sábado, 13 de julho de 2024

Alguma Coisa (28)

                "Não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão enfermos."                                - Jesus. (LUCAS, 5:31)


Quem sabe ler, não se esqueça de amparar o que ainda não se alfabetizou.

Quem dispõe de palavra esclarecida, ajude ao companheiro, ensinando-lhe a ciência da frase correta e expressiva.

Quem desfruta o equilíbrio orgânico não despreze a possibilidade de auxiliar o doente.

Quem conseguiu acender alguma luz de fé no próprio espírito, suporte com paciência o infeliz que ainda não se abriu a mínima noção de responsabilidade perante o Senhor, auxiliando-o a desvencilhar-se das trevas.

Quem possua recursos para trabalhar, não olvide o irmão menos ajustado ao serviço, conduzindo-o, sempre que possível, a atividade digna.

Quem estime a prática da caridade, compadeça-se das almas endurecidas, beneficiando-as com as vibrações da prece.

Quem já esteja entesourando a humildade não se afaste do orgulhoso, conferindo-lhe, com o exemplo, os elementos indispensáveis ao reajuste.

Quem seja detentor da bondade não recuse assistência aos maus, de vez que a maldade resulta invariavelmente da revolta ou da ignorância.

Quem estiver em companhia da paz, ajude aos desesperados.

Quem guarde alegria, divida a graça do contentamento com os tristes.

Asseverou o Senhor que os sãos não precisam de médico, mas, sim, os enfermos.

Lembra-te dos que transitam no mundo entre dificuldades maiores que as tuas.

A vida não reclama o teu sacrifício integral, em favor dos outros, mas, a benefício de ti mesmo, não desdenhas fazer alguma coisa na extensão da felicidade comum.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 6 de julho de 2024

Destruição e Miséria (27)

 "Em seus caminhos há destruição e miséria." - Paulo. (ROMANOS, 3:16)


Quando o discípulo se distancia da confiança no Mestre e se esquiva à ação nas linhas do exemplo que o seu divino apostolado nos legou, preferindo a senda vasta de infidelidade à própria consciência, cava, sem perceber, largos abismos de destruição e miséria por onde passa.

Se cristaliza a mente na ociosidade, elimina o bom ânimo no coração dos trabalhadores que o cercam e estrangula as suas próprias oportunidades de servir.

Se desce ao desfiladeiro da negação, destrói as esperanças tenras no sentimento de quantos se abeiram da fé e tece vasta rede de sombras para si mesmo.

Se transfere a alma para a residência escura do vício, sufoca as virtudes nascentes nos companheiros de jornada e adquire débitos pesados para o futuro.

Se asila o desespero, apaga o tênue clarão da confiança na alma do próximo e chora inutilmente sob a tormenta de lágrimas destrutivas.

Se busca refúgio na casa fria da tristeza, asfixia o otimismo naqueles que o acompanham e perde a riqueza do tempo, em lamentações improfícuas.

A determinação divina para o aprendiz do Evangelho é seguir adiante, ajudando, compreendendo e servindo a todos.

Estacionar é imobilizar os outros e congelar-se.

Revoltar-se é chicotear os irmãos e ferir-se.

Fugir ao bem é desorientar os semelhantes e aniquilar-se.

Desventurados aqueles que não seguem o Mestre que encontraram, porque conhecer Jesus-Cristo em espírito e viver longe dele será espalhar a destruição, em torno de nossos passos, e conservar a miséria dentro de nós mesmos.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 29 de junho de 2024

Os Botequins

Noite fria e, como todas as noites, o botequim deserto. José sentava-se à mesa do fundo, o gordo vinha com a garrafa. Enquanto ele ficava no botequim (e ficava até a hora de fechar), o gordo deixava a garrafa aberta no balcão. José trazia o jornal dobrado no bolso. O cálice fazia um círculo úmido na mesa.

Antes de beber, lia uma notícia inteira. Erguendo o cálice e fechando os olhos, engolia dum trago. Ao abri-los, via no teto a sombra redonda da lâmpada. O gordo contornava o balcão, enchia o cálice até a borda, derramada uma gota. José esperava o dia em que, atrás do jornal, iria lamber a gota perdida.

Na quarta ou quinta dose bebia em mais de um gole. Estendia as pernas sob a mesa, contemplava a sombra do teto, lia o jornal. Não olhava para o gordo de calva brilhosa, galhinho de arruda na orelha. Se demorava em servir, José batia o cálice na mesa.

O botequim era corredor escuro, três ou quatro mesas encostadas à parede e o balcão no meio, atrás do qual o gordo curvava a cabeça sob as garrafas. No balcão um vidro de pepinos com mancha de bolor no vinagre.

E nenhum espelho na parede. José não gostava de se olhar. Descobriu aquele botequim e vinha, toda noite, sentar-se à sua mesa, o jornal no bolso. Sempre o mesmo, puído nas dobras. Lia notícia completa antes de emborcar a primeira dose.

Raros intrusos que se aventuravam no botequim davam as costas a José. Quem gosta de ficar no botequim vazio, de cara com um desconhecido? A sua mesa junto ao reservado. Cada vez que alguém entrava, José sentia o odor ácido de amoníaco. De chapéu, o rosto na sombra, bebendo seus tragos. Hora de fechar, o gordo tirava da barriga o avental sujo e, sem olhar para o cliente, contava o dinheiro da gaveta.

José Avançava preguiçoso ao longo das mesas. Tinha casa e família, preferia o botequim, desenhando na mesa os círculos úmidos. Botequim frio, escuro e pestilento. Com ninguém falava, sequer o patrão. Ali não se sentia só. No balcão a garrafa aberta. Mulher alguma diria: Não beba mais, por favor... Pelas cinco chagas de Nosso Senhor, seja esse o último cálice! Não tinha vergonha de beber no botequim. O gordo era pessoa que compreendia as coisas. Além do mais, não havia espelho.

O gordo compreendia. Quando José não tinha dinheiro, deixava o jornal no bolso, depois do quinto cálice ainda o bebia dum trago. Fim de noite, empurrava a cadeira e saía, sem que o patrão corresse atrás. Noite seguinte, voltava; o relógio no bolsinho do colete, a aliança na mão balofa do gordo haviam sido a sua aliança e o seu relógio. Por amor da família - se é que tinha família - sujeitava-se a encher o cálice do único freguês?

No balcão, ao lado do vidro de pepinos, um prato com ovos cozidos, a casca escura de pó. O gordo ali debruçado, raminho fresco de arruda na orelha. Medo da solidão, conservava o botequim aberto, na esperança de que alguém entrasse? O último bar funcionando no domingo, sem a fumaça dos cigarros, sem o burburinho das vozes, sem o bafo azul dos botecos.

Naquela noite um desconhecido surgiu no botequim deserto, além do gordo e de José na mesa do fundo. Em vez de dar-lhe as costas, sentou-se à mesa próxima. O patrão serviu-o e retirou-se. O outro saudou José e, lívido, careta de medo, misturou o pó rosado no copo.

José observou a sombra redonda no teto, as duas manchas de goteira, o vizinho que, depois de beber, deixava a cabeça cair na mesa e o braço pender até o chão - lentamente o copo veio rolando a seus pés

O gordo, sem tirar o avental, recolhia o dinheiro da gaveta. José afastou-se devagar e, a cada passo, sentia a meia encharcada. Por mais cansado, podia andar a noite inteira na chuva. Não era hora de ir para casa. Teria de achar outro botequim e começar outra vez.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

Obreiro Sem Fé (26)

 "... e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras." - (TIAGO, 2:18)


Em todos os lugares, vemos o obreiro sem fé, espalhando inquietação e desânimo.

Devota-se a determinado empreendimento de caridade e abandona-o, de início, murmurando:

- "Para quê? O mundo não presta."

Compromete-se em deveres comuns e, sem qualquer mostra de persistência, se faz demissionário de obrigações edificantes, alegando: - "Não nasci para o servilismo desonroso."

Aproxima-se da fé religiosa, para desfrutar-lhe os benefícios, entretanto, logo após, relega-se ao esquecimento, asseverando: - "Tudo isto é mentira e complicação."

Se convidado a posição de vidência, repete o velho estribilho: - "Não mereço! Sou indigno"..."

Se trazido a testemunhos de humildade, afirma sob manifesta revolta: - "Quem me ofende assim?"

E transita de situação em situação, entre a lamúria e a indisciplina, com largo tempo para sentir-se perseguido e desconsiderado.

Em toda parte, é o trabalhador que não termina o serviço por que se responsabilizou ou o aluno que estuda continuadamente, sem jamais aprender a lição.

Não te concentres na fé sem obras, que constitui embriaguez perigosa da alma, todavia, não te consagres à ação, sem fé no Poder Divino e em teu próprio esforço.

O servidor que confia na Lei da Vida reconhece que todos os patrimônios e glórias do Universo pertencem a Deus. Em vista disso, passa no mundo, sob a luz do entusiasmo e da ação no bem incessante completando as pequenas e grandes tarefas que lhe competem, sem enamorar-se de si mesmo na vaidade e sem escravizar-se às criações de que terá sido venturoso instrumento.

Revelemos a nossa tarefa, através das nossas obras na felicidade comum e o Senhor conferirá à nossa vida o indefinível acréscimo de amor e sabedoria de beleza e poder.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Duas Rainhas

Duas gorduchinhas, filhas de mãe gorda e pai magro. Não sendo gêmeas, usam vestido igual, de preferência encarnado com bolinha. Sob o travesseiro mil bombons, o soalho cheio de papelzinho dourado.

Rosa tem o rosto salpicado de espinhas. Dois anos mais moça, Augusta é engraçadinha, para quem gosta de gorda. Três vezes noiva de sujeitos cadavéricos, esfomeados por aquela montanha de doçuras gelatinosas. Os amores desfeitos pela irmã.

- A Rosa é muito tirana - desculpa a outra sem azedume.

Duas pirâmides invertidas que andassem, largas no vértice e fininhas na base. Manchas roxas pelo corpo de se chocarem nos móveis. Lamentam-se da estreiteza das portas. Sua conversa predileta sobre receita de bolo. Nos aniversários, primeiras a sentarem-se à mesa ou, para lhes dar passagem, todos têm de se levantar.

O terceiro noivo, mais magro, com mais cara de fome, conquista Augusta, apesar da oposição da irmã. Instalados na casa do pais, Glauco proíbe-a de acompanhá-lo ao portão. Não a leva ao baile, queixa-se de que nela todos se esbarram. No cinema, as suas carnes opulentas extravasam da cadeira. O marido, inquieto, vigia a todo instante o vizinho.

Segue-o ao banheiro, enquanto ele faz a barba. Fechados no quarto, não saem senão para as refeições.

- Já se viu - exclama Rosa para a mãe - que pouca vergonha!

O marido quase não dorme - transborda Augusta do leito -, embevecido a vê-la roncar. Por insinuação dele, preocupa-se com as formas. Ela perde alguns quilos, Rosa engorda. Saem juntas para as compras.

- A senhora está esperando? - pergunta a caixeira para Rosa. - De quantos meses?

- Minha irmã que...

Augusta tricoteia casaquinho de lã, que nunca termina. Com dor no coração soube o marido que é falsa a gravidez - ela come escondida. Cada gaveta, manancial de gulodice. Então a arrasta em longas caminhadas; a moça tropeça de pé inchado e, de esfregar uma na outra, em carne viva a coxa roliça.

Glauco deu para beber. Recusa-se a fazer visita, desconfia do riso às suas costas.

- Você tem vergonha de mim - choraminga Augusta.

- Que bobagem, meu bem.

- Tem, sim.

- Se ao menos evitasse bolinha no vestido.

- Bem avisei - suspira Rosa. - Esse casamento não dava certo.

Ele tentou aliança com o sogro. Discutiu com Augusta, Rosa e a sogra, dona Sofia. A moça chorou, fez dieta e perdeu dois quilos, que recuperou semana seguinte.

Sempre beliscando algum petisco e anunciando uma para outra:

- Amanhã é dia de regime!

Lambiscam e recordam os sonhos. Nenhuma borboleta ou esquilo. Todos os bichos proporcionais: rinoceronte, foca, hipopótamo. As noites de Rosa agitam-se de cavalos empinados relinchantes. Augusta prefere um elefante branco:

- O elefante chegou, ergueu as patas, riu para mim.

- Não se olhe tanto ao espelho - resmunga o marido.

Uma tarde explode o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram Rosa em pranto. Glauco investiu, derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

- Minha rainha das pombinhas!

Ai de Augusta, só quer morrer: entre golinhos do licor de ovo, ingere punhado de pílulas, catando azuis e rosas, enjeitando as amarelas - língua babosa, de porrinho, jura eterna viuvez.

Agora as duas no quarto do casal. O marido, esse, no de hóspede. Chega tão bêbado que dona Sofia lhe tira o sapato e deita-o vestido. Cada uma engordou cinco quilos - abaixo do joelho enrolam a meia na liga.

- Viu o Glauco?

- Magro que dá pena.

Abanam-se com ventarola. Mordiscam bombom prateado de anisete:

- Não sei onde com a cabeça.

- Gente magra é tão feia!

Contemplam-se orgulhosas: bem pequeno o pé torneado com roscas de mesa antiga de jacarandá.

- Amanhã dia de regime - anuncia Augusta, em nuvem de talco para evitar queimadura nas dobras.

Depois do almoço ficam de pé par facilitar a digestão. Sem encostar no peitoril, dói o estômago dilatado. Mãos apoiadas na janela - uma janela para cada uma -, vendo a gente magra e feia que passa.

- Que tal pedacinho de goiabada? - sugere uma delas.

Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os joelhos.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

sábado, 22 de junho de 2024

Nos Dons do Cristo (25)

 "Mas a graça foi dada a cada um de nós, segundo a medida do dom do Cristo." - Paulo. (EFÉSIOS, 4:7)


A alma humana, nestes vinte séculos de Cristianismo, é uma consciência esclarecida pela razão, em plena batalha pela conquista dos valores iluminativos.

O campo de luta permanece situado em nossa vida íntima.

Animalidade versus espiritualidade.

Milênios de sombras cristalizados contra a luz nascente.

E o homem, pouco a pouco, entre as alternativas de vida e morte, renascimento no corpo e retorno à atividade espiritual, vai plasmando em si mesmo as qualidades sublimes, indispensáveis à ascensão, e que, no fundo, constituem as virtudes do Cristo, progressivas em cada um de nós.

Daí a razão de a graça divina ocupar a existência humana ou crescer dentro dela, à medida que os dons de Jesus, incipientes, reduzidos, regulares ou enormes nela se possam expressar.

Onde estiveres, seja o que fores, procura aclimatar as qualidades cristãs em ti mesmo, com a vigilante atenção, dispensada à cultura das plantas preciosas, ao pé do lar.

Quanto à Terra, todos somos suscetíveis de produzir para o bem ou para o mal.

Ofereçamos ao Divino Cultivador o vaso do coração, recordando que se o "solo consciente" do nosso espírito aceitar as sementes do Celeste Pomicultor, cada migalha de nossa boa-vontade será convertida em canal milagroso para a exteriorização do bem, com a multiplicação permanente das graças do Senhor, ao redor de nós.

Observa a tua "boa parte" e lembra que podes dilatá-la ao Infinito.

Não intentes destruir milênios de treva de um momento para outro.

Vale-te do esforço de autoaperfeiçoamento cada dia.

Persiste em aprender com o Mestre do Amor e da Renúncia.

Não nos esqueçamos de que a Graça Divina ocupará o nosso espaço individual, na medida de nosso crescimento real nos dons do Cristo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sábado, 15 de junho de 2024

Pelas Obras (24)

                " E que os tenhais em grande estima e amor por causa da sua obra. "                                                                 - Paulo.  ( I TESSALONICENSES, 5:13)


Essa passagem de Paulo, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, é singularmente expressiva para a nossa luta cotidiana.

Todos experimentamos a tendência de consagrar a maior estima apenas àqueles que leiam a vida pela cartilha dos nosso pontos de vista. Nosso devotamento é sempre caloroso para quantos nos esposem os modos de ver, os hábitos enraizados e os princípios sociais; todavia, nem sempre nossas interpretações são as melhores, nossos costumes os mais nobres e nossas diretrizes as mais elogiáveis.

Daí procede o impositivo de desintegração da concha do nosso egoísmo para dedicarmos nossa amizade e respeito aos companheiros, não pela servidão afetiva com que se liguem ao nosso roteiro pessoal, mas pela fidelidade com que se norteiam em favor do bem comum.

Se amamos alguém tão-só pela beleza física, é provável encontremos amanhã o objeto de nossa afeição a caminho do monturo.

Se estimamos em algum amigo apenas a oratória brilhante, é possível esteja ele em aflitiva mudez, dentro em breve.

Se nos consagramos a determinada criatura só porque nos obedeça cegamente, é provável estejamos provocando a queda de outros nos mesmos erros em que temos incidido tantas vezes.

É imprescindível aperfeiçoar nosso modo de ver e de sentir, a fim de avançarmos no rumo da vida superior.

Busquemos as criaturas, acima de tudo, pelas obras com que beneficiam o tempo e o espaço em que nos movimentamos, porque, um dia, compreenderemos conosco, mas é sempre aquele que concorda com o Senhor, colaborando com ele, na melhoria da vida, dentro e fora de nós.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

A Casa de Lili

Com a morte do marido, dona Carlota, gorda de noventa quilos, realizou uma célebre viagem de vapor - ela e a filha passeavam de guarda-pó no tombadilho. Paga a promessa em longes terras, deixaram na gruta da santa o retrato de Lili, com o pedido de um noivo; no verso da fotografia rabiscado o endereço. Qual a surpresa de dona Carlota, um ano mais tarde, bateu à porta o distinto moreno de bigodinho, que se oferecia para casar com a moça da gruta.

Quem passava na rua entrevia, pela cortina de bolinhas azuis, Lili ao piano e o cometa, perna cruzada, calça xadrez e polaina, sacudindo no soalho fulgurante a cinza do charuto.

Prateado lustre de canutilhos pendia do fio envolto em papel crepom. Loucas flores de parafina cresciam no estanho das carteiras de cigarro. Na mesinha, fruta de cera e bibelô de gesso; ao pé, rica boneca de cachos. Cromo recortado de revista - e a moldura rendilhada na própria parede. Discretamente, a um canto, a preciosa escarradeira de porcelana azul.

De trole iam à missa, o caixeiro de palhetinha e bengala, Lili, a boca pintada em coração, o curto pescoço afogado na pele de coelho. Então se apresentou um circo na cidade. Antes do salto mortal, rufava o tambor e dona Carlota de boca aberta, sem engolir a pipoca. No intervalo, por entre as cadeiras, volantins em maiô branco de malha ofereciam o retrato colorido. Com o circo partiu o noivo, enfeitiçado da bailarina perneta.

Alegrou-se a gente perversa: um de nós teria surpreendido o caixeiro saltando a janela do quarto de Lili. Noite seguinte iluminou-se a sala, janelas abertas, ouviu-se o piano. Era a moça muito pintada, um pente de madrepérola no cabelo. Dona Carlota ouvia, rigidamente sentada, lenço de seda ao pescoço.

Lili continuou as lições de piano, gorducha, baixinha, um brilho de ouro no sorriso triste. A uma vizinha, que se referiu ao caixeiro, mostrou o oratório da família. Ao pé das imagens, o retratinho dos entes queridos, lá estava o do noivo. No cinzeiro da sala, intocável, o último charuto pela metade.

Tarde de verão, os cachorros estiravam-se às portas, língua vermelha de fora. A brisa ondulava nas janelas a franja das cortinas, rangiam os portões mal fechados. O pano embebido em gasolina, Lili esfregava o soalho. No degrau da soleira a impressão de um pé descalço. Os maledicentes indagavam do noivo.

- O pobre morreu - respondia Lili - e está morto.

Um dia surgiu o caixeiro na estação. Foi proibido pelo delegado descer à cidade. Passaram-se anos. Dona Carlota se finou de arteriosclerose e, à hora do enterro, a moça tocou a sua valsa predileta. Perdidas as alunas, e sem recurso, obrigada a vender o piano. Então um menino, cesta no braço, batendo nas portas, oferecia medonhas rosas negras.

Instalou-se na casa a família de um primo. Pronto ele consumiu as famosas prendas, até o cinzeiro com o último charuto. Lili não saía do quarto, um dos sobrinhos levava o prato de comida. De manhã na colcha de retalhos, vestida e de sapato, boquinha duramente pintada. Festões e grinaldas abafavam a alcova. Ela se envenenara com o perfume das flores?

Depois a mulher do primo ficou leprosa e a casa foi posta à venda.


Texto de Dalton Trevisan retirado do livro Cemitério de Elefantes, Editora Record, 11ª Edição, Rio de Janeiro, 1997.

sábado, 8 de junho de 2024

Ante o Sublime (23)

 "Não faças tu comum o que Deus purificou." - (ATOS, 10:15)


Existem expressões no Evangelho que, à maneira de flores a se salientarem num ramo divino, devem ser retiradas do conjunto para que nos deslumbremos ante o seu brilho e perfume peculiares.

A voz celeste, que se dirige a Simão Pedro, nos Atos, abrange horizontes muito mais vastos que o problema individual do apóstolo.

O homem comum está rodeado de glórias na Terra, entretanto, considera-se num campo de vulgaridade, incapaz de valorizar as riquezas que o cercam. 

Cego diante do espetáculo soberbo da vida que lhe emoldura o desenvolvimento, tripudia sobre as preciosidades do mundo, sem meditar no paciente esforço dos séculos que a Sabedoria Infinita utilizou no aperfeiçoamento e na seleção dos valores que o rodeiam. 

Quantos milênios terá exigido a formação da rocha?

Quantos ingredientes se harmonizam na elaboração de um simples raio de sol?

Quantos óbices foram vencidos para que a flor se materializasse?

Quanto esforço custou a domesticação das árvores e dos animais?

Quantos séculos terá empregado a Paciência  do Céu na estrutura complexa da máquina orgânica em que o Espírito encarnado se manifesta?

A razão é luz gradativa, diante do sublime.

Não te esqueças, meu irmão, de que o Senhor te situou a experiência terrestre num verdadeiro paraíso, onde a semente minúscula retribui na média do infinito por um e onde águas e flores, solo e atmosfera te convidam a produzir, em favor da multiplicação dos Tesouros Eternos.

Cada dia, louva o Senhor que te agraciou com as oportunidades valiosas e com os dons divinos...

Pensa, estuda, trabalha e serve.

Não suponhas comum o que Deus purificou e engrandeceu.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 2 de junho de 2024

Trechos do Prefácio de A Cama na Varanda

O amor, na forma como o conhecemos, começa a sair de cena, levando consigo a idealização do par romântico, com sua proposta de os dois se transformarem num só, e a ideia de exclusividade.

Observamos a tendência de substituir a idealização pela amizade e pelo companheirismo nas relações amorosas.

Assistimos a um novo mundo de possibilidades, em que o leque de escolhas diante do amor se amplia. A crença na ideia de que se deve encontrar toda a satisfação num único parceiro fica abalada com a hipótese de se amar mais de uma pessoa simultaneamente.

O casamento experimenta profundas transformações. Num futuro próximo, casais podem estar ligados por laços afetivos, profissionais ou mesmo familiares, sem que isso impeça sua vida amorosa de se multiplicar com outros parceiros.

O século XXI deverá assistir ao estabelecimento de uma inédita sociedade de solteiros. As famílias de um único genitor se tornarão predominantes. O mito da necessidade de pai e mãe viverem juntos para a formação sadia do indivíduo caiu quase definitivamente.

O conceito de família ampliou-se. Os casais homossexuais são aceitos com mais naturalidade, e o número de países que admitem a união estável entre gays cresce a cada ano. Alguns dão aos cônjuges do mesmo sexo todos os benefícios que têm os casais heterossexuais, inclusive os direitos a herança, pensão para o viúvo, adoção de crianças e divórcio.

O sexo perde, aos poucos, a visão moralista que predominou sobre ele ao longo da história da civilização. O reconhecimento de que sua prática é fator de equilíbrio e princípio de vida saudável, amplamente anunciado por W. Reich nos primórdios do século XX tornou-se consensual.

As dificuldades de encontrar parceiros são superadas pelo sexo virtual. Ninguém sabe quem está do outro lado, mas isso não impede que se vivam fortes emoções. A rede permite as relações entre estranhos com mais facilidade que em boates, bares e festas. Os cybergames eróticos devem reproduzir o prazer sexual num futuro que se anuncia próximo.

Há sinais de que caminhamos para o fim do gênero sexual. A androginia refere-se a uma maneira específica de juntar os aspectos "masculinos" e "femininos" de um único ser humano. É possível que, num futuro não muito distante, com a dissolução da fronteira entre masculino e feminino, as pessoas escolham seus parceiros amorosos e sexuais pelas características de personalidade, não mais pela condição de serem homens ou mulheres.


Trechos do prefácio do livro A Cama na Varanda (Arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo), de Regina Navarro Lins, Editora Best Seller, 5ª Edição, Rio de Janeiro, 2005. Publicado inicialmente em 1997 pela Editora Rocco.