a um mercado supostamente virtuoso, quanto o economicismo, com sua leitura superficial e simplificadora da realidade, levam a um mesmo resultado. Essas duas leituras dominantes e complementares acarretam uma confusão das hierarquias a respeito das questões mais importantes da sociedade brasileira e uma superficialidade e fragmentação da própria percepção da realidade social.

Retira-se dos indivíduos a possibilidade de compreender a totalidade da sociedade e suas reais contradições e conflitos, os quais são substituídos por falsas questões. A fragmentação do conhecimento serve aos interesses dos que estão ganhando na sociedade, já que evitam sua mudança possível. A ação da mudança, a capacidade moral e política de escolher caminhos alternativos pela vontade de intervir no mundo, pressupõe "conhecimento do mundo" para não ser "escolha cega". É isso que faz com que todo conhecimento fragmentário e superficial seja necessariamente conservador. Ele ajuda a manter e justificar o que já existe. Mostraremos neste livro como essa justificação dos privilégios injustos se faz possível no Brasil pela continuação do culturalismo e do economicismo como leituras dominantes fragmentárias e superficiais de nossa realidade.

A "crítica das ideias" dominantes é a primeira trincheira de luta contra os "interesses dominantes" que se perpetuam por se travestirem de supostos interesses de todos. Esse é precisamente o nosso objetivo neste livro: apelar para a inteligência viva daqueles que foram feitos de tolos, ou seja, todos nós, vítimas de uma violência simbólica bem perpetrada. Nosso compromisso e desafio é fazê-lo de tal modo que qualquer leitor de boa vontade - que ama a verdade e percebe o esforço que sua conquista envolve - possa compreendê-lo. Ainda que a desconstrução do senso comum seja um desafio não só cognitivo, mas também emotivo - afinal, são visões de mundo que nos acostumamos a perceber como "nossas" -, nosso empenho foi eliminar do texto todo e qualquer vocabulário "técnico" dispensável. Normalmente a linguagem técnica dos especialistas só serve para criar um abismo entre estes e leigos, para proteger e "distinguir" o  especialista dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do conhecimento como mero "fetiche" do mesmo modo que se utilize o dinheiro na vida social: para "comprar" reconhecimento e legitimar privilégios.

Nosso esforço, ao contrário, foi utilizar o conhecimento como "arma de combate", para rearmar o cidadão que foi destituído das precondições para entender seu cotidiano e as lutas sociais, nas quais se encontra inserido sem o saber, para torná-lo sujeito de seu destino. O pressuposto é que as pessoas que foram feitas de "tolas" podem ser tão inteligentes na política quanto o são nas outras esferas da vida cotidiana e estão aptas a recuperar o que lhes foi tomado: a capacidade de refletir e julgar com autonomia e independência.


Prefácio de Jessé de Souza para o seu livro A Tolice da Inteligência Brasileira (ou como o país de deixa manipular pela elite), Leya Editora, São Paulo, 2015.

Estás Doente? (86)

 "E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará." - (TIAGO, 5:15.)


Todas as criaturas humanas adoecem, todavia, são raros aqueles que cogitam de cura real.

Se te encontras enfermo, não acredites que a ação medicamentosa, através da boca ou dos poros, te possa restaurar integralmente.

O comprimido ajuda, a injeção melhora, entretanto, nunca te esqueças de que os verdadeiros males procedem do coração.

A mente é fonte criadora.

A vida, pouco a pouco, plasma em torno de teus passos aquilo que desejas.

De que vale a medicação exterior, se prossegues triste, acabrunhado ou insubmisso?

De outras vezes, pedes o socorro de médicos humanos ou de benfeitores espirituais, mas, ao surgirem as primeiras melhoras, abandonas o remédio ou o conselho salutar e voltas aos mesmos abusos que te conduziram à enfermidade.

Como regenerar a saúde, se perdes longas horas na posição da cólera ou do desânimo? A indignação rara, quando justa e construtiva no interesse geral, é sempre um bem, quando sabemos orientá-la em serviços de elevação; contudo, a indignação diária, a propósito de tudo, de todos e de nós mesmos, é um hábito pernicioso, de consequências imprevisíveis.

O desalento, por sua vez, é clima anestesiante, que entorpece e destrói.

E que falar da maledicência ou da inutilidade, com as quais despendes tempo valioso e longo em conversação infrutífera, extinguindo as tuas forças?

Que gênio milagroso te doará o equilíbrio orgânico, se não sabes calar, nem desculpar, se não ajudas, nem compreendes, se não te humilhas para os desígnios superiores, nem procuras harmonia com os homens?

Por mais se apressem socorristas da Terra e do Plano Espiritual, em teu favor, devoras as próprias energias, vítima imprevidente do suicídio indireto.

Se estás doente, meu amigo, acima de qualquer medicação, aprende a orar e a entender, a auxiliar e a preparar o coração para a Grande Mudança.

Desapega-te de bens transitórios que te foram emprestados pelo Poder Divino, de acordo com a Lei do Uso, e lembra-te de que será, agora ou depois, reconduzido à Vida Maior, onde encontramos sempre a própria consciência.

Foge à brutalidade.

Enriquece os teus fatores de simpatia pessoal, pela prática do amor fraterno.

Busca a intimidade com a sabedoria, pelo estudo e pela meditação.

Não manches teu caminho.

Serve sempre.

Trabalha na extensão do bem.

Guarda lealdade ao ideal superior que te ilumina o coração e permanece convicto de que se cultivas a oração da fé viva, em todos os teus passos, aqui ou além, o Senhor te levantará.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 17 de agosto de 2025

Prefácio à 1ª Edição do livro Introdução à Psicologia do Ser

Tive muitas dificuldades ao escolher o título para este livro. O conceito de "saúde psicológica", embora ainda seja necessário, tem várias deficiências intrínsecas para fins científicos, as quais serão analisadas em vários lugares apropriados, no decorrer do livro. O mesmo pode ser dito de "doença psicológica", como Szasz e os psicólogos existenciais recentemente sublinharam. Ainda podemos usar esses termos normativos e, de fato, por razões heurísticas, devemos utilizá-los, desta vez; entretanto, estou convencido de que se tornarão obsoletos dentro de uma década. 

Um termo muito melhor é "individuação", no sentido em que usei. Ele sublinha a "humanidade plena do indivíduo", o desenvolvimento da natureza humana biologicamente alicerçada e, portanto, é (empiricamente) normativo para toda a espécie, em vez de sê-lo para determinados tempos e lugares; quer dizer, é menos culturalmente relativo. Ajusta-se mais ao destino biológico do que aos modelos de valor historicamente arbitrários e culturalmente locais, como frequentemente ocorre com os termos "saúde" e "doença". Também tem conteúdo empírico e significado operacional.

Contudo, à parte ser desgracioso de um ponto de vista literário, esse termo provou ter imprevistas deficiências, como: a) implicar egoísmo em vez de altruísmo; b) encobrir o aspecto de dever e de dedicação às tarefas da vida; c) negligenciar os vínculos com outras pessoas e a sociedade, e a dependência da plena realização individual de uma "boa sociedade"; d) negligenciar o caráter exigente da realidade não-humana e o seu fascínio e interesse intrínsecos; e) negligenciar o desprendimento do ego e a possibilidade de transcendência do eu; e, finalmente, f) sublinhar, por implicação, a atividade, mais do que a passividade ou receptividade. E tudo isso aconteceu apesar dos meus cuidadosos esforços para descrever o fato empírico de que as pessoas individuacionantes são altruístas, dedicadas, sociais, capazes de se transcenderem etc.

A palavra "eu" parece desconcertar as pessoas, e as minhas redefinições e descrição empírica são amiúde impotentes diante do poderoso hábito linguístico de identificar "eu" com "egoísta" e com autonomia pura. Para minha consternação, também verifiquei que alguns psicólogos inteligentes e capazes persistem em tratar a minha descrição empírica das características de pessoas individuacionantes como se eu tivesse arbitrariamente inventando essas características, em vez de descobri-las.

"Plena realização humana" evita, segundo me parece, alguns desses equívocos. E "diminuição ou deficiência humana" também serve como melhor substituto para "doença" e até, porventura, para neurose, psicose e psicopatia. Pelo menos, esses termos são mais úteis para a teoria psicológica e social geral, quando não para a prática psicoterapêutica.

Os termos "Ser" e "Devir" ou "Vir a Ser", tal como os emprego em todo este livro, são ainda melhores, se bem que não estejam utilizados, por enquanto, de maneira suficientemente generalizada para servir como moeda corrente. Isso é deveras lamentável, porque a Psicologia do Ser é certamente muito diferente da Psicologia do Devir e da Psicologia da Deficiência, como veremos. Estou convencido de que os psicólogos devem caminhar no sentido da reconciliação da S-Psicologia com a D-Psicologia, isto é, do perfeito com o imperfeito, do ideal com o real, do eupsiquismo com o existente, do intemporal com o temporal, da Psicologia como fim com a Psicologia como meio.

Descobri que é muito difícil comunicar a outros o meu respeito e a minha impaciência simultâneos, ante essas duas psicologias abrangentes. Tantas pessoas insistem em ser ou a favor de Freud ou contra Freud, a favor da Psicologia Científica ou contra a Psicologia Científica etc. Na minha opinião, todas as posições de lealdade desse gênero são idiotas. A nossa missão é integrar essas várias verdades na verdade total, que deverá constituir a nossa única lealdade.

Para mim, é perfeitamente claro que os métodos científicos (concebidos em termos gerais) são o nosso único meio fundamental de estarmos certos de que temos a verdade. Mas também aqui é demasiado fácil cometer um equívoco e cair numa dicotomia: a favor da ciência ou contra a ciência.

A ciência, tal como é habitualmente concebida pelos ortodoxos, é inadequada para essas tarefas. Mas estou certo de que não precisa limitar-se a esses métodos ortodoxos. Não precisa abdicar dos problemas do amor, criatividade, valor, beleza, imaginação, ética e alegria, deixando tudo isso para os "não-cientistas", os poetas, profetas, sacerdotes, dramaturgos, artistas ou diplomatas. Todas essas pessoas podem ter maravilhosas introvisões, formular interrogações que têm de ser feitas, aventar hipóteses desafiadoras e podem até estar certas e dizer a verdade na maioria das vezes. Mas, por muito seguras que elas possam estar, nunca poderão tornar a humanidade segura. Podem apenas convencer aqueles que já concordam com elas e alguns mais. A ciência é o único meio de que dispomos para enfiar a verdade goela abaixo dos relutantes. Somente a ciência pode superar as diferenças caracterológicas no ser e no crer. Somente a ciência pode progredir.

Entretanto, permanece o fato de que ela chegou a uma espécie de beco sem saída e (em algumas de suas formas) pode ser encarada como uma ameaça e um perigo para a humanidade ou, pelo menos, para as mais elevadas e nobres qualidades e aspirações da humanidade. Muitas pessoas sensíveis, especialmente os artistas, receiam que a ciência macule e deprima, que dilacere coisas em vez de integrá-las e, por conseguinte, mate em vez de criar.

Acho que nada disso é necessário. Tudo o que a ciência precisa para ser uma ajuda à plena realização humana positiva é ampliar e aprofundar a concepção da sua natureza, das suas metas e dos seus métodos.


Trechos do prefácio do livro Introdução à Psicologia do Ser, Abraham H. Maslow, Livraria Eldorado, Rio de Janeiro, 2ª Edição, 1968.

sábado, 16 de agosto de 2025

Impedimentos (85)

 "Deixemos todo impedimento e pecado que tão de perto nos rodeiam e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta." - Paulo. (HEBREUS, 12:1.)


O grande apóstolo da gentilidade figura o trabalho cristão como sendo uma carreira da alma, no estádio largo da vida.

Paulo, naturalmente, em recorrendo a essa imagem, pensava nos jogos gregos de sua época, e, sem nos referirmos ao entusiasmo e à emulação benéfica que devem presidir semelhante esforço recordemos tão-somente o ato inicial dos competidores.

Cada participante do prélio despia a roupagem exterior para disputar a partida com indumentária tão leve quanto possível.

Assim, também, na aquisição de vida eterna, é imprescindível nos desfaçamos da indumentária asfixiante do espírito.

É necessário que o coração se faça leve, alijando todo fardo inútil.

Na claridade da Boa Nova, o discípulo encontra-se à frente do Mestre, investido de obrigações santificantes para com todas as criaturas.

As inibições contra a carreira vitoriosa costumam aparecer todos os dias. Temo-las, com frequência, nos mais insignificantes passos do caminho.

A cada hora surge o impedimento inesperado.

É o parente frio e incompreensivo.

A secura dos corações ao redor de nós.

O companheiro que desertou.

A mulher que desapareceu, perseguindo objetivos inferiores.

O amigo que se iludiu nas ilhas de repouso, deliberando atrasar a jornada.

O cooperador que a morte levou consigo.

O ódio gratuito.

A indiferença aos apelos do bem.

A perseguição da maldade.

A tormenta da discórdia.

A Boa Nova, porém, oferece ao cristão a conquista da glória divina.

Se quisermos alcançar a meta, ponhamos de lado todo impedimento e corramos, com perseverança, na prova de amor e luz que nos está proposta.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Aprendizagem: que espécie?

Escrevo este livro porque desejo falar a mestres, professores, educadores, administradores de escolas, universidades e instituições educacionais. Mas que é que pretendo dizer-lhes? Eis-me perplexo ante a pergunta. Invade-me uma onda de ideias e de sentimentos e fico sem saber como começar. Aí, um pensamento sobe à tona - desejo falar-lhes a respeito de aprendizagem. Mas não o amontoado de coisas sem vida, estéreis, fúteis, logo esquecidas, com que se abarrota a cabeça do pobre e desamparado educando, atado à sua cadeira pelos vínculos blindados do conformismo! Refiro-me à APRENDIZAGEM - à insaciável curiosidade que leva o adolescente a absorver tudo que pode ver, ouvir ou ler sobre motores a gasolina a fim de aumentar a eficiência e a velocidade do seu "calhambeque". Penso no estudante que diz:

- Estou descobrindo, estou sorvendo algo que me vem de fora, estou fazendo com que isto se insinue numa parte real de mim mesmo.

A aprendizagem a que aludo é aquela na qual a experiência do aprendiz progride nos seguintes estágios:

- Não, não! Não é isto que eu quero.

- Espere! Isto está começando a me interessar, é quase aquilo de que preciso.

- Ah, isto sim! Agora estou apanhando e compreendendo aquilo de que preciso, o que eu quero saber.

Eis o tema, eis o assunto deste livro.


Duas Espécies de Aprendizagem

A aprendizagem, creio, pode ser dividida em duas espécies gerais, dentro da mesma continuidade de significação. Num extremo da escala está a espécie de tarefa que os psicólogos algumas vezes impõem aos seus clientes - a aprendizagem de sílabas sem sentido. Guardar de memória certos itens como baz, ent, nep, arl, lud e outros de igual teor é tarefa difícil. Porque não há significado algum, aprender tais sílabas não é fácil e, se aprendidas, são logo esquecidas.

Com frequência nos negamos a reconhecer que muito do material apresentado aos estudantes em salas de aula tem, para eles, a mesma qualidade desconcertante e destituída de significado que tem, para nós, a lista de sílabas sem sentido. Isto é verdade, sobretudo, para a criança pouco privilegiada, a quem uma experiência anterior não oferece contexto algum dentro do qual se insira o material com que se defronta. Mas quase todo estudante descobre que extensas porções do seu currículo são, a seu ver sem o menor significado. Assim a educação se transforma na frustrada tentativa de aprender matérias sem qualquer significação pessoal.

Tal aprendizagem lida apenas com o cérebro. Só se coloca "do pescoço para cima". Não envolve sentimentos ou significados pessoais; não tem a mínima relevância para a pessoa como um todo.

Em contraste, há algo significante, pleno de sentido - a aprendizagem experiencial. Quando a criança que está aprendendo a andar toca no radiador de aquecimento, aprende por si mesmo o significado de uma palavra - "quente"; capacita-se da necessidade de ter, para o futuro, certo cuidado em relação a objetos semelhantes; a sua aprendizagem é feita de modo tão significativo que dela não se esquecerá tão cedo. Também a criança que guarda de memória "dois mais dois igual a quatro" pode, um dia, ao brincar com seus toquinhos ou com suas bolas de gude, compreender, subitamente que "dois mais dois são quatro". Descobriu algo que, para ela, tem significado, de um modo que envolve, ao mesmo tempo, o seu pensar e o seu sentir. Ou a criança que laboriosamente adquiriu a "habilidade de ler", pode-se ver encantada, um dia, com uma história ilustrada, seja um livro cômico ou um conto de aventuras, e compreende que as palavras têm um poder mágico que a põe fora de si mesma, dentro de um outro mundo. Só então, aprendeu, realmente, a ler.

Marshall McLuhan dá-nos um outro exemplo. Acentua ele que se uma criança de cinco anos é levada a um país estrangeiro, e se lhe é permitido brincar, livremente, durante horas, com seus novos companheiros, sem nenhuma instrução prévia sobre a Língua que eles falam, aprendê-la-á em poucos meses e adquirirá até mesmo a entonação que lhe é própria. Estará aprendendo de um modo que tem significado, que tem sentido para ela, e tal aprendizagem se processa em espaço de tempo extremamente curto. Mas se alguém tentar instruí-la na nova Língua, baseada essa instrução nos elementos que têm significado para o professor, a aprendizagem será tremendamente lenta ou simplesmente não se fará.

Essa ilustração, fundada em fato comum, merece ser bem ponderada. Por que é que a criança, deixada a si mesma, aprende rapidamente, de forma que não se esquecerá tão cedo e por um meio que tem significado eminentemente prático para ela, quando tudo se poderia deteriorar se fosse "ensinada" de maneira a só envolver a sua inteligência? Talvez um exame mais aprofundado nos ajude a responder.


Uma Definição

Definamos, com um pouco mais de precisão, os elementos envolvidos em tal aprendizagem significativa ou experiencial. Tem ela a qualidade de um envolvimento pessoal - a pessoa, como um todo, tanto sob o aspecto sensível quanto sob o aspecto cognitivo, inclui-se no fato da aprendizagem. Ela é autoiniciada. Mesmo quando o primeiro impulso ou o estímulo vêm de fora, o senso da descoberta, do alcançar, do captar e do compreender vem de dentro. É penetrante. Suscita modificação no comportamento, nas atitudes, talvez mesmo na personalidade do educando. É avaliada pelo educando. Este sabe se está indo ao encontro das suas necessidades, em direção ao que quer saber, se a aprendizagem projeta luz sobre a sombria área de ignorância da qual tem ele experiência. O locus da avaliação, pode-se dizer, reside, afinal, no educando. O significado é a sua essência. Quando se verifica a aprendizagem, o elemento de significação desenvolve-se, para o educando, dentro da sua experiência como um todo.


O Dilema

Creio que todos os mestres e educadores preferirão facilitar esse tipo de aprendizagem experiencial e dotada da significação, em vez do outro, o das sílabas sem sentido. Entretanto, na maioria das nossas escolas, em todos os níveis educacionais, ainda nos temos de haver com uma via de acesso tradicional e convencional que torna improvável, se não impossível, a aprendizagem de significação. Quando reunimos em um esquema elementos tais como currículo pré-estabelecido, "devedores" idênticos para todos os alunos, preleções como quase único modo de instrução, testes padronizados pelos quais são avaliados externamente todos os estudantes, e notas dadas pelo professor, como medida de aprendizagem, então, quase podemos garantir que a aprendizagem dotada de significação será reduzida a um mínimo.


Existem Alternativas?

Não é por alguma depravação interior que os educadores seguem tal sistema autofrustrador de ensino. É, quase literalmente, porque não conhecem alternativa exequível. Os elementos que eu acabo de mencionar vieram a ser considerados como a única definição possível de "educação".

Há, porém, alternativas - métodos alternativos práticos de lidar com uma classe ou dirigir um curso - tomadas de posição e hipóteses alternativas capazes de dar estrutura à educação - objetivos e valores alternativos pelos quais educadores e estudantes podem lutar. Espero que tais alternativas se tornem bem claras, nos capítulos que se seguem.


Prólogo (escrito pelo próprio autor) do livro Liberdade Para Aprender, de Carl R. Rogers, Editora Interlivros, 4ª Edição, Belo Horizonte,  1977. Tradução de Edgar Godoi da Matta Machado e Márcio Paulo de Andrade.

sábado, 9 de agosto de 2025

Na Instrumentalidade (84)

"Como se conhecerá o que se toca com a flauta ou com a cítara?" - Paulo. (I CORÍNTIOS, 14:7.)


Cada companheiro de serviço cristão deveria considerar-se instrumento nas mãos do Divino Mestre, a fim de que a sublime harmonia do Evangelho se faça irrepreensível para a vitória completa do bem.

Todavia, se a ilimitada sabedoria do Celeste Emissor se mantém soberana e perfeita, os receptores terrenos pecam por deficiências lamentáveis.

Esse tem fé, mas não sabe tolerar as lacunas do próximo.

Aquele suporta cristãmente as fraquezas do vizinho, contudo, não possui energia nem mesmo para governar os próprios impulsos.

Aquele outro é bondoso e confiante, mas foge ao estudo e à meditação, favorecendo a ignorância.

Outro, ainda é imaginoso e entusiasta, entretanto, escapa sutilmente ao esforço dos braços.

Um é conselheiro excelente, no entanto, não santifica os próprios atos.

Outro retém brilhante verbo na pregação doutrinária, todavia, é apaixonado cultor de anedotas menos dignas com que desfigura o respeito à revelação de que é portador.

Esse estima a castidade do corpo, mas desvaira-se pela aquisição de dinheiro fácil.

Outro, mais além, conseguiu desprender-se das posses de ouro e terra, casa e moinho, mas cultiva verdadeiro incêndio na carne.

É indiscutível a nossa imperfeição de seguidores da Boa Nova.

Por isso mesmo, guardamos o título de aprendizes.

O Planeta não é o paraíso terminado e achamo-nos, por nossa vez, muito distantes da angelitude.

Todavia, obedecendo ou administrando, ensinando ou combatendo, é indispensável afinar o nosso instrumento de serviço pelo diapasão do Mestre, se não desejamos prejudicar-lhe as obras.

Evitemos a execução insegura, indistinta ou perturbadora, oferecendo-lhe plena boa-vontade na tarefa que nos cabe, e o Reino Divino se manifestará mais rapidamente onde estivermos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

São Outros Quinhentos!

"São outros quinhentos!" vale dizer que são outras razões; é um novo caso; outro aspecto; outra coisa, outro assunto...

É uma frase diária e comum por todo o Brasil dos nossos dias.

Na Visita das Fontes, um apólogo dialogal de D. Francisco Manoel de Melo, publicado em Lisboa em 1657, um Soldado, conversando com a Fonte Velha do Rossio, responde a um reparo mais vivo da sua interlocutora: - Essas são outras mil & quinhentas!

Era, pois, de uso em Lisboa há trezentos e sete anos.

No tesouro da Língua Portuguesa, de Frei Domingos Vieira, há uma notícia complementar: "Isto são outros quinhentos! quer dizer que alguém pronunciou novo disparate afora os que havia já soltado". Quanto à origem e evolução temática, não sei mais nada, presentemente. Ficamos apenas sabendo que a frase é velha de três séculos e nos veio de Portugal.


Retirado do livro Coisas Que o Povo Diz, de Luís da Câmara Cascudo, Global Editora, São Paulo, 2009.

sábado, 2 de agosto de 2025

Avancemos (83)

 "Pelo que, deixando os rudimentos da doutrina do Cristo, prossigamos até à perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas." - Paulo. (Hebreus, 6:1)


Aceitar o poder de Jesus, guardar certeza da própria ressurreição além da morte, reconfortar-se ante os benefícios da crença, constituem fase rudimentar no aprendizado do Evangelho.

Praticar as lições recebidas, afeiçoando a elas nossas experiências pessoais de cada dia, representa o curso vivo e santificante.

O aluno que não se retira dos exercícios no alfabeto nunca penetra o luminoso domínio mental dos grandes mestres.

Não basta situar nossa alma no pórtico do tempo e aí dobrar os joelhos reverentemente; é imprescindível regressar aos caminhos vulgares e concretizar, em nós mesmos, os princípios da fé redentora, sublimando a vida comum.

Que dizer do operário que somente visitasse a porta de sua oficina, louvando-lhe a grandeza, sem contudo, dedicar-se ao trabalho que ela reclama? Que dizer do navio admiravelmente equipado, que vivesse indefinidamente na praia sem navegar?

Existem milhares de crentes da Boa Nova nessa lastimável posição de estacionamento. São quase sempre pessoas corretas em todos os rudimentos da doutrina do Cristo. Creem, adoram e consolam-se, irrepreensivelmente; todavia, não marcham para diante, no sentido de se tornarem mais sábias e mais nobres. Não sabem agir, nem lutar e nem sofrer, em se vendo sozinhas, sob o ponto de vista humano.

Precavendo-se contra semelhantes males, afirmou Paulo, com profundo acerto: - "Deixando os rudimentos da doutrina de Jesus, prossigamos até à perfeição, abstendo-nos de repetir muitos arrependimentos, porque então não passaremos de autores de obras mortas."

Evitemos, assim, a posição do aluno que estuda... e jamais se harmoniza com a lição, recordando também que se o arrependimento é útil, de quando em quando, o arrepender-se a toda hora é sinal de teimosia e viciação.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.