segunda-feira, 27 de maio de 2024

Trissexual

As amigas se contavam tudo, tudo, do mais banal ao mais íntimo. Eram amigas desde pequenas e não passavam um dia sem se falar. Quando não se encontravam, se telefonavam. Cada uma fazia um relatório do seu dia e do seu estado, e não escapava uma ida ao super, um corrimento, uma indagação filosófica ou uma fofoca nova. Deus e todo o mundo. Literalmente. Janice, Marília e Branca.

Branca era a mais nova, mas já casara e já enviuvara, o que despertara um certo pânico nas outras duas. Tudo acontecia rápido demais para a Branquinha, que precisava ser protegida da sua vida precipitada, da sua vida vertiginosa. Por isso Janice telefonou para Marília quando soube que a Branquinha estava namorando um homem chamado Futre, Amado Futre, Rosimar Amado Futre, e que, como se não bastasse isto, ele declarara à Branquinha que era trissexual.

- Marília de Deus - disse Janice, o que é trissexual?!

- Bom... Bi é quando transa com os dois sexos.

- Isso eu sei.

- Tri deve ser quando transa com dois sexos e com bicho.

Janice teve uma visão da Branquinha na cama com Rosimar Amado Futre, o porteiro do prédio e uma cabra. Ou um cabrito?

- Bichos dos dois sexos?

- E eu vou saber?! - gritou a Marília.

Era preciso proteger a Branquinha. Mas do quê, exatamente?

- O que é trissexual? - perguntou a Janice ao seu marido Rubião.

- Ahn? - disse Rubião, acordando.

Rubião dominara o truque de segurar um jornal na frente do rosto e dormir sem que a mulher notasse. Janice não entendia como um homem que lia tanto jornal podia ser tão mal informado.

- O que é trissexual?

- É... é...

- Volta pro seu jornal, Rubião.

Apesar de ser a mais moça das três, Branquinha fora a primeira a perder a virgindade. Já fizera tudo o que pode ser feito sobre uma cama. Ou, no caso dela, sobre uma cama, sobre uma mesa de cozinha, jantar ou pingue-pongue, sobre um estrado, na praia, no meio do campo, uma vez até no último banco de um ônibus intermunicipal - e sempre contando tudo, tudo, às outras duas. Que também contavam tudo que lhes acontecia, só não tinham tanto para contar. A Janice contava sua vida com o Rubião, que só transava nos sábados e vésperas de feriado. A Marília, que ainda não se casara e namorava um dentista chamado João, inventava, para não pensarem que ela também não tinha uma vida sexual. Mas nem as invenções mais criativas da Marília se igualavam às experiências da Branquinha. E agora um trissexual chamado Amado Futre! Branquinha talvez estivesse indo longe demais. Era preciso proteger a Branquinha.

Mas apesar de vários avisos ("Olhe lá, hein, Branquinha"), a Branquinha concordou em passar um fim de semana na serra com o Rosimar Amado Futre. E na volta, não telefonou para contar tudo, como ficara combinado. Teria lhe acontecido alguma coisa? Ela estaria num hospital, com um deslocamento, depois do que o Futre lhe fizera? Mordida por algum animal, nos arroubos da paixão? Janice e Marília não se contiveram, invadiram o apartamento de Branquinha e exigiram um relato completo. Mas cada pergunta sobre o fim de semana, Branquinha respondia "Nem te conto". E não contou mesmo. Depois da experiência com Rosimar Amado Futre, estava tão na frente das outras que não tinham mais o que conversar. Não tinham mais pontos de referência, era isso.

Marília perguntou ao namorado João, o dentista, o que era trissexual.

- Tri?!

- É. Tri em vez de bi.

- Bi?!

- Esquece, João.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro Sexo na Cabeça, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2002.

domingo, 26 de maio de 2024

Brasil, 2063

O filho perdera o foguete das sete para o colégio e passara o dia inteiro em casa, chateado. Agora pedia para brincar um pouco lá fora, antes do jantar, e a jovem senhora concordou. Ajeitou a camisa de plástico antirradiotivo do garoto e recomendou: - Mas brinque aqui mesmo na Terra, hein?! Seu pai não gosta que você atravesse a galáxia sozinho.

Voltou para o quarto e sentou-se desanimada diante do espelho. Depois começou a passar o removedor atômico no rosto. A folhinha eletrônica em cima da mesinha marcava a data: 30 de julho de 2012. Fazia trinta anos naquele dia e se sentia uma velha, apesar de sua bela aparência. E pôs-se a pensar no presente de aniversário que o marido lhe dera: uma bonita vitrola superestereofônica tridimensional. "Não sei onde vamos parar com esses preços" - disse para si mesma, pois sabia que o marido, pelo plano Creditex, dera dois bilhões de cruzeiros de entrada.

Ouviu o videofone tocar e logo depois sentiu a presença do mordomo invisível no quarto. A voz  respeitosamente informou que era para ela. Mandou que o empregado ligasse a tomada para o seu quarto e, enquanto sentia que ele se retirava, considerou que precisava chamar a atenção do mordomo para o bafo alcoólico que deixava no ar. Provavelmente dera outra vez para chupar dropes de uísque durante as horas de trabalho.

Agora a voz familiar de sua amiga Mariazinha dizia "alô" e logo depois sua cara gorda aparecia no retângulo do videofone: - Querida - dizia ela - eu te videofonei para dar os parabéns pelo dia de hoje.

A outra agradeceu e ficaram a conversar sobre essas coisas que as mulheres vêm conversando há séculos sem o menor esmorecimento. De repente, a cara gorda se iluminou com um sorriso: - Você sabe que eu descobri uma decoração formidável e baratíssima? - E frisou: - Baratíssima! - E vendo o interesse da amiga, contou que mandara restaurar o radar da sala de jantar e que a decoradora fizera um trabalho que é um amor.

- Me dá o endereço - pediu a aniversariante.

- Local X 120 HV, 985º andar. - E como a amiga não se lembrasse onde era o Local X 120, esclareceu: - antiga praça San Thiago Dantas.

Conversaram ainda sobre problemas domésticos e Mariazinha ficou sabendo que a amiga estava sem cozinheira. Mandar a antiga embora, porque dera para queimar as pílulas do jantar a ponto de tornar a refeição intragável. Tanto assim que iam aproveitar o aniversário para comer fora: - Vamos à pílula-dançante do Country. - Isso, naturalmente, se o marido chegasse em casa cedo, o que era improvável, pois o helicóptero dele estava na oficina e, na hora do rush, sabe como é, esses aviadores somem e não há um helicóptero de aluguel para servir as pessoas.

Mariazinha ainda conversou um pouquinho. Contou o escândalo da véspera, quando um deputado se desentendera com o Corbisier Neto e puxara uma pistola atômica para alvejar o político petebista. Felizmente a turma do deixa disso impedira que o coitado fosse desintegrado no plenário. Em seguida Mariazinha se despediu.

Desligando o videofone, voltou à sua toalete mais animada um pouco pela conversa da outra. Mariazinha era uma mulherzinha decidida, que nunca perdia o bom-humor, apesar da tragédia de que fora vítima: o marido cometera "sexídio". Tomara remédio para virar mulher.

E estava na sala a ler o romance de um escritor do século passado - um clássico novecentista - quando o marido chegou. Vinha esfalfado, com uma cara de quem fizera um esforço fora do comum.

- Já sei que não vamos à pílula-dançante - disse ela.

- De jeito nenhum, minha filha - respondeu o marido. - Imagine que o cérebro eletrônico do escritório enguiçou e eu passei o dia inteiro pensando sozinho.

A mulher suspirou de desânimo e murmurou chateada: - Com esse governo que ainda por aí, nada funciona direito no Brasil.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois amigos e um chato, Coleção Veredas, Editora Moderna,  26ª Edição, 1997, São Paulo.

Maioridade (21)

 "... O menor é abençoado pelo maior." - Paulo. (HEBREUS, 7:7)


Em todas as atividades da vida, há quem  alcance a maioridade natural entre os seus parentes, companheiros ou contemporâneos.

Há quem se faz maior na experiência física, no conhecimento, na virtude ou na competência.

De modo geral, contudo, aquele que se vê guindado a qualquer nível de superioridade costuma valer-se da situação para esquecer seu débito para com o espírito comum.

Muitas vezes quem atinge a maioridade financeira torna-se avarento, quem encontra o destaque científico faz-se vaidoso e quem se vê galeria do poder abraça o orgulho vão.

A Lei da Vida, porém, não recomenda o exclusivismo e a separatividade.

Segundo os princípios divinos, todo progresso legítimo se converte em bênçãos para a coletividade inteira.

A própria Natureza oferece lições sublimes nesse sentido.

Cresce a árvore para a frutificação.

Cresce a fonte para benefício do solo.

Se cresceste em experiência ou em elevação de qualquer espécie, lembra-te da comunhão fraternal com todos.

O Sol, com seus raios de luz, não desampara a furna barrenta e não desdenha o verme.

Desenvolvimento é poder.

Repara como empregas as vantagens de que a tua existência foi acrescentada. O Espírito Mais Alto de quantos já se manifestaram na Terra aceitou o sacrifício supremo, a fim de auxiliar a todos, sem condições.

Não te esqueças de que, segundo o Estatuto Divino, o "menor é abençoado pelo maior".


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Como (não) educar um assassino em casa

Estarrecidos, vemos a realidade superar a ficção. A sangue frio, em São Paulo, o estudante Gustavo Pissardo mata os pais, os avós paternos e a irmã e, em Porto Alegre, Carlos Alberto Pinto de Oliveira degola seus pais. Nem a demência justifica - embora explique - crimes tão hediondos.

O assassino mora em casa porque, salvo casos excepcionais, ele foi criado para odiar. Não é o traficante que produz o viciado. Nem o efeito alucinógeno das drogas. è o desamor, a incapacidade de a família relacionar-se com o filho que não se comporta segundo o modelo instalado na cabeça dos pais. O diferente torna-se divergente e quem devia ser amado passa a ser rejeitado.

Na natureza, todos os mamíferos curtem carinhosamente suas crias. Já répteis, como as serpentes, geram como quem cospe, indiferentes ao destino de seus filhos. Em nossa estrutura cerebral reside também uma cascavel. Se os pais se desgostam na frente dos filhos, agridem-se em palavras e gestos, transformam a casa num lugar insano,, como esperar que os filhos cresçam felizes? Pais que não tocam fisicamente seus filhos, têm pudor de transmitir-lhes carinho ou nunca têm tempo para curti-los, levá-los a passear e se interessar pelo microuniverso deles, podem estar fabricando um assassino em potencial.

Tenho visto pais em estado de perplexidade ao constatarem o filho dependente de drogas. Movidos por um pragmatismo equivocado, adotam reações que vão das ameaças ao castigo ou entregam o caso a cuidados médicos. Se dispõem de recursos, ficam à procura das melhores clínicas e se sentem aliviados quando o problema é provisoriamente descartado - a internação do filho. Fazem exatamente o contrário do que deveria ser feito. A dependência da droga é uma questão afetiva. Não há remédios, médicos clínicas ou internações que preencham o buraco no peito daquele filho que não se sente amado.

No tratamento de um viciado os cuidados terapêuticos são importantes, os remédios, necessários, porém o fundamental é o amor. Amar o dependente com todas as forças e acima de todas as coisas. Fazê-lo sentir-se querido, apreciado, sem nenhuma vergonha de suas reações antissociais e nenhum pudor de manifestar carinho a quem já não é criança. Sobretudo, evitar censurá-lo. Sensível, o dependente apreende quando o tratamos como mero problema ou transmitimos uma afeição que, de fato, nutrimos do fundo de nosso coração.

Todo amor, exceto o divino, supõe no mínimo a retribuição do ser amado. No caso de um drogado, não deve haver ilusões: a retribuição, em forma de recuperação, vem a longo prazo. Durante um período difícil, faz-se necessário que a família ame incondicionalmente, sem confundir amor com presentes, viagens e promessas. No viciado manifesta-se a loucura da família, como o tumor no corpo. E só haverá cura se a família tiver a paciente humildade de reiniciar o aprendizado do amor. Porém, se o pai não dispõe de tempo e a mãe está sempre ocupada no trabalho ou com suas modelações estéticas; se o pai dá mais atenção ao colega de trabalho que ao filho e se a mãe de desespera porque o vê tomando drogas, é sinal de que ainda eles não centram suficientemente sua atenção amorosa no filho.

o amor cura, liberta, salva. E não há bonecas, velocípedes, viagens à Disney, que possam substituí-lo. Porque não há bens materiais capazes de preencher o buraco que trazemos no peito, esse apetite divino que nos faz passar toda a existência à procura do Amor e que leva os filhos bem-amados à personalização harmoniosa que os faz considerar as drogas uma droga.


Texto de Frei Betto retirado do livro Cotidiano & Mistério, Editora Olho Dágua, São Paulo, 2ª Edição, agosto de 2003. (1ª edição de 1996).

domingo, 19 de maio de 2024

Outro Sim

 Outrora, outra vez, outro lar

Outro lugar, outra mulher,

Outro homem

O trem vai pra outra estação

Um outro inverno e lá vem outro verão

Ao outro tanto a ti quanto a mim

Um outro bem, um outro amor, outrossim

Não é fácil aceitar alguém

E ser aceito pelo outro também

Sempre haverá outra esquina

Outra beleza, outro cara, outra mina

Sempre haverá um mané, sem noção, um otário

Querendo atrasar

Sempre haverá outro dia

Ensolarado e outra noite vadia

Sempre haverá outra chance

Outra mão ao alcance querendo ajudar

Outra favela, novela

Outro barraco, buraco

Outra cachaça, manguaça em outro bar

Outro marido traído

Outra esposa ansiosa

Outra amante excitante querendo dar

Outra cabeça, sentença

Outro recanto, encanto

Outra viagem, vertigem em outro mar

Outro sentido ou saída

Outra maneira ou medida

De dar a volta por cima, 

Querendo dá


Música Outro Sim de Fernanda Abreu, Gabriel Moura, Jovi Joviniano gravada no CD Amor Geral, Sony Music, 2016.

sábado, 18 de maio de 2024

Diferença (20)

            "Crês que há um só Deus: fazes bem. Também os demônios o creem, e estremecem."                      - (TIAGO, 2:19.)


A advertência do apóstolo é de essencial importância no aviso espiritual.

Esperar benefícios do Céu é atitude comum a todos.

Adorar o Senhor pode ser trabalho de justos e injustos.

Admitir a existência do Governo Divino é traço dominante de todas as criaturas.

Aceitar o Supremo Poder é próprio de bons e maus.

Tiago foi divinamente inspirado neste versículo, porque suas palavras definem a diferença entre crer em Deus e fazer-Lhe a Sublime Vontade.

A inteligência é atributo de todos.

A cognição procede a experiência.

O ser vivo evolve sempre e quem evolve aprende e conhece.

A diferenciação entre o gênio do mal e o gênio  do bem permanece na direção do conhecimento.

O demônio, como símbolo de maldade, executa os próprios desejos, muita vez desvairados e escuros.

O anjo identifica-se com os desígnios do Eterno e cumpre-se onde se encontra.

Recorda, pois, que não basta a escola religiosa a que te filias para que o problema da felicidade pessoal alcance a solução desejada.

Adorar o Senhor, esperar e crer nEle são atitudes características de toda a gente.

O único sinal que te revelará a condição mais nobre estará impresso na ação que desenvolveres na vida, a fim de executar-lhe os desígnios, porque, em verdade, não adianta muito ao aperfeiçoamento o ato de acreditar no bem que virá do Senhor e sim a diligência em praticar o bem, hoje, aqui e agora, em seu nome.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

É só não tomar conhecimento

Com a escova de dentes na mão, pousa a lagarta verde da pasta sobre as cerdas, e levanta o rosto para o espelho, entreabrindo os lábios em esgar higiênico. Mas no gesto rotineiro a rotina se rompe, e não é a si mesmo que vê. Outro é o rosto que, contido no vidro, o encara sem sorriso ou reconhecimento.

Em pânico, querendo segurar-se na objetividade dos atos práticos, abre o espelho, porta do armarinho do banheiro. E eis que no reverso, costumeiro como sempre, seu rosto espera, de lábios entreabertos, que ele comece a escovar os dentes.

Corre a água sobre a escova levando os últimos restos de pasta. E enxugando a boca com a toalha, ele pensa que o fato afinal não foi tão grave, um susto apenas. Bastará deixar a porta aberta, ignorando o outro, para que tudo continue como antes.


Texto de Marina Colasanti retirado do livro Contos de Amor Rasgados, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986.

sábado, 11 de maio de 2024

Apascenta (19)

 "Apascenta as minhas ovelhas." - Jesus. (JOÃO, 21:17.)


Significativo é o apelo do Divino Pastor ao coração amoroso de Simão Pedro para que lhe continuasse o apostolado.

Observando na Humanidade o seu imenso rebanho, Jesus não recomenda medidas drásticas em favor da disciplina compulsória.

Nem gritos, nem xingamentos.

Nem cadeia, nem forca.

Nem chicote, nem vara.

Nem castigo, nem imposição.

Nem abandono aos infelizes, nem flagelação aos transviados.

Nem lamentação, nem desespero.

"Pedro, apascenta as minhas ovelhas!"

Isso equivale a dizer: - Irmão, sustenta os companheiros mais necessitados que tu mesmo.

Não te desanimes perante a rebeldia, nem condenes o erro, do qual a lição benéfica surgirá depois.

Ajuda ao próximo, ao invés de vergastá-lo.

Educa sempre.

Revela-te por trabalhador fiel.

Sê exigente para contigo mesmo e ampara os corações enfermiços frágeis que te acompanham os passos.

Se plantares o bem, o tempo se incumbirá da germinação, do desenvolvimento, da florescência e da frutificação, no instante oportuno.

Não analises, destruindo.

O inexperiente de hoje pode ser o mentor de amanhã.

Alimenta a "boa parte" do teu irmão e segue para adiante. A vida converterá o mal em detritos e o Senhor fará o resto.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

A Angústia das Savanas

Uma das tantas teorias sobre o começo da civilização é a da angústia do pênis exposto. Quando os primeiros hominídeos desceram das árvores e foram viver na savana, umas das consequências de andarem eretos e terem que se espichar para pegar as frutas foi que seus órgãos sexuais ficaram expostos ao escrutínio público. Antes de darem às fêmeas, ou aos mulherídios, a chance de organizarem uma sociedade de acordo com a sua observação da novidade e determinarem que os mais potentes teriam o poder - o que inviabilizaria qualquer tipo de hierarquia baseada na inteligência e, principalmente, na antiguidade, além de decretar o fim da linhagem dos pintos pequenos, que nunca se reproduziriam -, os machos tomaram providências, começando por tapar suas vergonhas. A civilização começou pelas calças, ou o que quer que fosse a moda de tapa-sexos nas savanas. E tudo que veio depois - a linguagem, o fogo, a roda, a escrita, a agricultura, a indústria, a ciência, as nações, as guerras, todas as afirmações masculinas que independem do pinto - foi, de um jeito ou de outro, uma extensão das primeiras calças. Um disfarce, um estratagema do macho para roubar da fêmea o seu papel natural de guiar a espécie escolhendo o reprodutor que lhe serve pelas suas credenciais mais evidentes, e não pelas suas poses ou poemas. Toda a nossa cultura misógina vem do pavor da mulher que quer retomar seu poder pré-histórico e, não sendo nem prostituta nem nossa santa mãe, nos tirar as calças. Todo o nosso drama milenar foi resumido num pequeno auto admonitório: Yoko Ono seduzindo John Lennon e  desfazendo uma idílica ordem fraternal, quase destruindo um mundo. E o que é supervalorização da virgindade e a estigmatização civil do adultério, como constam na lei brasileira, senão uma tentativa de garantir que a mulher só descubra o tamanho do pênis do marido quando não pode fazer mais nada a respeito? Continuaríamos vivendo a angústia das savanas.

Independentemente das teorias, a virgindade é um tema para muitas divagações. Ninguém, que eu saiba, ainda examinou a fundo, sem trocadilho, todas as implicações do hímen, inclusive filosóficas. Já vi o hímen - que, salvo grossa desinformação anatômica, não tem  qualquer outra função biológica a não ser a de lacre - descrito como a prova de que o Universo é moralista. E, levando-se em conta a dor do defloramento e mais as agruras da ovulação e do parto em comparação com a vida sexual fácil e impune do homem, também é misógino. Mas em comparação com o que a mulher, historicamente, sofreu num mundo dominado por homens e seus terrores, o que ela sofre com a Natureza é pinto. Com trocadilho.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro Sexo na Cabeça, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2002.

domingo, 5 de maio de 2024

A Secretária

Procuro um documento de que preciso com urgência. Não o encontro, mas me demoro a decifrar minha própria letra, nas notas de um caderno esquecido que os misteriosos movimentos da papelada pelas minhas gavetas fizeram vir à tona.

Isso é que dá encanto ao costume da gente ter tudo desarrumado. Tenho uma secretária que é um gênio nesse sentido. Perdeu, outro dia, cinquenta páginas de uma tradução. 

Tem um extraordinário divinatório, que a leva a mergulhar no fundo baú do quarto da empregada os papéis mais urgentes; rasga apenas o que é estritamente necessário guardar mas conserva com rigoroso carinho o recibo da segunda prestação de um aparelho de rádio, que comprei em São Paulo em 1941. Isso me fornece algumas emoções líricas inesperadas: quem não se comove de repente quando quando está procurando um aviso de banco e encontra uma conta  de hotel de Teresina de quatro anos atrás, com todos os vales das despesas extraordinárias, inclusive uma garrafa de água mineral? Caio em estado de pureza e humildade; tomar uma água mineral em Teresina, numa saleta de hotel, quatro anos atrás...

Não importa que ela faça sumir, por exemplo, minha carteira de identidade. Afinal estou cansado de saber que sou eu mesmo; não venham lembrar essa coisa, que me entristece e desanima. Prefiro lembrar esse telefone de Buenos Aires que anotei, com letra nervosa em um pedaço de maço de cigarros, ou guardar com a maior gravidade esse bilhete que diz: "Estive aqui e não te encontrei. Passo amanhã. S." Quem é esse "S." ou essa "S." e por que, e onde e quando procurou minha humilde pessoa? Que sei? Era, afinal, uma criatura humana, alguém que me procurava. Lamento que não estivesse em casa. Espero que eu tenha tratado bem a "S", que "S." tenha encontrado em mim um apoio e não uma decepção - e que ao sair de minha casa ou de meu quarto do hotel tenha murmurado consigo mesmo - "o Rubem é um bom sujeito".

Há papéis de visão amarga, que eu deveria ter rasgado dez anos antes atrás ; mas a mão caprichosa de minha jovem secretária, que o preservou carinhosamente, não será a própria mão da consciência a me apontar esse remorso velho, a me dizer que devo lembrar o quanto posso ser inconsciente e egoísta? Seria melhor talvez esquecer isso; e tento me defender diante desse papel velho que me acusa do fundo do passado. Não, eu não fui mau; andava tonto; e pelo menos era sincero.

Mas para que diabo tomei tantas notas sobre a produção de manganês - e por que não mandei jamais esta carta tão afetuosa, tão cheia de histórias e tão longa a um amigo distante?

Meus arquivos, na sua desordem, não revelam apenas a imaginação desordenada e o capricho estranho da minha secretária. Revelem a desarrumação mais profunda, que não é de meus papéis, é de minha vida.

Sim, estou cheio de pecados; e quando algum dia for chamado a um tribunal, humano ou celeste, para me julgar, talvez a única prova a meu favor que encontre à mão seja essa pequena nota com um PG a lápis e uma assinatura ilegível que atesta que - se respondi com frieza a muita bondade e rasguei com ingratidão ou esquecimento algum bem que me fizeram - pelo menos, Senhor, pelo menos é certo que saldei corretamente a nota de lavagem de um terno de brim à lavanderia Ideal, de Juiz de Fora, em 1936... E esta certeza humilde me dá um certo consolo.


Crônica de Rubem Braga retirado do livro 200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga, Editora Record, 9ª Edição, Rio de Janeiro, 1993.