A realidade social não é visível a olho nu, o que significa que o mundo social não é transparente aos nossos olhos. Afinal, não são apenas os músculos dos olhos que nos permitem ver, existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, "selecionam" e "distorcem" o que os olhos veem, e "escondem" o que não deve ser visto. O leitor pode se perguntar: mas por que alguém faria isso? Por que existiria o interesse em esconder, distorcer ou, como dizemos na vida cotidiana, o interesse em "mentir" sobre como o mundo social realmente é? Ora, como diria o insuspeitado Max Weber, os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm "direito" à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio - mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança - necessita ser "legitimado", ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios.
Nas sociedades do passado o privilégio era aberto e religiosamente motivado: alguns tinham "sangue azul" por decisão supostamente divina, o que os legitimava terem acesso a todos os bens e recursos escassos. A sociedade moderna, no entanto, diz de si mesma que superou todos os privilégios injustos. Isso significa que os privilégios injustos de hoje não podem "aparecer" como privilégio, mas sim como, por exemplo, "mérito pessoal" de indivíduos mais capazes, sendo, portanto, supostamente justificável e merecido.
É isso que faz com que o mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando dependem do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do "convencimento", e não da "violência". Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma "violência simbólica" (Esta é uma noção do sociólogo francês Pierre Bourdieu para se diferenciar da noção de "ideologia" em Marx e enfatizar o trabalho da dominação social como tendo seu núcleo na tentativa de fazer o dominado aceitar por "convencimento" as razões da própria dominação.), perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da "violência física". é por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro, renda da terra ou aluguel.
A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere em grande medida para o bolso do 1% mais rico. Este livro é uma reflexão acerca do que torna possível desigualdade tão abissal e concentração de renda tão grotesca em um país formalmente democrático como o Brasil de hoje.
A tese central deste livro é que tamanha "violência simbólica" só é possível pelo sequestro da "inteligência brasileira" para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da "corrupção apenas do Estado".
E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado - concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro -, como o reino da virtude e da eficiência. E em um contexto no qual não existe fortuna de brasileiro que não tenha sido construída à sombra de financiamentos e privilégios estatais nem corrupção estatal sistemática sem conivência e estímulo do mercado. E também em um cenário em que as classes sociais que mais apoiam essa bandeira como se fosse sua - os extratos conservadores da classe média tradicional e setores ascendentes da nova classe trabalhadora - são precisamente as classes que mais sofrem com os bens e serviços superfaturados e de qualidade duvidosa que o 1% mais rico vende a elas. (Os serviços de telefonia celular no Brasil é um excelente exemplo que pode ser multiplicado para vários setores. Ramo privatizado no governo FHC em nome da "eficiência do mercado", apresenta uma das taxas de preço mais altas do mundo para um serviço de péssima qualidade e campeão de reclamações do PROCOM - em 2013, era um total de 172.000 reclamações. O mesmo acontece com o mercado automotivo: o preço que o brasileiro paga pelo automóvel chega a ser três vezes maior que nos outros países)
Não basta aos endinheirados controlar todos os grandes jornais e redes de TV para legitimar seus próprios interesses. Hoje em dia esses interesses precisam ser "justificados" de modo que pareçam "razoáveis" a fim de "convencer" os que são feitos de tolos por essas falsas justificações. Os endinheirados e poderosos têm que ser inteligentes o bastante para criar uma "ciência para seus interesses", como de fato construíram no Brasil, o que, espero, demonstraremos neste livro para além de qualquer dúvida. Afinal, a "ciência" - e os cientistas especialistas que a incorporam - é atualmente, quem herda o "prestígio" das grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é errado. Não existe notícia em jornal ou TV que não necessite do "aval" de um especialista.
É por isso que este livro parte da crítica da ciência social conservadora até hoje no Brasil como o fundamento último da dominação material e efetiva - que a grotesca divisão do PIB, ou seja, da riqueza social entre as pessoas, mostra tão bem - das classes do privilégio entre nós. A dominação social material e concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se "justificar" e convencer. E produzir "convencimento" é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado.
A ação combinada do "culturalismo conservador" com o "economicismo", os dois pilares da "inteligência brasileira" que criticaremos neste livro, leva a um extremo empobrecimento do debate político nacional. É preciso sempre levar em conta que, na sociedade contemporânea, a legitimação da dominação social é realizada pela "ciência" de modo semelhante à maneira como as grandes religiões do passado faziam nas sociedades tradicionais. São sempre ideias de intelectuais e especialistas que estão na base de programas de partido político, de planejamento do Estado, do que se ensina em salas de aula, do que se decide em tribunais e daquilo que se publica em jornais. Como a genealogia das ideias dominantes não é realizada ou explicitada, temos a impressão de que as ideias "brotam" espontaneamente. Isso não é verdade. São ideias-força de intelectuais e especialistas que se conectam a "interesses poderosos" e logram se "institucionalizar" como leitura dominante de toda uma sociedade sobre si mesma.
Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização. Na verdade, tanto o culturalismo, com sua generalização da corrupção apenas do Estado como contraposta a um mercado supostamente virtuoso, quanto o economicismo, com sua leitura superficial e simplificadora da realidade, levam a um mesmo resultado. Essas duas leituras dominantes e complementares acarretam uma confusão das hierarquias a respeito das questões mais importantes da sociedade brasileira e uma superficialidade e fragmentação da própria percepção da realidade social.
Retira-se dos indivíduos a possibilidade de compreender a totalidade da sociedade e suas reais contradições e conflitos, os quais são substituídos por falsas questões. A fragmentação do conhecimento serve aos interesses dos que estão ganhando na sociedade, já que evitam sua mudança possível. A ação da mudança, a capacidade moral e política de escolher caminhos alternativos pela vontade de intervir no mundo, pressupõe "conhecimento do mundo" para não ser "escolha cega". É isso que faz com que todo conhecimento fragmentário e superficial seja necessariamente conservador. Ele ajuda a manter e justificar o que já existe. Mostraremos neste livro como essa justificação dos privilégios injustos se faz possível no Brasil pela continuação do culturalismo e do economicismo como leituras dominantes fragmentárias e superficiais de nossa realidade.
A "crítica das ideias" dominantes é a primeira trincheira de luta contra os "interesses dominantes" que se perpetuam por se travestirem de supostos interesses de todos. Esse é precisamente o nosso objetivo neste livro: apelar para a inteligência viva daqueles que foram feitos de tolos, ou seja, todos nós, vítimas de uma violência simbólica bem perpetrada. Nosso compromisso e desafio é fazê-lo de tal modo que qualquer leitor de boa vontade - que ama a verdade e percebe o esforço que sua conquista envolve - possa compreendê-lo. Ainda que a desconstrução do senso comum seja um desafio não só cognitivo, mas também emotivo - afinal, são visões de mundo que nos acostumamos a perceber como "nossas" -, nosso empenho foi eliminar do texto todo e qualquer vocabulário "técnico" dispensável. Normalmente a linguagem técnica dos especialistas só serve para criar um abismo entre estes e leigos, para proteger e "distinguir" o especialista dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do conhecimento como mero "fetiche" do mesmo modo que se utilize o dinheiro na vida social: para "comprar" reconhecimento e legitimar privilégios.
Nosso esforço, ao contrário, foi utilizar o conhecimento como "arma de combate", para rearmar o cidadão que foi destituído das precondições para entender seu cotidiano e as lutas sociais, nas quais se encontra inserido sem o saber, para torná-lo sujeito de seu destino. O pressuposto é que as pessoas que foram feitas de "tolas" podem ser tão inteligentes na política quanto o são nas outras esferas da vida cotidiana e estão aptas a recuperar o que lhes foi tomado: a capacidade de refletir e julgar com autonomia e independência.
Prefácio de Jessé de Souza para o seu livro A Tolice da Inteligência Brasileira (ou como o país de deixa manipular pela elite), Leya Editora, São Paulo, 2015.
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