sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Gleba Me Transfigura

                  Cora Coralina


Sinto que sou abelha no seu artesanato.
Meus versos têm cheiro dos matos, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
Amo a terra de um místico amor consagrado, num esponsal sublimado,
procriador e fecundo.
Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,
suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos.
Plantei e colhi pelas suas mãos calosas
e tão mal remuneradas.
Participamos receosos do sol e da chuva em desencontro,
nas lavouras carecidas.
Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar
de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no regozijo
das formações escuras e pejadas no espaço
e o refrigério da chuva nas roças plantadas, nos pastos maduros
e nas cabeceiras das aguadas.
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.


A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros,
o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto, sou mato, sou paiol
e sou a velha tulha de barro.
Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras
e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas estradas.
Sou a espiga e o grão que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de foice e peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.


Eu me procuro no passado.
Procuro a mulher sitiante, neta de sesmeiros.
Procuro Aninha, a inzoneira que conversava com as formigas,
e seu comadrio com o ninho das rolinhas.
Onde está Aninha, a inzoneira,
menina do banco das mais atrasadas da escola de Mestra Silvina...
Onde ficaram os bancos e as velhas cartilhas da minha escola primária?
Minha mestra... Minha mestra... beijo-lhe as mãos,
tão pobre!...
Meus velhos colegas, um a um foram partindo, raleando a fileira...
Aninha, a sobrevivente, sua escrita pesada, assentada
nas pedras da nossa cidade...


Amo a terra de um velho amor consagrado
através de gerações de avós rústicos, encartados
nas minas e na terra latifundiária, sesmeiros.
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
Identificada com seus homens rudes e obscuros,
enxadeiros, machadeiros e boiadeiros, peões e moradores.
Seus trabalhos rotineiros, suas limitadas aspirações.
Partilhei com eles de esperança e desenganos.


Juntos, rezamos pela chuva e pelo sol.
Assuntamos de um trovão longínquo, de um fuzilar
de relâmpagos, de um sol fulgurante e desesperador,
abatendo as lavouras carecidas.
Festejamos a formação no espaço de grandes nuvens escuras
e pejadas para a salvação das lavouras a se perderem.
Plantei pelas suas enxadas e suas mãos calosas.
Colhi pelo seu esforço e constância.


Minha identificação com a gleba e com a sua gente.
Mulher da roça eu o sou. Mulher operária, doceira,
abelha no seu artesanato, boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama Vida.
Sou formiga incansável, diligente, compondo seus abastos.
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado que vai sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada
no ventre escuro da terra.


poema retirado do livro Vintém de Cobre - meias confissões de Aninha. Cora Coralina é o pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, poetisa goiana nascida em 1889 e falecida em 1985.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Blowing in the wind

                      Bob Dylan/versão: Diana Pequeno


Quantos caminhos
Um homem deve andar
Pra que seja aceito como um homem

Quantos mares
Uma gaivota irá cruzar
Pra poder descansar na areia

Quanto tempo
As balas de canhões explodirão
Antes de serem proibidas

The answer my friend
Is blowing in the wind
The answer is blowing the wind

Quantas vezes
Deve um homem olhar pra cima
Para poder ver o céu

Quantos ouvidos
Um homem deve ter
Para ouvir os lamentos do povo

Quantas mortes
Ainda serão necessárias
Para que se saiba que já se matou demais

  The answer my friend
Is blowing in the wind
The answer is blowing the wind


Quanto tempo
Pode uma montanha existir
Antes que o mar a desfaça

Quantos anos
Pode um povo viver
Sem conhecer a liberdade

Quanto tempo
Um homem deve virar a cabeça
Fingindo não ver o que está vendo

The answer my friend
Is blowing in the wind
The answer is blowing the wind


Bob Dylan lançou esta música em 1963. Ouvindo uma entrevista de Diana Pequeno, ela diz ter feito uma letra em português quando ainda era estudante universitária e cantava pelo campus; quando foi gravar seu então primeiro LP em 1978, resolveu incluí-la no repertório do álbum... É outra daquelas canções que nunca envelhecem!!

Para Você Me Educar

                           Vital Didonet

Você precisa me conhecer, precisa saber a minha vida,
meu modo de viver e sobreviver,
conhecer a fundo as coisas nas quais eu creio
e às quais me agarro nos momentos de solidão,
desespero e sofrimento.

Você precisa saber e entender as verdades,
pessoas e fatos aos quais eu atribuo forças superiores às minhas
e às quais me entrego quando preciso ir além de mim mesmo.

Para você me educar, precisa me encontrar lá onde eu existo:
no coração das coisas, nos mitos e nas lendas,
nas cores e movimentos, nas formas originais e fantásticas,
na terra, nas estrelas, nas forças dos astros, do sol e da chuva.

Para me educar, você precisa estar comigo onde estou,
mesmo que você venha de longe e que esteja muito adiante.
Só há um adiante para mim: aquele que eu construo e conquisto.
Só há uma forma de construí-lo:
a partir de mim mesmo e do meio em que vivo.

Para você me educar,
precisa compreender a cultura do contexto
em que se dá meu crescimento.
Suas linhas de força são as minhas energias.

Suas crenças e expectativas são as que passam a construir
o meu credo e as minhas esperanças.

Mas eu também estou aberto para as outras culturas.
" Identidade cultural " não significa prisão que ocupo
mas abertura ao que é autenticamente nosso e ao que, vindo de fora,
nos pode fazer mais nós mesmos.
A cultura universal é produto de todos os homens.
Mas não posso contribuir com essa fraternidade
se não tenho minha expressão cultural própria?

A educação que eu necessito é aquela que me faz mais eu, que
desperta, do mistério do meu ser, as potencialidades adormecidas.
É uma educação que promove minha identidade pessoal.

Eu me educo fazendo cultura,
e nesse ato de geração cultural, eu construo minha educação,
conquisto o meu ser, na relação de diálogo do homem e da
natureza.

História de um Rio


Certa vez, havia um rio. Um rio muito bonito. Ele começava de um pontinho, dançando e cantando descia da montanha. Quando chegava ao lado da cidade, tornava-se um rio muito largo. Ele era jovem, bonito e cheio de energia. E sua preocupação, todo dia, era correr atrás das nuvens. Nuvens são, frequentemente, de diferentes tipos e formas. Algumas vezes as nuvens são rosas, algumas vezes violetas, algumas vezes brancas. E o rio passava todo o seu dia correndo atrás das nuvens. Mas como vocês sabem, as nuvens são impermanentes. Suas formas mudam a cada minuto e elas não querem ficar paradas em um só lugar. O rio não podia aprisionar nenhuma nuvem. E por isso sofria muito. Algumas vezes ele se sentia muito cansado. Outras, desapontado. Um dia, o rio percebeu que o sofrimento causado pelas nuvens era enorme. E nesse dia houve uma grande tormenta, o vento soprou muito forte e levou todas as nuvens do céu. O rio, então, pensou que a vida dessa forma não valia mais a pena ser vivida. Não havia mais nuvens para ele correr atrás. A vida não tinha mais nenhum significado e ele quis cometer suicídio. Mas como poderia um rio cometer suicídio?

Já aprendemos que nada surge do nada e que algo que já existe não pode se tornar nada. O que podemos dizer é que o rio perdeu toda a esperança de viver, todo o gosto pela vida. Certa noite, voltou-se para si mesmo e escutou o seu próprio choro, pela primeira vez. Vocês sabem que é durante a noite que nós melhor escutamos o som das águas correndo. O rio estava sempre ocupado perseguindo as nuvens, e por isso nunca havia escutado o seu próprio som. Então, nesta noite, em que estava apto para voltar para si mesmo, ele escutou sua própria voz! E por causa deste tipo de serenidade, descobriu uma coisa muito importante: a água que nele corria eram as nuvens. Eram uma coisa só. Ele não precisava correr atrás de nada.

Este é um tipo de iluminação súbita. Ele sentiu que não precisava correr atrás de coisa alguma. Na manhã seguinte, o céu ainda estava vazio, mas ele descobriu uma coisa muito, muito nova, que era a cor azul do céu. Aquele azul estava refletido nele, durante todo esse tempo, por anos e anos. Que estranho ele nunca haver percebido o azul do céu! Ele via muitas nuvens flutuando no céu mas nunca havia percebido que o céu era tão azul, grande e sem limites! E o céu azul era a casa de todas as nuvens. Então, quando percebeu o céu refletido dentro dele, experimentou um sentimento de realização. Ficou muito calmo e tranquilo.

A tempestade passou naquela manhã. E de tarde, as nuvens voltaram. Todas as nuvens. Ele deu boas-vindas às nuvens, mas agora, não mais as perseguia. O rio havia se modificado bastante. Podia ainda perceber a beleza das nuvens sem, por isso, estar apegado à elas. Então, mesmo que as nuvens venham e vão embora, ele não fica mais infeliz. Ele agora não é mais capaz de desfrutar de uma só nuvem, mas pode desfrutar de todas as nuvens no céu. Ele perdeu a sua discriminação e todas as nuvens agora são ele.

Nessa noite, algo de maravilhoso aconteceu. Quando ele abriu o seu coração para o céu, recebeu um lindo luar. Assim, o rio, a lua e as nuvens deram-se as mãos e foram fazer meditação andando no oceano.

Cada um de nós é um rio, e devemos ser capazes de aprender com o nosso sofrimento, com as nossas frustrações. Nós já somos aquilo que queremos ser. Não precisamos correr atrás de nada mais. Abrimos o nosso coração e temos tudo. Nós somos tudo. Este é o tipo de despertar que temos que realizar e não é um trabalho muito longo. O rio ganhou isto com um dia e uma noite.

trecho do livro Respirando e Sorrindo de Thich Nhat Hanh

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Cometas e Estrelas

Há pessoas estrelas.
Há pessoas cometas.
Os cometas passam.
Apenas são lembrados pelas datas que
passam e retornam.
As estrelas permanecem. Há muita
gente cometa. Passam pela vida da
gente apenas por instantes; não prende
ninguém e a ninguém se prende.
Gente sem amigos. Que passa pela vida
sem iluminar, sem aquecer, sem marcar
presença.


Assim são muitos artistas.
Brilham apenas por instantes nos
palcos da vida.
E com a mesma rapidez com que
aparecem, desaparecem.
Assim são muitos reis e rainhas: de 
nações, clubes ou concursos de beleza.
Assim são rapazes e moças que se enamoram
e se deixam com a maior facilidade.
Assim são as pessoas que vivem numa
mesma família e passam pelo outro sem
serem presença.


Importante é ser estrela. Marcar
presença. Ser luz. Calor. Vida.
Amigos são estrelas. Podem passar os
anos, surgir distâncias, mas a marca
fica no coração.


Ser cometa não é ser amigo. É ser
companheiro por instantes. Explorar
sentimentos.
Aproveitar das pessoas e das situações.
É fazer acreditar e desacreditar ao
mesmo tempo.


A solidão é o resultado de uma
vida cometa.
Ninguém fica. Todos passam. E a gente
também passa pelos outros.
Há necessidade de criar um mundo
de estrelas.
Todos os dias poder vê-las e senti-las.
Todos os dias poder contar com elas.
Todos os dias ver sua luz e seu calor.


Assim são os amigos. Estrelas na vida
da gente. Pode-se contar com eles.
Eles são aragem nos momentos de
tensão. Luz nos momentos de fraqueza.
Segurança nos momentos de desânimo.


Olhando os cometas, é bom não se
sentir como eles. Nem desejar prender-se
em sua cauda.


Olhando os cometas, é bom sentir-se 
estrela. Marcar presença. Ter vivido e
construído uma história pessoal.
Ter sido luz para muitos amigos.
Ter sido calor para muitos corações.


Ser estrela neste mundo passageiro,
neste mundo cheio de pessoas cometas,
é um desafio, mas acima de tudo uma
recompensa.
É nascer e ter vivido, e não apenas existido.




autoria desconhecida

Ser Amigo


Se um dia lhe der uma louca vontade de chorar...
Me chama.
Não lhe prometo fazer sorrir,
Mas posso chorar com você...

Se um dia resolver fugir,
Não se esqueça de me chamar.
Não lhe prometo pedir pra ficar,
Mas posso fugir com você.

Se um dia lhe der uma louca vontade
De não falar com ninguém,
Me chame assim mesmo.
Prometo ficar bem quietinho.

Mas...

Se um dia você me chamar e eu não responder...
Venha correndo ao meu encontro,
Talvez eu esteja precisando de você...


autoria desconhecida

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Guardador de Rebanhos (trecho 8)

                      Alberto Caeiro




Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego de cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas - 
Um velho chamado José, que era carpinteiro.
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.


E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
" Se é que ele as criou, do que duvido " -
" Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres. "
E depois, cansado de dizer mal de Deus, 
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.


Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.


E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre
A direção de meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.


Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.


Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.


Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.


Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser mais verdadeira
Que tudo quando os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Alberto Caeiro é um dos heterônimos de Fernando Pessoa.

Porta Estandarte

                          Geraldo Vandré/Fernando Lona


Olha que a vida tão linda
Se perde em tristezas assim
Desce teu rancho cantando
Essa tua esperança sem fim
Deixa que a tua certeza
Se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando
O teu canto ele não seja em vão

Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando
Que canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando
Pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar
Um dia que vem vindo
E que eu vivo pra cantar
Na avenida girando
Estandarte na mão pra anunciar

Olha que vida
Tão linda
Tão linda
Perdida
Perdida


Fruto do Suor

                      Tony Osanah/Enrique Bergen



A terra nova era um paraíso
O milho alto e os rios puros
Dormia o ouro
A cobiça ausente
Era o índio senhor do continente.

Foram chegando os conquistadores,
Os africanos e os aventureiros.

O índio altivo se mesclou ao escravo
Nascia um novo tipo americano.

O interesse fabricou carimbos,
O ódio à toa levantou paredes
A baioneta desenhou fronteiras,
A estupidez nos separou em bandeiras.

Tenho um filho desta terra,
Foi um amor sem passaporte,
Se o estar foi brasileiro,
Não me chames de estrangeiro.

Cada pedra, cada rua 
Tem um toque de imigrantes
Levantaram com seus sonhos
Um país que não tem donos.

O suor fecunda o solo
E a semente não pergunta
Brasileiro ou imigrante
Só o fruto é importante

Não me sintas forasteiro
Não me inventes geografias
Sou tua raça
Sou teu povo
Sou teu irmão no dia-a-dia

canção do repertório do grupo Raíces de América. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O feio vício da inveja

                 Lya Luft


Antigamente se dizia que a masturbação era o feio vício. Eu digo: a inveja é um vício feiíssimo, secundado pelo ressentimento. Juntos preparam o caminho do inferno. Não aquele religioso, com diabos espetando o  traseiro da gente, mas o do ridículo e da falta de respeito por si mesmo, para começar.

Aceitamos muito mal o sucesso alheio, a alegria alheia, o amor alheio. Quando não gostamos de nossa própria vida, odiamos pensar que alguém esteja contente com a sua. Supervalorizamos o momento bom do outro, não para o curtirmos com ele, mas como se isso o tornasse maior ou melhor que nós, e o tratamos como réu: culpado de não fracassar, não ser vaiado, não ficar sozinho nem mofar na prateleira. A mim em geral me diverte um pouco observar essas coisas, mas às vezes me espanta.

Lygia Fagundes Telles, a quem aqui homenageio, que me incentivou a fazer ficção nos idos da década de 70, já então reclamava do " olho turvo da inveja vertendo sua lágrima verde de bílis ". Pois outro dia tive de escutar alguém amargo e chato, além do mais bastante inadequando, condenando os chamados best-sellers e seus autores, na minha cara. Por acaso um entre meus tantos livros de momento vende bem, e não vou me desculpar por isso. Ao mesmo tempo tal pessoa injuriava os leitores que compram coisa tão ruim...

O que é um best-seller? Entre nós era, até pouco tempo atrás, o livro estrangeiro que vendia milhões, enquanto o autor brasileiro chupava o dedo. Hoje se rotula assim também o livro de autor brasileiro que não mofa nas prateleiras.

Quero dizer que cansei. Nem por desinformação, burrice ou má vontade me perguntem se, depois de ser tachada de escritora " complicada ", hermética e obscura por tantos anos, passei - para alguns menos elegantes - a " facilitar para me nivelar aos leitores ". Se só vulgarização e baixo nível vendem uma obra, o Espírito Santo - para quem nele acredita - teria descido de nível ao inspirar a Bíblia , o livro que mais vende no mundo. Somos realmente tão tolos?

Sempre há os que detestam autores cujo trabalho é mais amplamente reconhecido, seja por qualidade, sorte ou essa marca de imponderável que faz com que um livro " pegue " ou não. Sempre há os que acham defeito no empresário bem-sucedido (" deve ser corrupto "), no casal feliz (" mas com certeza ele a passa para trás "), na mulher bonita (" ah, mas eu soube que ela... "). A lista do ressentimento e da calúnia é longa. Sinto lhes dizer, mas coisas boas acontecem, pessoas às vezes se amam de verdade, felicidade existe, famílias podem ser unidas, sucesso ocorre e, acreditem, não é caminho para o céu ou porta para qualquer academia - nenhuma, aliás, me interessa.

De preferência, nem deem tanta opinião se não forem críticos, resenhistas, professores - e, mesmo aí, aceitem seus limites. " Seu primeiro romance foi o melhor de todos ", me diz alguém (depois dele escrevi mais uns nove...). " Você devia escrever só romances, são muito melhores que seus ensaios e  poemas ", opina outro, e alguém logo a seguir comenta: " seus ensaios são mais interessantes, esqueça a ficção ". Um livro meu de poemas que acaba de sair comete o pecado de aparecer em listas de mais vendidos: já me divirto imaginando a reação das pessoas que vivem reclamando que " brasileiro não lê ", mas criticam aqueles cujos livros vendem bem e aqueles que os compram.

Ninguém mais ou menos sensato ou vagamente bem-educado perguntaria à francesa Marguerite Yourcenar , se viva fosse e de repente vendesse bem um livro seu (Memórias de Adriano esteve nas listas...): " Madame Yourcenar, a senhora agora se rebaixou para agradar aos leitores comuns, os ignorantes que compram best-sellers? ". Então, não perguntem o mesmo a nenhum escritor brasileiro de sucesso. Somos igualmente dignos de respeito. Mas há quem não consiga deixar o feio vício. Ai de nós!