quinta-feira, 28 de julho de 2022

Pégaso e Andrômeda, a princesa acorrentada

    Diz a lenda que muito tempo atrás, num distante país do Oriente, havia um rei chamado Cefeu, casado com a linda rainha Cassiopeia. Tal era a fama de sua beleza, que as pessoas vinham em caravana dos lugares mais remotos apenas para contemplá-la. Com o passar do tempo, a rainha começou a se considerar a mulher mais bonita do mundo. Foi nessa época que cometeu um grande erro. Diante de uma multidão que a aclamava, ousou dizer que era mais bela que as Nereidas. Estas ninfas, para infelicidade da rainha, eram protegidas pelo poderoso deus dos mares - Poseidon -, que ficou irado com a comparação. Num acesso de fúria, ergueu-se das águas segurando o tridente, seu enorme cetro de três pontas, e lançou uma maldição sobre o reino. O nível do mar subiu rapidamente e inundou grande parte do país. Ainda insatisfeito, o deus dos oceanos enviou um monstro marinho para devorar qualquer criatura que se aproximasse do reino pela região costeira.

    Os pescadores não se atreviam mais a sair de casa. Os navios estrangeiros que costumavam trazer preciosas mercadorias, não podendo atracar, nem saíam mais de seus portos. E o rei Cefeu foi aconselhado a realizar um sacrifício para aplacar a ira do deus ofendido. A vítima escolhida foi a princesa Andrômeda, sua filha. Deveriam amarrá-la aos rochedos para ser devorada por Cetus, o monstro que aterrorizava a costa. Andrômeda, que além de linda era muito corajosa, resolveu apresentar-se ao sacrifício para salvar o reino. E assim foi amarrada aos rochedos e ficou esperando o monstro.

    Enquanto isso, longe dali um jovem herói cumpria certa profecia. O belo Perseu, filho de Zeus - deus da terra e do céu, que habitava o monte Olimpo - e da princesa Danae, havia recebido três presentes muito especiais: o manto da invisibilidade, sandálias com asas e um escudo de metal, tão polido que mais parecia um espelho. Sua incumbência era matar a Medusa, um monstro em forma de mulher, cujos cabelos eram serpentes vivas. Todos os seres que a Medusa olhava se transformavam imediatamente em pedra. Usando seu manto e voando com as sandálias mágicas, Perseu conseguiu se aproximar da Medusa enquanto esta dormia. Quando ela pressentiu a presença de alguém, despertou, mas viu apenas sua própria imagem refletida no escudo polido do nosso herói. Antes que petrificasse, ele cortou-lhe a cabeça e colocou-a dentro de uma bolsa mágica de couro.

    Quando voltava dessa arriscada missão, o jovem encontrou Andrômeda acorrentada nos rochedos e ambos ficaram perdidamente apaixonados. Mas, no exato instante em que eles se olharam, o monstro Cetus apareceu. Foi só então que Perseu se lembrou que trazia consigo a cabeça da Medusa. E não pestanejou. Aproximou-se o mais que pôde e mostrou os olhos petrificantes da Medusa para Cetus, que imediatamente se transformou em pedra e caiu no fundo do oceano. Quando tudo parecia terminado, Perseu aproximou-se de Andrômeda para soltá-la, mas nesse exato instante uma gota de sangue da Medusa, que restara na bolsa, caiu no mar. Poseidon era apaixonado pela Medusa mas nunca tinha conseguido tocá-la. Esta única gota de sangue em contato com a água provocou um estrondo e uma abundante espuma branca, da qual emergiu um belíssimo cavalo alado chamado Pégaso. E assim, ao ver o filho de sua amada, Poseidon abandonou a ideia de vingança.

    Muitas lutas o herói Perseu precisou vencer para chegar à felicidade e casar-se com Andrômeda. E propagou essa vitória ao mundo, mostrando a todos a cabeça decepada da inimiga. Por fim, livrou-se dela ofertando-a à deusa Atena, sua protetora.

    Segundo a lenda, Pégaso foi recebido no monte Olimpo, morada dos deuses gregos e, tempos depois, transformou-se numa das constelações mais representativas da primavera - estação do ano que começa em 23 de setembro no hemisfério Sul.


Lenda grega recontada por Walmir Cardoso; texto retirado da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, São Paulo, Setembro de 1998.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Uma epopeia brasileira

A Coluna Prestes, sem vencer nem ser vencida pelo governo que combatia, percorreu 25 mil quilômetros para abalar as estruturas da República Velha.


    Dia 28 de outubro de 1924: começa o levante tenentista no estado do Rio Grande do Sul. Logo a seguir tem início a marcha rebelde que, mais tarde, entraria para a história como a Coluna Prestes (ou Coluna Invicta), episódio culminante do movimento. Diante da grave crise estrutural (econômica, social, política, ideológica e cultural) que abalava a República no início dos anos 1920 - a crise do "pacto oligárquico" estabelecido entre os grupos oligárquicos dominantes -, os setores médios mostravam-se insatisfeitos com a falta de liberdade e as limitadas possibilidades de influir na vida política. Predispunham-se à revolta e a apoiar ações radicais contra o poder da oligarquia. Faltavam-lhes, contudo, organização e capacidade de arregimentação para assumir a direção do movimento de rebeldia contra esse domínio estabelecido. A insatisfação no país era geral, mas foi a jovem oficialidade do Exército e da Marinha que assumiu a liderança das oposições. O tenentismo veio preencher o vazio deixado pela falta de líderes civis aptos a conduzir o processo de lutas que começava a sacudir as já caducas instituições políticas da Primeira República. Os "tenentes" assumiram as bandeiras de conteúdo liberal que, há algum tempo, vinham sendo agitadas pelos setores oligárquicos dissidentes, dentre as quais se destacava a demanda do voto secreto, refletindo o anseio generalizado de liquidação da fraude eleitoral então em vigor. O que distinguia os revoltosos das oligarquias dissidentes e dava ao seu liberalismo um caráter radical era a disposição de recorrer às armas na luta por tais objetivos.

    A primeira revolta, rapidamente sufocada tanto no Rio de Janeiro como em Mato Grosso - os únicos lugares em que chegou a ser deflagrada -, imortalizou-se pelo episódio do Levante dos 18 do Forte de Copacabana, no dia 5 de julho de 1922. Liderados pelo tenente Antônio de Siqueira Campos, um pequeno grupo de jovens militares marchou pela praia de Copacabana, de peito a descoberto, disposto a enfrentar os disparos das tropas governistas. Manchando de sangue as areias de Copacabana, os jovens foram trucidados. Apenas dois conseguiram sobreviver: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. O episódio repercutiu por todo o Brasil, apesar do estado de sítio e da censura à imprensa, decretados pelo Congresso Nacional. E os nomes dos heróis do Forte tornaram-se símbolo do clima de revolta então existente contra os governos das oligarquias dominantes - os governos de Epitácio Pessoa e do seu sucessor Artur Bernardes. Ambos representavam, no fundamental, os interesses das oligarquias cafeicultoras de São Paulo e Minas Gerais e, dada a grave crise que abalava as estruturas do regime republicano, adotavam políticas econômicas cada vez mais excludentes em relação aos grupos oligárquicos dos demais estados da União e aos diversos setores da sociedade brasileira da época.

    Em 5 de julho de 1924, dois anos após o levante de 1922, estourava a Rebelião de São Paulo, inaugurando uma nova onda de revoltas tenentistas. Era o "segundo 5 de julho". Levantaram-se vários grupamentos policiais e unidades do Exército sediados nesse estado. O comando geral do movimento fora entregue pelos jovens rebeldes ao general reformado do Exército, Isidoro Dias Lopes, que contava com a colaboração do major Miguel Costa, comandante da Força Pública de São Paulo (a Polícia Militar do Estado).

    O objetivo do movimento era depor o presidente Artur Bernardes, cujo governo transcorria, desde o início, sob estado de sítio permanente e sob vigência da censura à imprensa. Os rebeldes pretendiam substituir Bernardes por um político capaz de "moralizar os costumes políticos". Lutava-se pelas mesmas demandas de caráter liberal já levantadas em 1922: além do voto secreto, "representação e justiça", moralização dos costumes políticos e, de uma maneira geral, o cumprimento dos preceitos liberais da Constituição de 1891.

    Durante três semanas, os rebeldes resistiram ao cerco das tropas governistas à capital de São Paulo. Ante o dilema de serem derrotados pela superioridade militar ou se retirarem para outra região, onde fosse possível rearticular o movimento, o general Isidoro optou pela segunda alternativa. Sempre perseguidos pelos adversários mais numerosos e bem-armados, eles conseguiram chegar ao oeste do estado do Paraná, onde se estabeleceram. Logo enfrentariam as tropas comandadas pelo general Cândido Mariano Rondon, que se oferecera a Artur Bernardes para combater os militares rebelados.

    A conspiração tenentista prosseguiu durante  todo o ano de 1924. Após o levante paulista, atingiu um ritmo acelerado no Rio Grande do Sul, estado em que contaria com o apoio dos maragatos (os libertadores) liderados pelo rico fazendeiro Joaquim Francisco de Assis Brasil. As condições precárias dos rebeldes paulistas, cercados no oeste do Paraná, contribuíram para aguçar o espírito de luta da jovem oficialidade comprometida com a chamada "revolução", levando-a a se mobilizar em solidariedade aos companheiros de São Paulo.

    O principal coordenador da rebelião militar no Rio Grande do Sul foi o tenente Aníbal Benévolo, da Brigada de Cavalaria de São Borja. Também foram importantes na deflagração do levante gaúcho o capitão Luiz Carlos Prestes e o tenente Mário Portela Fagundes. Ambos haviam servido no 1º Batalhão Ferroviário (1º BF) de Santo Ângelo e mantido contato estreito e permanente com a tropa.

    Na noite de 28 de outubro, levantou-se o 1º BF, sob o comando de Prestes e Portela, e, na madrugada de 29, algumas outras unidades militares nesse mesmo estado. Ao mesmo tempo, vários caudilhos ligados a Assis Brasil aderiram ao levante. As tropas dos maragatos, de lenço vermelho no pescoço, incorporaram-se às diversas unidades, constituindo um reforço para a "revolução" tenentista.

    As forças governistas foram rapidamente mobilizadas e lançadas contra os rebeldes. Devido à falta de coordenação entre as unidades rebeladas e à espontaneidade de suas ações, em poucos dias estavam desbaratadas. A "revolução" conseguiu sobreviver apenas na região de São Luís Gonzaga: primeiro pelo fato de a cidade se encontrar distante de qualquer linha férrea, o que, naquela época, dificultava o acesso das tropas governistas, retardando sua investida contra os rebeldes; segundo, por conta do papel decisivo do capitão Prestes na reorganização das tropas. Na prática, Prestes passou a comandar não só o 1º BF, que viera com ele de Santo Ângelo, como também os elementos militares e civis remanescentes dos diversos levantes ocorridos no estado.

    A atuação prévia de Prestes no 1º BF, durante  quase dois anos, levara-o a introduzir nessa unidade não só um novo tipo de instrução militar como também um novo tipo de relacionamento entre os soldados e o seu comandante. Assim, o jovem capitão, preocupado em garantir uma boa alimentação para a tropa, adotou uma série de medidas: a contratação de um padeiro e um cozinheiro; organização das atividades e do tempo dos seus subordinados para que todos pudessem estudar, ter aulas de educação física e receber instrução militar; além da execução do trabalho de construção da linha férrea que ligaria Santo Ângelo a Giruá (RS). O próprio Prestes tornou-se professor e criou três escolas: uma para alfabetização e as outras duas, ao equivalente hoje, de ensino fundamental e médio. Em três meses, não havia analfabetos na companhia. Prestes não só comandou seus soldados como, ao mesmo tempo, trabalhou junto com eles. O capitão conseguia estimular a iniciativa dos soldados, sem desprezar a disciplina, que era obtida com o exemplo do próprio comportamento. Em consequência, o prestígio de Prestes tornou-se enorme, garantindo a fidelidade do 1º BF na hora do levante.

    Em São Luís Gonzaga, Prestes enfrentou a necessidade de organizar a resistência ao ataque inimigo em preparação. Foi assim que o 1º Batalhão Ferroviário transformou-se na espinha dorsal da tropa rebelde, que ficaria conhecida como a Coluna Prestes.

    Em dezembro de 1924, 14 mil homens, sob o comando do Estado-Maior governista, marchavam sobre São Luís Gonzaga. Formavam o chamado "anel de ferro", com o qual se pretendia estrangular os rebeldes - cerca de 1,5 mil homens, armados precariamente e quase desprovidos de munição - acampados em torno da cidade. O governo adotava a "guerra de posição" - a única tática que os militares brasileiros conheciam e que, de acordo com o modelo dos combates travados durante a Primeira Guerra Mundial, consistia em ocupar posições, abrindo trincheiras e permanecendo na defensiva, à espera do inimigo. Ou, então, quando as posições inimigas estavam localizadas, definia-se o "objetivo geográfico" para onde se deveria marchar, com a meta de cercar o adversário.

    Prestes, assessorado por Portela, põe em prática a "guerra do movimento" - uma espécie de luta de guerrilhas, então uma novidade para o Exército brasileiro. O rompimento do cerco de São Luís pelos rebeldes e a marcha vitoriosa da Coluna comandada por Prestes em direção ao norte, visando socorrer os companheiros de São Paulo, cercados pelas tropas do general Rondon, constituíram a primeira grande vitória da nova tática militar imaginada por Prestes.

    Em 12 de abril de 1925, na cidade paranaense de Foz do Iguaçu, deu-se o encontro histórico das tropas gaúchas com os rebeldes paulistas. A proposta de Prestes de prosseguir na luta, dando continuidade à marcha rebelde acabou prevalecendo. O principal objetivo era manter acesa a chama da rebeldia tenentista e, com isso, atrair as forças inimigas para o interior do país - o que poderia contribuir para o êxito dos "tenentes", que conspiravam no Rio de Janeiro e em outras capitais, preparando novos levantes.

    Após a junção das colunas paulista e gaúcha, as tropas rebeldes foram reorganizadas, criando-se a 1ª Divisão Revolucionária, constituída pelas brigadas "São Paulo" e "Rio Grande", sob o comando do major Miguel Costa, o oficial de maior patente, promovido a general-de-brigada pelo general Isidoro. Ao todo, a divisão contava com menos de 1,5 mil combatentes, sendo oitocentos da coluna gaúcha e os restantes da coluna paulista. Havia cerca de cinquenta mulheres, entre gaúchas e paulistas, que, na maioria dos casos, acompanhavam seus maridos e companheiros.

    A formação da 1ª Divisão Revolucionária representou a vitória da perspectiva aberta por Prestes de os rebeldes atravessarem o rio Paraná e marcharem para Mato Grosso, dando continuidade à "revolução" tenentista. Enquanto as tropas paulistas haviam sofrido uma séria derrota em Catanduvas (PR), a Coluna Prestes vinha do sul coberta de glórias. Nessas circunstâncias, Prestes teria um papel destacado à frente da 1ª Divisão Revolucionária. O general Miguel Costa tornara-se o comandante-geral, mas, reconhecendo a competência e o prestígio de Prestes, entregou-lhe, na prática, o comando da Coluna. A Coluna Prestes, que nascera no Rio Grande do Sul, partiu do Paraná revigorada pela junção com os rebeldes que se levantaram em São Paulo, a 5 de julho de 1924.

    A Coluna, além de mal-armada, não contava com uma retaguarda que assegurasse o abastecimento da tropa. Baseado na experiência do 1º BF, Prestes transformou a tropa rebelde num exército, em que vigorava a disciplina militar, ao mesmo tempo em que a iniciativa dos soldados era estimulada. Sem uma disciplina rigorosa e um comando único e centralizado, as forças rebeldes seriam desbaratadas. Mas, sem a participação ativa de cada soldado, sem a compreensão, da parte de cada um deles de que a luta era pela libertação do Brasil do governo despótico de Artur Bernardes, seria impossível garantir a sobrevivência de uma força armada tão diferente: não havia soldo, nem pagamento de qualquer espécie ou vantagens de qualquer tipo; e exigia-se, para permanecer em suas fileiras, um grande espírito de sacrifício e disposição de luta.

    A experiência dos maragatos foi valiosa na organização das forças rebeldes. Adotou-se, por exemplo, o método gaúcho de arrebanhar animais, as "potreadas": pequenos grupos de soldados destacavam-se da tropa em busca não só de cavalos para a montaria e de gado para a alimentação, como de informações, transmitidas ao comando. Esses dados constituíram elementos valiosos para a elaboração de mapas detalhados sobre cada região atravessada pelos rebeldes, permitindo que a tática da Coluna fosse traçada com precisão e profundo conhecimento do terreno. Assim, reduziam-se os riscos de que os rebeldes acabassem pegos de surpresa pelo inimigo. Na verdade, era a Coluna Prestes que, com seus  lances inesperados, surpreendia as forças governistas. As "potreadas" consistiam num fator fundamental para desenvolver a iniciativa e o espírito de responsabilidade dos soldados. Nas palavras de Prestes, foram "os verdadeiros olhos da Coluna".

    O movimento não poderia se transformar num exército revolucionário, movido por um ideal libertário, se não incutisse em seus combatentes uma atitude de respeito e solidariedade em relação ao povo com quem mantinha contato. Qualquer arbitrariedade era punida com rigor; em alguns casos de maior gravidade, chegou-se ao fuzilamento dos culpados, principalmente quando houve desrespeito a famílias e, em particular, a mulheres. Da mesma forma, não se admitiam saques ou atentados gratuitos à propriedade.

    A Coluna Prestes durou dois anos e três meses, percorrendo cerca de 25 mil quilômetros através de treze estados do Brasil. Jamais foi derrotada, embora tenha combatido forças muitas vezes superiores em homens, armamento e apoio logístico, tendo enfrentado ao todo 53 combates. Os principais comandantes do Exército nacional não só não puderam desbaratar o movimento, como sofreram pesadas perdas e sérios reveses impostos pelos rebeldes durante sua marcha. Seu périplo pelo Brasil derrotou 18 generais.

    Ao adotar a tática da "guerra de movimento" garantiu a própria sobrevivência em condições que lhe eram  extremamente desfavoráveis. E mais, transformou-se num exército com características populares. Paralelamente, forjou um novo tipo de combatente, de soldado da liberdade, que se batia por um ideal, e também formou líderes de envergadura que vieram a influir decisivamente nos acontecimentos posteriores.

    Dado o fracasso governista no combate à Coluna Prestes, ela poderia continuar percorrendo o país, tirando proveito de sua mobilidade extrema, a grande arma que a tática da "guerra de movimento" lhe conferia. Mas Prestes compreendeu que havia chegado a hora de mudar de tática. Uma nova visão do Brasil - que ele adquirira durante a marcha, ao se deparar com a miséria em que vegetava a maior parte da população do país - contribuiu para essa conclusão. Dessa forma, o comando da Coluna tomou a decisão de partir para o exílio, ingressando na Bolívia em 3 de fevereiro de 1927. Como assinalou o cronista da marcha, Lourenço Moreira Lima, "não vencemos, mas não fomos vencidos".

    Apesar das dificuldades, os rebeldes chegaram à Bolívia com o moral elevado, cônscios de que haviam cumprido o seu dever, sem nada receber em troca. Seus comandantes e soldados partiram para o exílio num estado de absoluta pobreza, enquanto os generais governistas tinham enchido os bolsos à custas do erário público, que lhes oferecera verbas generosas para liquidar os revoltosos. A Coluna, praticamente desarmada, com apenas 620 homens, havia vencido todos os embates com as forças governistas.

    Os soldados rebeldes foram os desbravadores do caminho que minou os alicerces da Primeira República. A sobrevivência da Coluna Prestes constituiu um fator decisivo para que, em diversos pontos do país, eclodissem levantes tenentistas. Embora essas revoltas militares - que sempre contaram com a colaboração de civis - tivessem sido esmagadas, a Coluna contribuiu para que, durante vários anos, fosse mantido um clima "revolucionário" no país, favorável à germinação das condições que levaram ao colapso da República Velha e à vitória da chamada Revolução de 30, propiciando o início de uma nova etapa no desenvolvimento capitalista no Brasil.

    A Marcha da Coluna e o impacto causado em Prestes pela situação deplorável em que viviam as populações do interior do Brasil levaram o Cavaleiro da Esperança a se transformar, anos mais tarde, na principal liderança do movimento comunista no país. A Coluna Prestes gerara o mais destacado líder da revolução social no Brasil.


Texto de Anita Leocádia Prestes. Professora adjunta de História do Brasil no Departamento de História da UFRJ. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

A Lebre na Lua

    Segundo alguns povos do Oriente, as manchas que aparecem na face da lua cheia se assemelham à figura de uma lebre. E diz a lenda que isto aconteceu assim...

    Há muitos milênios, viviam, à margem do rio Ganges, quatro bichos diferentes que eram amigos e companheiros: um macaco, uma lontra, um pequeno chacal e uma lebre, a mais virtuosa dos quatro.

    Um dia ela reuniu os amigos e lhes disse: "Amanhã será lua cheia, o dia que nós reservamos para meditar e fazer jejum. Não precisamos, pois, de comida, mas sugiro que cada um de nós saia à procura de alimentos necessários para dar de esmola caso alguém nos venha pedir".

    Os bichos concordaram e cada um foi se recolher para passar a noite, e no dia seguinte sair em busca de comida. O chacal subtraiu o almoço de um pastor distraído, que era uma gamela de coalhada com arroz. O macaco tirou algumas mangas maduras de uma mangueira próxima. A lontra apanhou alguns peixinhos esquecidos por um pescador. E a lebre, que passara a noite em profunda meditação, pensou consigo mesma: "Não vou preparar nada. Se algum necessitado vier pedir comida, darei meu próprio corpo para ele se alimentar".

    Essa ideia tão generosa chamou a atenção dos mundos superiores, e um dos espíritos, o deus Sekra, decidiu descer até a terra, encarnando no corpo de um brâmane, para conferir em pessoa as dádivas dos quatro amigos animais. Primeiro, ele apresentou-se à lontra: "Minha filha lontra, estou com fome, desde ontem não como nada. Será que você poderia ceder-me algum alimento? Em troca, eu lhe darei as minhas bênçãos." A lontra entregou-lhe os peixinhos, e ele agradeceu, dizendo que voltaria logo mais para buscá-los. E foi falar com o pequeno chacal: "Amigo chacal, você não teria algum alimento para dar a um pobre faminto?" O chacal ofereceu-lhe a coalhada com arroz, e o brâmane agradeceu e disse que voltaria logo para buscar a comida. Então, foi procurar o macaco pendurado pelo rabo num galho de árvore e fez o mesmo pedido. O macaco ofereceu-lhe as mangas maduras. O brâmane agradeceu, dizendo que voltaria logo para buscá-las.

    Por último, o deus Sakra disfarçado em brâmane foi procurar a lebre que continuava a meditar à beira da sua toca, e tornou a fazer a mesma pergunta, à qual a lebre respondeu: "Meu santo homem, vou oferecer-lhe um lauto almoço. É um pedaço de carne fresca, que você só terá de assar numa pequena fogueira. Prepare o braseiro. Quando o fogo estiver alto, eu trarei a carne para o seu almoço."

    O brâmane juntou alguns gravetos, acendeu uma alegre fogueira ao lado da toca da lebre e perguntou então qual seria a carne que lhe serviria de almoço. "É o meu corpo", respondeu a lebre, e no mesmo instante pulou para o meio do fogo. Mas o fogo ardia e não queimava a lebre, que até reclamou: "Ó santo homem, o seu fogo não queima. Você vai ter de aumentá-lo, pois do jeito que está, chego a sentir frio".

    Em vez de responder, o brâmane desapareceu e no seu lugar surgiu um belíssimo e luminoso jovem, que se apresentou como o deus Sakra encarnado e disse: "Um ato tão nobre e generoso como este de ficar para sempre na memória dos homens." E, crescendo desmesuradamente, ele arrancou com a mão o cume de uma montanha próxima, amassou-o dentro do punho, e com essa massa lambuzou a face da lua cheia que acabava de surgir no céu, formando uma figura na forma de lebre. Esta figura apareceria aos homens a cada lua cheia para lembrar-lhes a bela ação daquela pequena lebre, que mostrou que quem dá uma esmola deve dá-la de todo o coração, dando tudo, e às vezes até o próprio corpo.


Lenda indiana recontada por Tatiana Belinky retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Agosto de 1998.

terça-feira, 26 de julho de 2022

A tapeçaria de Aracne

    Há muito tempo, na Grécia Antiga, contavam que Palas, a deusa da sabedoria (que mais tarde os romanos chamariam de Minerva), ensinava todos os segredos de fiação e tecelagem a uma moça chamada Aracne.

    Aracne era de origem humilde, mas se tornou tão habilidosa com fios e tramas que até as ninfas dos bosques e dos rios vinham vê-la trabalhar. Não só porque os tecidos que fazia eram incomparáveis, mas até porque a graça de seus movimentos tinha a beleza de uma arte, desde que puxava os chumaços de lã ou cânhamo até quando fazia novelos e meadas. E, principalmente, depois, quando a linha macia e longa se convertia em belos panos num tear ou era ricamente bordada em desenhos divinos. Divinos, sim. Pois todos os que viam o trabalho de Aracne logo concluíam que ela aprendera seu ofício com Palas, e cobriam a deusa de louvores. Ora, quanto mais atenção atraía, mais Aracne se ofendia com os elogios a Palas e negava qualquer mérito à deusa. Até que certo dia acabou exclamando:

    Sou muito melhor tecelã que Palas! Se ela viesse competir comigo, todos iam ver isso. E, se me vencesse, poderia fazer comigo o que quisesse. Antes de aceitar o desafio, a deusa se disfarçou e veio visitar Aracne sob forma de uma velha, aconselhando-a a respeitar a experiência e a sabedoria dos anciãos e a reconhecer a superioridade dos deuses.

    - Se você arrepender de suas palavras e pedir perdão, tenho certeza de que Palas a perdoará - disse.

    - Você está é de miolo mole, sua velha. Quer dar conselhos? Vá procurar suas netas... Eu me defendo sozinha. Palas tem medo de mim. Se não tivesse, já teria vindo me enterrar.

    A velha deixou cair o disfarce e se revelou em todo o seu esplendor:

    - Pois Palas veio, sua tonta!

    As ninfas e todas as mulheres se prostraram diante da deusa, mas Aracne manteve seu desafio.

    Sem perder tempo, cada uma das duas foi para um canto do enorme salão, com seus novelos, meadas, fio e seu tear.

    Durante muito tempo, uma belíssima tapeçaria foi surgindo em cada tear. Palas fez questão de ilustrar em seu bordado todas as histórias de mortais que tinham desafiado os deuses e os terríveis preços que tiveram de pagar por isso. Aracne, por outro lado, mostrou em sua tapeçaria os inúmeros crimes que os deuses já tinham cometido, recriados com exatidão e minúcia de detalhes. Cada uma, ao final, rematou seu trabalho com uma preciosa moldura tecida.

    Ninguém se surpreendeu com a perfeição da obra de Palas. Mas quem ficou surpresa foi a deusa, pois, por mais que procurasse o mínimo defeito na obra de Aracne, não conseguiu encontrar uma única falha. Com raiva, bateu várias vezes com seu bastão na testa da tecelã.

    Não suportando a dor, Aracne passou um fio no pescoço para se enforcar. Mas Palas teve pena e a segurou, suspensa no ar, dizendo:

    - Você tem má índole e é vaidosa, mas tenho que respeitar sua arte. Não admito que morra. Porém, você e seus descendentes viverão sempre assim, suspensos o tempo todo.

    E, ao partir, borrifou-lhe uma poção que fez o cabelo da moça cair, a cabeça e o corpo encolheram, os dedos cresceram, e a transformou para sempre numa aranha, condenada a fabricar fio e teia até o final dos tempos. Sempre com perfeição incomparável.


Lenda grega recontada por Ana Maria Machado retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Maio de 1998.


Navegar é preciso, contar também.

Relatos de naufrágio tornaram-se populares na Europa do século XVI ao narrar as aventuras e infortúnios das viagens dos portugueses além-mares, incluindo Brasil.


    Portugal lançava suas naus ao mar, com vistas para o mundo: África, América e, sobretudo, o Oriente. Estamos em meados do século VXI. Mesma época em que surge um língua portuguesa um gênero narrativo que ganha imediato prestígio e se espalha por toda a Europa, com grande sucesso. Trata-se dos relatos de naufrágio, notícias dos embarcados e de todo o universo de aventuras - e desventuras - que cercavam as viagens dos navios mercantes portugueses ao ultramar.

    De fato, desde a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, em 1498, uma armada em direção ao Oriente deixava o porto de Lisboa, todos os anos, por volta de março ou abril. Composta de quatro ou cinco naus, saía do Tejo até o Atlântico, tomava-o na direção do sul, contornava a África e ganhava a costa do Malabar, Goa, Cochim, ou mesmo o Ceilão, portos em que os portugueses estabeleceram feitorias e entrepostos comerciais. Os navios iam em busca de pimenta, cravo e canela, além de outras novidades e objetos de luxo que exerciam grande atração sobre os mercados europeus. Mesmo com riscos, não se cogitava interromper as aventuras. Muitos barcos e vidas eram perdidos, mas havia consenso sobre a necessidade de continuar o comércio com o Oriente. "Náufragos não podem parar as navegações", o rifão era uma voz uníssona.

    As causas dos naufrágios eram bem conhecidas: embarcações velhas ou em mau estado, sobrecarga, arranjo desequilibrado das caixas no convés, falta de material de reposição, como cordas, velas e pregos. A explicação mística, porém, prevalecia: a culpa pelos pecados e o merecido castigo que chegava com o infortúnio do mar.

    Grande parte da população estava envolvida no projeto expansionista português: negociantes, banqueiros, contrabandistas, traficantes e "oficiais del Rei", como eram então denominados os funcionários da Coroa que ocupavam os muitos postos administrativos e técnicos na intrincada burocracia que então se formou. Surgiam instituições específicas para a execução de projeto. A começar pela Casa da Índia, em funcionamento desde 1502, que contratava homens para os trabalhos no interior dos navios assim como para tarefas em terra. Da mesma maneira, uma série de profissões diretamente vinculada às viagens marítimas estabelecia-se. Nesse cenário, não é difícil entender a grande popularidade alcançada por esses escritos de viagens acidentadas, que pode ser atestada pelas tiragens expressivas de mil exemplares em uma época em que um livro de sucesso não ultrapassava trezentas cópias.

    Todos os relatos conhecidos narram acontecimentos da rota do Oriente, à exceção de um deles, o do naufrágio da nau Santo Antônio, ocorrido em 1565, em que viajava Jorge d'Albuquerque Coelho. Esse, além de ser um dos mais bem elaborados, do ponto de vista literário, é raro, pois narra um capítulo da história colonial brasileira. Embora comece com uma referência à política da metrópole - "No tempo em que a rainha dna. Catarina, avó d'el Rei d. Sebastião, governava o Reino de Portugal por seu neto" -, o que se segue é uma descrição sobre a capitania de Pernambuco e a atuação da família dos Albuquerque Coelho na guerra  contra os índios Caetés.

    A narrativa reúne também informações sobre as histórias fantasiosas que corriam na boca do povo, no porto de Olinda, prognósticos de feitiçarias, milagres e acontecimentos fantásticos, tendo como pano de fundo uma questão marcante do período: a guerra das religiões que aparece ali em sua versão particularizada, encarnada em personagens rudes, marinheiros, soldados e piratas, com intuito de evidenciar o alcance social daquele cisma que dividiu a Europa entre protestantes e católicos. Nesse contexto, a nau Santo Antônio, em meio a uma bruma espantosa, é aprisionada, na altura das ilhas do Cabo Verde, por piratas franceses. Protestantes luteranos, eles praticavam todo tipo de heresia, quebrando imagens de santos, arrancando os terços e livros de missa dos portugueses, zombando de suas rezas. Essa nau sofre danos desde sua partida e, após sobreviver ao ataque dos franceses e a ventos e tormentas, chega meses depois, toda estraçalhada, à Roca de Sintra.

    Outros relatos do período fazem referência ao Brasil. Caso da nau São Paulo que saíta em direção à Índia, em 1560, mas, retardada por chuvas no golfo da Guiné, é obrigada a arribar ao porto da Bahia, onde atraca por 44 dias para reparos. O narrador, um boticário que ia para Goa, descreve a aventura com travo popular, humor ácido, povoado de ditados, citações e revelando também uma extraordinária capacidade de observação de costumes. Elogia a terra e suas belezas e segue afirmando que muitos homens que adoeceram de febres naquela viagem, ao chegarem ali ficaram logo curados pelos bons ares: "... por ser esta terra do Brasil mui sadia e de muitos bons ares toda em si, por extremo e ter muitos bons mantimentos e mui gostosos e sadios, assim os do mar como os da terra".

    A descrição prossegue com comentários sobre costumes indígenas, como a antropofagia, o resguardo dos homens, os códigos de honra; identifica graus de parentescos e os tabus que os regulam, tudo isso com uma invulgar capacidade de suspensão de valores, sem depreciar hábitos tão estranhos a um europeu. Retomando seu caminho para a Índia, apanha mares grossos e ventania, na altura das ilhas Tristão da Cunha, e naufraga nas proximidades do Cabo da Boa Esperança.

    Também na Bahia aportou a nau São Francisco. Dessa experiência nasceu um relato, bastante incomum, escrito por um padre jesuíta sob forma de carta, em que conta as aventuras do navio que, saído para o Oriente, é empurrado pelos ventos para as costas brasileiras, sofrendo três acidentes no Atlântico, todos sem drásticas consequências. O narrador não perde nunca seu senso de humor ao fazer o balanço de sua peregrinação que durou três anos. Confirma o viço da terra, rememora o bom passadio no Colégio da Bahia, encantado com as frutas desconhecidas (a banana, o abacaxi, a papaia, o jenipapo), sua beleza, perfume e sabor. Destaca as plantas curativas, o bálsamo, o óleo de copaíba e uma iguaria nova, uma erva santa, servida no fim dos banquetes: o tabaco. Erva tão cheia de virtudes, que os padres e leigos mal podiam esperar o fim da missa ou a comunhão para pitar e medicar o corpo.

    Essa escrita que realça os aspectos informativos, curiosos e pitorescos das viagens ao mar, poderia, por si só, explicar o sucesso daqueles pequenos livros. Porém, razões menos evidentes justificam a trajetória bem-sucedida dos folhetos: o fato de revelarem um sentimento de crise e de um estado de ânimo pessimista que tomava conta da Europa e, sobretudo, Portugal que perdera a primazia das navegações oceânicas e sentia os efeitos de uma forte crise política, além de catástrofes naturais, tremores de terra e enchentes, surtos de pestes e revoltas populares. 

    Outros motivos, no entanto, concorrem para a popularidade dos relatos de naufrágio, dentre eles, um de natureza técnica e material: a moda do texto impresso. Mesmo em um tempo em que a imprensa era recente, os livros, caros, e a população letrada, muito reduzida, o sucesso desses livrinhos confirmava que o mundo havia entrado de forma irreversível na era da escrita. Portugal, em particular, já contava com a imprensa apenas três décadas após a invenção dos tipos móveis, em 1448, por Gutemberg. Em meados do século XVI, já havia um movimento editorial intenso, em que algumas casas se dedicavam a imprimir obras luxuosas, enquanto outras, pequenas tipografias, publicavam, em verso e prosa, folhas soltas, em edições baratas e populares. Ali se encontravam as histórias mais estimadas do povo, vidas e milagres de santos, aventuras de bandidos célebres, romances de cavalaria - como os do ciclo do rei Artur ou de Carlos Magno - ou histórias cômicas e sentenciosas, em meio às quais passaram a ser encontradas também as histórias de viagens e batalhas marítimas, assim como as relações de naufrágios dos galeões e naus da Índia.

    É provável que muitas dessas histórias tenham se perdido. A principal documentação existente - uma coletânea com 12 relatos de naufrágio - resultou de um trabalho de edição e publicação, em dois volumes, em 1735 e em 1736, intitulado História trágico-marítima, de onde constam as narrativas dos naufrágios das naus Santo Antônio, São Paulo e São Francisco. A compilação foi feita pelo historiador oitocentista Bernardo Gomes de Brito, membro da Academia Real de História. Revela seu biógrafo, que ele teria como projeto a publicação de mais três volumes contendo relatos semelhantes. Não se conhece a razão de tanto interesse de Bernardo Gomes de Brito, num período em que a historiografia oficial, de cujo círculo fazia parte, privilegiava o estudo das genealogias das famílias reais, das batalhas e das biografias de personalidades, a prosopopeia; e temas religiosos, a vida dos santos, a hagiografia e a teologia.

    Não se sabe também por que interrompeu seu projeto e publicou apenas os dois primeiros volumes, dos cinco pretendidos. As causas podem estar nas dificuldades que encontrava à época qualquer livro pra ser publicado, entre elas a de ser submetido às muitas instâncias do Santo Ofício e do Paço. A história trágico-marítima demorou seis anos em tramitações burocráticas. Desde que foram iniciados, em 1729, os pedidos de licenças de praxe para sua publicação, até 1735, quando receberam finalmente a autorização, ou seja, o imprimatur.

    Não fosse a coletânea de Gomes de Brito ficaria perdido para sempre um material precioso de pesquisas, para a história e para a literatura, pois, sem dúvida, os relatos de naufrágio prenunciam, de muitas maneiras, as convenções do relato histórico, do ficcional e do etnográfico, que ali aparecem de forma imbricada e embrionária.

    Apesar das diferenças entre os relatos de naufrágio, eles são organizados segundo um modelo que traz na primeira parte a descrição da preparação para a viagem. Nela estão contidos os dados mais importantes sobre o organização da armada, datas, nomes, o porto de saída e o de destino. Após a partida, é narrada a vida a bordo, o trabalho, as rezas, os jogos, as calmarias letárgicas.

    A ameaça de um naufrágio abre a segunda parte. Uma cena se impõe, abruptamente: uma avalanche de ondas que dos píncaros cavam abismos, ventos cruzados, chuvas, nuvens escuras, relâmpagos e trovoadas. É a preparação para o naufrágio. Começa então a luta dos homens contra a natureza em fúria. Eles fazem de tudo para não perder o timão, para esgotar a água, limpar os escoadouros entupidos de pimentas. A situação agrava-se mais e mais e, então, para os navios ficarem mais leves e governáveis, torna-se necessário jogar as mercadorias ao mar.

    Os narradores descrevem um quadro fantástico: o mar coberto de barris e caixas, mercadorias caras, tapetes, tecidos, brocados; mirra e benjoim, riquezas que eram antes tão amadas por seus donos e que, no momento do perigo, são um estorvo, dificultando o equilíbrio dos navios. As cenas do naufrágio da nau São Tomé ilustram o tom desses relatos: "tudo quanto viam se lhes representava a morte; porque por baixo viram a nau cheia de água, por cima o céu conjurado contra todos, porque até ele se encobriu com a maior cerração e escuridão que se viu. O ar assobiava de todas as partes, que parecia que lhe estavam bradando morte, morte".

    São também descritas cenas que aconteciam no interior dos navios: os homens trabalhando, crianças e mulheres chorando, outros se confessando em voz alta, padres organizando rezas e ladainhas, tudo isso em uma linguagem exaltada e crivada de imagens altissonantes. Em torno da imagem poderosa do naufrágio, desenvolve-se uma profusão de motivos que preparam a ação: nuvens, chuvaradas e relâmpagos, elementos que estão ali não para reportar fenômenos atmosféricos, mas para configurar uma concepção trágica da existência, em que o mundo encontra-se arruinado pela cobiça e os personagens, pela culpa. Assim, desfila no texto um vasto repertório de alegorias que, em muitos aspectos, prenunciam o barroco, em sua obsessão por temas extraordinários.

    Na sucessão dos acontecimentos, passado o clímax do naufrágio, é dada a hora de buscar e contar os sobreviventes, em geral os que escaparam em barcos salva-vidas ou os que foram jogados, pelas ondas, nas praias da costa oriental da África.

Nesse ponto, inicia-se a terceira parte do relato: a perdição em terras desconhecidas, aventuras e encontros surpreendentes com reis mouros e africanos, sofrimentos, trabalhos e necessidades. Após o naufrágio, a narrativa retoma um tom mais informativo e traz descrições de hábitos e ritos, observações curiosas e depoimentos sobre a dificuldade de se comunicar, de resgatar água potável e alimentos, trocados, em geral, por pregos e pedaços de ferro que os portugueses conseguiam recuperar da nau destroçada.

    Tanto no auge do naufrágio quanto no momento que o sucede - quando os sobreviventes estão perdidos e necessitados -, os narradores lançam mão de imagens alegóricas muito impressionantes para figurar a desproporção entre as forças da natureza e a fragilidade humana, a inutilidade das riquezas acumuladas, a inversão da fortuna. Eles se valem também de recursos retóricos para ampliar o efeito da cena trágica sobre o leitor. Quando os portugueses iniciam sua caminhada pelas praias e sertões da África, fazem-na ordenadamente, em forma de uma procissão, com uma cruz à frente, como penitentes arrependidos, enrolados em cordas, purgando suas culpas. Tudo isso, como diz um narrador, para "manter a morte diante dos olhos" e levar as pessoas à piedade e à contrição.

    Ao ter o naufrágio como foco dramático principal, uma cena-fantasma na memória do narrador, o relato assume muitos outros papéis. Serve como um ex-voto, para agradecer a Deus o fato de ter sobrevivido, serve também para provocar um efeito catártico, "folgar com o fim daqueles males", e poder descansar do passado. Prenunciando as peças fúnebres da oratória do barroco, os epitáfios e as elegias, tão difundidos na cultura barroca europeia, os relatos de naufrágio apresentam uma coleção de temas para meditação. Alegorias sérias e silenciosas, personagens em luto, desenganados, modos trágicos de morrer no mar.


Texto de Maria Angélica Madeira. Professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco. Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

O segredo do casco da tartaruga

    Logo que aprendeu a ler, o menino começou a fazer descobertas. Um dia estava folheando um livro e se deparou com a palavra "réptil". Procurou no dicionário e se surpreendeu com o significado: animal que se arrasta. Cobras, por exemplo. Pensava que réptil tinha a ver com rapidez e era justamente o contrário. O pai riu de seu espanto e disse que as tartarugas também eram répteis. Aliás, uma lenda chinesa afirmava que Deus escrevera o segredo da vida no casco de uma tartaruga.

    O menino gostou dessa escrita de Deus, que utilizou o casco da tartaruga como se fosse uma folha de de papel. O pai lembrou que aprender a ler nos livros era só o começo. Com o tempo, o filho poderia ler no rosto de uma pessoa sua história inteirinha. E bastaria observar os olhos de um amigo para ver se neles brilhava a felicidade. Ou tocar as mãos de um homem do campo para conhecer seus sofrimentos.

    Mas o menino, curioso, queria mesmo era saber qual o segredo da vida. Por isso, começou a se interessar pela vida das tartarugas. Conheceu a tartaruga-de-couro, cujo casco parecia uma bola de capotão. A tartaruga-oliva, que lembrava o verde das azeitonas, e a tracajá, típica da Amazônia. Descobriu que a tartaruga-de-pente tinha esse nome porque de sua carapaça se faziam pentes, bolsas e aros para óculos. E aprendeu tudo sobre a tartaruga-cabeçuda, sobre a tartaruga-gigante, atração das Ilhas Galápagos, e sobre a Ridley, das praias d Costa Rica.

    Quanto mais estudava, mais o menino se convencia de que realmente poderia descobrir a escrita de Deus naquelas criaturas que carregavam a casa nas costas. Elas tinham carapaças misteriosas, com desenhos estranhíssimos, círculos coloridos, arestas longitudinais. Algumas até pareciam pintura. 

    O menino foi crescendo e se tornou especialista em tartarugas. Sabia distinguir uma adolescente de uma adulta e conhecia como ninguém a desova das espécies marinhas no litoral. Mas também descobriu que, assim como procurava o segredo da vida no casco das tartarugas, outras pessoas buscavam a mesma coisa em lugares diferentes: no pulsar das estrelas, no canto dos pássaros, no silêncio dos olhares, no cheiro dos ventos, nas linhas das mãos, no fim do arco-íris. Tudo ao redor podia ser lido, sorriu ele, lembrando-se das palavras de seu pai. E só o tempo, como um professor que pega na mão do aluno, ensinava essa lição, enquanto as pessoas iam fazendo suas descobertas bem devagarzinho - como as tartarugas. Talvez estivesse aí o segredo.


Conto de João A. Carrascoza retirado da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita, Abril de 1998.

sábado, 23 de julho de 2022

O Poder do Amor

Acredita no amor e vive-o plenamente.

Qualquer expressão de afetividade propicia renovação de entusiasmo, de qualidade de vida, de metas felizes em relação ao futuro.

O amor não é somente um meio, porém o fim essencial da vida.

Emanado pelo sentimento que se aprimora, o amor expressa-se, a princípio, asselvajado, instintivo, na área da sensação, e depura-se lentamente, agigantando-se no campo da emoção.

Quando fruído, estimula o organismo e oferece-lhe reações imunológicas, que proporcionam resistência às células para enfrentar os invasores perniciosos, que são combatidos pelos glóbulos brancos vigilantes.

A força do amor levanta as energias alquebradas, e torna-se essencial para a preservação da vida.

Quando diminui, cedendo lugar aos mecanismos de reação pelo ciúme, pelo ressentimento, pelo ódio, favorece a degeneração da energia vital, preservadora do equilíbrio fisiopsíquico, ensejando a instalação de enfermidades variadas, que trabalham pela consumpção dos equipamentos orgânicos...

Situação alguma, por mais constrangedora, ou desafio, por maior que se apresente, nas suas expressões agressivas, merecem que te niveles à violência, abandonando o recurso valioso do amor.

Competir com os não amáveis é tornar-se pior do que eles, que lamentavelmente ainda não despertaram para a realidade superior da vida.

Amá-los é a alternativa única à tua disposição, que deves utilizar, de forma a não te impregnares das energias deletérias que eles exalam.

Envolvê-los em ondas de afetividade é ato de sabedoria e recurso terapêutico valioso, que lhes modificará a conduta, senão de imediato com certeza oportunamente.

O amor solucionará todos os teus problemas. Não impedirá, porém, que os tenhas, que sejas agredido, que experimentes incompreensão, mas te facultará permanecer em paz contigo mesmo.

É possível que não lhe vejas a florescência, naquele a quem o ofertas; no entanto, a sociedade do amanhã vê-lo-á enfrutecer e beneficiar as criaturas que virão depois de ti. E isto, sim, é o que importa.

Quando tudo pareça conspirar contra os teus sentimentos de amor, e a desordem aumentar, o crime triunfar, a loucura aturdir as pessoas em volta, ainda aí não duvides do seu poder. Ama com mais vigor e tranquilidade, porque esta é a tua missão na Terra - amar sempre.

Crucificado, sob superlativa humilhação, Jesus prosseguiu amando e em paz, iniciando uma Era Nova para a Humanidade, que agora lhe tributa razão e amor.


Retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Do cacau do Brasil ao chocolate do mundo

A região amazônica foi o berço do cacau por causa das altas temperaturas e das chuvas abundantes, ideais para seu crescimento. Em meados do século XVIII, sementes foram levadas do Pará para o sul da Bahia, onde se desenvolveram muito bem devido a diversos fatores. Em primeiro lugar, o clima bastante similar ao do seu habitat natural facilitou o processo de adaptação do cacaueiro, que precisa da sombra oferecida por árvores de maior estatura. Como os engenhos de açúcar não vingaram ali, a selva nativa ficou praticamente intocada, à espera dos pés de cacau, que  cresceram pela Mata Atlântica. Essa adaptação perfeita escreveu um novo capítulo da história da região.

No século XIX, uma seca nos sertões da Bahia e de Sergipe levou muitos migrantes para a costa do Cacau, como hoje é conhecido o litoral baiano que se estende de Itacaré a Canavieiras. Eram pessoas humildes e semianalfabetas, que estabeleceram uma agricultura de base familiar. A partir de 1860, com as primeiras fábricas de chocolate da Europa e dos Estados Unidos, o fruto passou a ser muito procurado. Praticamente toda a safra era exportada. As primeiras manufaturas nacionais só apareceriam na virada do século XX, momento em que a cacauicultura vive seu ápice, o país se torna o maior produtor mundial - e a cidade de Ilhéus, o principal porto de escoamento da produção.

O Brasil chegou a ser responsável por 40 por cento da produção mundial de cacau, mas hoje produz apenas 4 por cento do total, enquanto o oeste da África responde por 65 por cento. Em termos de consumo, os países da Comunidade Europeia e os Estados Unidos encabeçam a lista, responsáveis por mais de 60 por cento das importações mundiais.


Retirado da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, nº 6, Dezembro de 2005.

Guilherme Tell

    Há muitos anos, antes de ser um país livre e soberano, s Suíça era governada por um regente autoritário chamado Gessler. Todos mundo tinha medo dele, porque quem desobedecesse às suas ordens era impiedosamente castigado. A única pessoa que não o temia era um bravo caçador das montanhas de nome Guilherme Tell, respeitado pelos seus conterrâneos por ser, além de homem de bem, um exímio arqueiro. Ninguém o superava na pontaria certeira com o arco e a flecha.

    O tirano Gessler, arrogante e vaidoso, gostava de aterrorizar a gente do povo. Por isso, mandou erguer na praça principal um poste no qual fez pendurar o seu chapéu. Diante desse ridículo símbolo de autoridade, todos os passantes deveriam se curvar. E todos obedeciam, de medo de ser cruelmente punidos. Todos, menos Guilherme Tell, que não se submetia àquela humilhação por considerá-la abaixo de sua dignidade. Até que um dia aconteceu de o próprio Gessler estar na praça quando Tell passou por ali com seu filho de 8 anos.

    Vendo que o caçador não se curvara diante do chapéu, Gessler ficou furioso e mandou que seus soldados o agarrassem, gritando:

    - Tell, tu me desafiaste, e quem me desafia morre. Mas tu podes escapar da morte se fizeres o que eu te ordeno.

    E o perverso Gessler mandou que encostassem o filho do caçador ao poste com uma maçã sobre a cabeça. Então, continuou:

    - Agora, Tell, terás de provar a tua fama de grande arqueiro acertando a maçã na cabeça do teu filho com uma única flechada. Se acertares, o que duvido, sairás livre. Mas, se errares, serás executado aqui, na frente de todo este povo.

    E Guilherme Tell foi colocado no ponto mais distante da praça, com o seu arco e uma flecha.

    - Cumpra-se a minha ordem!, bradou Gessler.

    - Atire, meu pai, disse o menino. Eu não tenho medo.

    Com o coração apertado, Guilherme Tell levantou o arco, apontou a flecha, esticou a corda e, de dentes cerrados, mirou em direção ao alvo. Zummmm! A flecha zuniu no ar, rapidíssima, e rachou ao meio a maçã sobre a cabeça da criança.

    Um suspiro de alívio subiu da multidão, que assistia horrorizada àquele cruel espetáculo.

    Nesse momento, Gessler viu a ponta de uma outra flecha escondida debaixo do gibão do arqueiro.

    - Para quê a segunda flecha, se tinhas direito a um só arremesso? urrou o tirano.

    Guilherme Tell respondeu, em alto e bom som:

    - A segunda flecha era para varar o teu coração, Gessler, se eu tivesse ferido meu filho.

    E pegando o menino pela mão, Guilherme Tell deu as costas ao tirano e foi embora.

    Anos mais tarde, o arqueiro foi um valoroso combatente pela independência da sua terra e pela liberdade de seu povo.


Lenda suíça recontada por Tatiana Belinky retirada da Revista Nova Escola, Fundação Vitor Civita. Março de 1998.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Como se fosse

    De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue jorrou entre as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de batalha. Tão jovem, que não deixava descendente adulto para ocupar o trono. Apenas, da sua linhagem, um filho menino.

    Antes mesmo que a tumba fosse fechada, já os seus fiéis capitães se reuniam. A escolha de um novo rei não podia esperar. E determinaram que o menino haveria de reinar, pois a coroa lhe cabia de direito. Que começassem os preparativos para colocá-la sobre sua cabeça.

    Aprontavam-se as festas de coroação, enquanto os capitães instruíam o menino quanto ao seu futuro. Mas porque o rei seu pai havia sido muito amado pelo povo e temido pelos inimigos, e porque o rosto do menino era tão docemente infantil, uma decisão sem precedentes foi tomada.

    No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a corte, prendeu sobre seu rosto uma máscara com a figura do pai. Assim, ele haveria de ser coroado, assim ele haveria de governar. E os sinos tocaram em todo o reino.

    Muitos anos se passaram, muitas batalhas. O menino rei não era mais um menino. Era um homem. Acima da máscara, seus cabelos começavam a branquear. Seu reino também havia crescido. As fronteiras, agora longas, exigiam constante defesa.

    E, na batalha em que defendia a fronteira do Norte, perseguido pelos inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de nada lhe valesse a couraça.

    Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães. Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia murmurar algo. Com um punhal, cortaram as tiras de couro que prendiam a máscara. Soltou-se pela primeira vez aquele rosto pintado ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e pele. Mas o rosto que surgiu por baixo dele não era um rosto de homem. A boca de criança movia-se ainda sobre mudas palavras, os olhos do rei faziam-se baços num rosto de menino.


Conto de Marina Colasanti retirado da Revista Nova Escola, Fundação Victor Civita, Editora Abril, Dezembro de 1997.