sábado, 20 de setembro de 2025

Varonilmente (90)

 "Vigiai, estai firmes na fé, portai-vos varonilmente, sede fortes." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 16:13.)


Vigiai na luta comum.

Permanecei firmes na fé, ante a tempestade.

Portai-vos varonilmente em todos os lances difíceis.

Sede fortes na dor, para guardar-lhe a lição de luz.

Reveste-se o conselho de Paulo aos coríntios, ainda hoje, de surpreendente oportunidade.

Para conquistarmos os valores substanciais da redenção, é imprescindível conservar a fortaleza de ânimo de quem confia no Senhor e em si mesmo.

Não vale a chuva de lágrimas despropositadas, ante a falta cometida.

Arrependermo-nos de qualquer gesto maligno é dever, mas pranteá-lo indefinidamente é roubar tempo ao serviço de retificação.

Certo, o mal deliberado é um crime, todavia, o erro impensado é ensinamento valioso, sempre que o homem se inclina aos desígnios do Senhor.

Sem resistência moral, no turbilhão de conflitos purificadores, o coração mais nobre se despedaça.

Não nos cabe, portanto, repousar no serviço de elevação.

É natural que venhamos a tropeçar muitas vezes.

É compreensível que nos firamos frequentemente nos espinhos da senda.

Lastimável, contudo, será a nossa situação toda vez que exigirmos rede macia de consolações indébitas, interrompendo a marcha para o Alto.

O cristão não é aprendiz de repouso falso. Discípulo de um Mestre que serviu sem acepção de pessoas até a cruz, compete-lhe trabalhar na sementeira e na seara do Infinito Bem, vigiando, ajudando e agindo varonilmente.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 14 de setembro de 2025

Em Nossa Marcha (89)

 "Perguntou-lhe Jesus: - Que queres que eu faça?" - (MARCOS, 10:51.)

Cada aprendiz em sua lição.

Cada trabalhador na tarefa que lhe foi cometida.

Cada vaso em sua utilidade.

Cada lutador com a prova necessária.

Assim, cada um de nós tem o testemunho individual no caminho da vida.

Por vezes, falhamos aos compromissos assumidos e nos endividamos infinitamente. No serviço reparador, todavia, clamamos pela misericórdia do Senhor, rogando-lhe compaixão e socorro.

A pergunta endereçada pelo Mestre ao cego de Jericó é, porém, bastante expressiva.

"Que queres que eu faça?"

A indagação deixa perceber que a posição melindrosa do interessado se ajustava aos imperativos da Lei.

Nada ocorre à revelia dos Divinos Desígnios.

Bartimeu, o cego, soube responder, solicitando visão. Entretanto, quanta gente roga acesso à presença do Salvador e, quando por ele interpelada, responde em prejuízo próprio?

Lembremo-nos de que, por vezes, perdemos a casa terrestre a fim de aprendermos o caminho da casa celeste; em muitas ocasiões, somos abandonados pelos mais agradáveis laços humanos, de maneira a retornarmos aos vínculos divinos; há épocas em que as feridas do corpo são chamadas a curar as chagas da alma, e situações em que a paralisia ensina a preciosidade do movimento

É natural peçamos o auxílio do Mestre em nossas dificuldades e dissabores; entrementes, não nos esqueçamos de trabalhar pelo bem, nas mais aflitivas passagens da retificação e da ascensão, convictos de que nos encontramos invariavelmente na mais justa e proveitosa oportunidade de trabalho que merecemos, e que talvez não saibamos, de pronto, escolher outra melhor.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 7 de setembro de 2025

Os Cavaleiros de Cristo

 Como uma ordem criada para proteger peregrinos se tornou a mais rica e próspera de toda Idade Média


O ano é 1118. Não existem muitas atrações turísticas na Europa. Alguns castelos, campos, fazendas, mas nada de muito espetacular. O que está na moda é a Terra Santa. Esse sim é o grande fascínio do século 12. Para lá confluem judeus e cristãos atrás dos grandes santuários e paisagens bíblicas. As viagens não são muito confortáveis. São dias, semanas e até meses para chegar da Europa Ocidental até Jerusalém. E o pior, você ainda corre o risco de ser esfaqueado por bandidos ou fanáticos islâmicos. A solução? Simples, criar uma ordem de guarda-costas para levar os fiéis em segurança até a região.

É esse o embrião da famosa Ordem dos Cavaleiros Templários: proteger e escoltar peregrinos. Evidentemente seus membros não eram modelos de santidade ou benevolência. Pertenciam à nobreza de espadachins, mas muitos historiadores os comparam a mercenários obcecados por dinheiro e aventuras.

Não demorou para que ganhassem fama e dinheiro. Além de respeitados pelas monarquias e aristocracias europeias, retornavam do Oriente cada vez mais ricos. Com o passar do tempo, muito deles se tornaram banqueiros de reis e papas, manobreiros de tesouros reais ou árbitros de conflitos internacionais. Seus métodos durante a escolta, porém, não eram muito nobres. Apossavam-se dos despojos dos infiéis e passaram a investir contra a vida dos que não eram cristãos.

Na cidade de Jerusalém também eram bem quistos. Os Templários foram acolhidos por Balduino II, rei de Jerusalém, e receberam as honras de cavaleiros de Cristo.

Diz a lenda que os Templários encontraram a arca perdida no templo de Salomão e passaram a proteger esse segredo com a própria vida.


AMBIÇÕES MEDIEVAIS

Claro que tamanha prosperidade acabaria por acender os olhos de monarcas mais ambiciosos, como o rei da França, Felipe IV. Conhecido como Felipe, o Belo, o rei é sempre lembrado nos livros de história como um ser humano de enorme vaidade e ambição. Filho de Isabel de Aragão, uma das mulheres mais belas de seu tempo, Felipe herdou um físico escultural e rosto de belas feições, daí então o gentílico de "o belo".

Mas para sua infelicidade, sua sorte era proporcionalmente contrária a sua ambição. O rei se meteu em guerras, atacou os domínios de conde Guido Dampierre e perdeu. Investiu contra Eduardo II, da Inglaterra, e perdeu. Tentou deter a emancipação de Flandres, e perdeu novamente. Para sustentar essa série de derrotas, Felipe IV praticamente derreteu todo o tesouro real. Seu povo foi reduzido à miséria. Fome, doenças e revoltas tomaram a França.

Acuado por essa situação limite, Felipe IV encontrou nos tesouros do Templários a salvação. Primeiramente, mandou um enviado a Roma propondo ao papa Bonifácio VIII (Bento Caetano) que dividissem os tesouros templários entre eles. Obviamente, o papa não aceitou. Não contente, o rei francês mandou outro mensageiro, dessa vez equipado da mesma proposta e mais uma série de ameaças. Mais uma vez o papa manteve a negativa. Além disso, ameaçou promover sansões católicas à corte francesa caso as chantagens do monarca continuassem. Não houve terceiro enviado.

Felipe IV mandou prender Bonifácio VIII, que morreu pouco tempo depois. Foi convocado então novo conclave para a eleição de um novo papa. O monarca então empregou todas as suas forças para que a eleição recaísse sobre um cardeal de sua confiança, o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, que depois de eleito adotou o título de Clemente V. Não contente com a eleição de um pontífice de sua confiança, Felipe IV mudou o endereço do papa de Roma para Avinhão, território francês.


O FIM ESTAVA PRÓXIMO

Feito tudo isso ficou fácil se apoderar dos tesouros dos Templários. Os membros do grupo foram considerados criminosos pelo novo papa e perseguido por toda Europa. A maioria de seus membros foi presa em uma operação secreta desencadeada numa sexta-feira 13 (data histórica que de tão famosa originou a lenda de mal presságio).

Jacques De Molay, o Grão Mestre da Ordem, havia sido chamado a Paris para uma comemoração. Sem saber que se tratava de uma armadilha, o mestre dos Templários foi recebido com pompa e honrarias e acabou sendo preso no segundo dia.

Ao mesmo tempo foram enviadas cartas por toda Europa com a ordem expressa de só serem abertas no dia 13 de setembro de 1307. Na carta, os Templários eram acusados de serem criminosos e os monarcas tinham ordens expressas de aprisionar e queimar todos os cavaleiros que encontrassem. Cerca de 15 mil homens foram presos e acusados de traição. A maioria morreu na fogueira.

Entre os mártires, estava De Molay, que ficou preso por sete anos em uma cela suja e úmida. Foi torturado durante todo esse tempo a fim de entregar líderes de outras ordens e documentos secretos. Mesmo sob forte sofrimento, morreu sem revelar nada. Alguns dizem que graças a esse ato de coragem, alguns Templários conseguiram fugir ilesos para Portugal, onde restauraram a Ordem, que manteve-se viva por mais centenas de anos

De Molay foi queimado em praça pública no dia 18 de março de 1314, em uma pequena Ilha do rio Sena. Morreu com 70 anos. Alguns relatos históricos dizem que antes de morrer, De Molay teria proferido uma praga em voz alta, dizendo que Felipe IV e o papa Clemente V não teriam mais do que um ano de vida antes de se depararem com o julgamento divino. Suas palavras foram: "Nekan, Adonai! Papa Clemente... Cavaleiro Guillaume de Nogaret... Rei Felipe... Intimo-os a comparecer perante o Tribunal de Juiz de todos nós dentro de um ano para receberdes o seu julgamento e o justo castigo. Malditos! Malditos! Todos malditos até a décima terceira geração de suas raças!"

Quarenta dias depois Felipe IV recebe uma mensagem: "O Papa Clemente V morrera em Roquemaure na madrugada de 19 para 20 de abril, por causa de uma infecção intestinal". Algum tempo depois o rei Felipe IV, o Belo, faleceu em 29 de novembro de 1314, com 46 anos de idade; caiu de um cavalo durante uma caçada em Fountainebleau.


INFLUÊNCIA

Após a morte de Felipe, a sua dinastia, que governava a França a mais de três séculos, perdeu força e prestígio. Junto a isso, veio a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos, a qual tirou a dinastia dos Capetos do poder de uma vez por todas, passando para a dinastia dos Valois.

A acusação formal contra os Templários era a de que eles tinham se transformado em idólatras, hereges e até mesmo homossexuais. Mas nada pode ser comprovado, pois a maioria das acusações veio por meio de torturas e falsos testemunhos.

Os cavaleiros que conseguiram se exilar em Portugal criaram a "Ordem de Cristo", basicamente a mesma Ordem, mas com nome diferente. Durante muito tempo, os Templários tiveram forte influência na região da Península Ibérica, principalmente em Portugal. Uma das curiosidades que poucas pessoas sabem é que a famosa Cruz de Malta que decorou as caravelas do descobrimento era na verdade a Cruz Templária com outro nome.


TEMPLÁRIOS: TODOS OS MISTÉRIOS DA IDADE MÉDIA

Non Nobis, Domine Non Nobis, Sed Nomini Tuo Da Gloriam

A Ordem dos Cavaleiros Templários tinha a seguinte frase como lema: "Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome dai a glória". A partir de tal propósito e condutas sagradas, a Ordem se tornou, nos séculos seguintes, uma instituição de enorme poder político, militar e econômico.


Insígnia de Pobreza

O símbolo da Ordem era representado por dois cavaleiros montando o mesmo cavalo, simbolizando o voto de pobreza dos Cavaleiros Templários.


Santo Graal

No final do filme "Indiana Jones e a Última Cruzada", o personagem interpretado por Harrison Ford encontra um cavaleiro templário que bebeu no Santo Graal, ganhando o dom da vida eterna. Trata-se de uma referência à lenda de que os Cavaleiros Templários teriam encontrado em Jerusalém o cálice que teria sido utilizado tanto por Jesus Cristo na Última Ceia, quanto para coletar seu sangue após a crucificação.


Arquivos dos processos contra os Templários.

Em outubro de 2007, o Vaticano apresentou o livro "Processus Contra Templários", um terceiro volume da série Exemplaria Praetiosa. A obra foi elaborada a partir dos arquivos secretos do Vaticano e apresenta fac-símiles dos documentos originais, as atas do processo contra os Templários. A edição apresentada possuía apenas 799 exemplares, sendo amplamente requisitada por colecionadores, peritos, especialistas e bibliotecas de todas as partes do mundo.


Ordem de Cristo em Portugal

Em Portugal foi criada, em 1319, a Ordem de Cristo que teve como seu primeiro mestre o ex-mestre templário do País. Ou seja, manteve-se praticamente a mesma estrutura material e hierárquica da Ordem anterior, porém, agora, sob controle real. Os portugueses tinham boas relações com os Templários, principalmente pela ajuda recebida nas guerras de Reconquista que expulsaram os mouros da Península Ibérica.

Assim, a Ordem de Cristo emprestava seus recursos para a Coroa Portuguesa financiar seus progressos marítimos e transmitir seus conhecimentos técnicos conquistados nas navegações para a Escola de Sagres. Esse forte elo explica porque o símbolo das caravelas portuguesas foram pintados com a cruz templária.


Retirado do livro Sociedades Secretas, sem identificação de autoria de todos os textos, Editora Escala, Série Livros Escala, São Paulo, 2009.

sábado, 6 de setembro de 2025

Caindo em Si (88)

 "Caindo, porém, em si..." - (LUCAS, 15:17)

Este pequeno trecho da parábola do filho pródigo desperta valiosas considerações em torno da vida.

Judas sonhou com o domínio político do Evangelho, interessado na transformação compulsória das criaturas; contudo, quando caiu em si, era demasiado tarde, porque o Divino Amigo fora entregue a juízes cruéis.

Outras personagens da Boa Nova, porém, tornaram a si, a tempo de realizarem salvadora retificação.

Maria de Magdala pusera a vida íntima nas mãos de gênios perversos, todavia, caindo em si sob a influência do Cristo, observa o tempo perdido e conquista a mais elevada dignidade espiritual, por intermédio da humildade e da renunciação.

Pedro, intimidado ante as ameaças de perseguição e sofrimento, nega o Mestre Divino; entretanto, caindo em si, ao se lhe deparar o olhar compassivo de Jesus, chora amargamente e avança, resoluto, para a sua reabilitação no apostolado.

Paulo confia-se a desvairada paixão contra o Cristianismo e persegue, furioso, todas as manifestações do Evangelho nascente; no entanto, caindo em si, perante o chamado sublime do Senhor, penitencia-se dos seus erros e converte-se num dos mais brilhantes colaboradores do triunfo cristão.

Há grande massa de crentes de todos os matizes, nas mais diversas linhas de fé, todavia, reinam entre eles a perturbação e a dúvida, porque vivem mergulhados nas interpretações puramente verbalistas da revelação celeste, em gozos fantasistas, em mentiras da hora carnal ou imantados à casca da vida a que se prendem desavisados. Para eles, a alegria é o interesse imediatista satisfeito e a paz é a sensação passageira de bem-estar do corpo de carne, sem dor alguma, a fim de que possam comer e beber sem impedimento.

Cai, contudo, em ti mesmo, sob a bênção de Jesus e, transferindo-te, então, da inércia para o trabalho incessante pela tua redenção, observarás, surpreendido, como a vida é diferente.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Os Segredos dos Mestres

 Como um sindicato de pedreiros da Idade Média se tornou a sociedade secreta mais influente de todos os tempos


Um rapaz vendado está prestes a passar pelo ritual de iniciação. Ele caminha sozinho, por um corredor escuro, até ser interceptado por outro homem com uma espada desembainhada. O ser misterioso solicita que ele tire seu casaco, a gravata e a seguir pede que despoje todo dinheiro e objetos de metal em uma caixa. Feito isso, ele diz em um tom ritualístico: "Caso encontre um companheiro maçom em situação aflitiva, lembre-se que foi recebido na ordem pobre, sem nenhum tostão e aja com a compaixão apropriada".

A perna esquerda

sábado, 30 de agosto de 2025

Os Disfarces de Eros

Trajetória paradoxal a daqueles que buscam explicar o fenômeno erótico. "O enigma do amor permanece", diria Reich ao fim de um ensaio destinado à compreensão científica do fenômeno. O erotismo é "uma imensa aleluia perdia num silêncio sem fim", confessaria Bataille em sua tentativa de verbalizar a experiência erótica. Silêncio, afasia, misticismo ou perplexidade parece ser o fim a que estão fadados aqueles que buscam rastrear os caminhos de Eros.

No entanto, são inúmeros os aventureiros que enveredaram por esta trilha. Nos campos da Filosofia e da Literatura a busca se estende desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias. A Psicanálise e a Medicina viriam, mais tarde, tentar atribuir um estatuto científico "ao grandioso criador". E embora para todos eles o enigma do amor permaneça insolúvel, há certos pontos em comum a que estudiosos chegaram que, se não levam à compreensão última de Eros, lançam ao menos algumas luzes em torno do fenômeno. A descoberta das articulações entre a repressão sexual e a dominação política, a que chegaram Reich e Marcuse, o discurso erótico como forma de "prazer e poder", analisado por Foucault e as relações entre erotismo e misticismo, estudadas por Bataille, funcionam como exemplo desta compulsão irrefreável na tentativa de entender Eros.

Parece-me que existe ao menos um ponto comum e essencial a que os estudiosos chegaram. Trata-se das relações entre continuidade e descontinuidade que estariam na base da experiência erótica e que implicariam a dialética de morte e vida em torno da qual o erotismo se articula. A tese platônica da divisão dos seres em duas partes e da trajetória de uma das metades em busca do seu correspondente desemboca na definição de eros como o unificador, o restaurador da "antiga perfeição". Essa ideia encontra ecos no pensamento de Rollo May, "Eros é o desejo, a ânsia e a eterna busca de expansão", de Freud, "desejo de união (ser um) com objetos no mundo", de D.H. Lawrence, "No amor, todas as coisas se misturam numa unidade de alegria e prazer" e de Bataille: "Nós somos seres descontínuos, indivíduos morrendo isoladamente numa aventura ininteligível, mas nós temos a nostalgia da continuidade perdida (...) A reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas ela envolve sua continuidade."

É, portanto, em torno desses impulsos antagônicos de morte e vida que o erotismo se articula. Ele nos dirige à morte, exatamente quando o que buscamos é perpetuar a vida, permanecer, continuar, prolongar indefinidamente o instante fugaz do gozo. Por isso a trajetória erótica é sempre absurda e obscura: ao tentar desafiar os limites da condição humana, Eros deve sucumbir, pois só na morte reside essa possibilidade remota de permanência, de continuidade. Ao sucumbir, Eros está dando origem a um novo tipo de vida, como o óvulo que, fecundado, dá origem a um novo ser. As novas formas de vida serão sempre incompletas, descontínuas e permanecerão nessa busca impossível que, fatalmente, as levará ao fim.

Estudar as manifestações do erotismo na literatura é, portanto, estudar também as relações dialéticas entre vida e morte que se desenvolvem nas trajetórias das personagens e que servem, muitas vezes, como ocorre na literatura realista, para encobrir, escamotear o fenômeno, numa época em que o decoro, a austeridade e o pudor literário não nos permitiam abrir as cortinas das alcovas.

O erotismo deve ser compreendido, pois, como fenômeno cultural, impulso consciente em que nos lançamos na tentativa de transcender os limites da existência. Não deve ser, por isso, confundido com qualquer atividade sexual, que só será erótica "quando não for simplesmente animal." Essa distinção é fundamental quando se pretende estudar o erotismo na literatura, pois aí os conceitos de erótico e pornográfico muitas vezes se confundem, já que esbarram em problema de ordem moral, religiosa e até política, variando de acordo com a cultura e com as necessidades dos diversos momentos históricos. Considerem-se as estratégias de controle da pornografia literária na era vitoriana nos Estados Unidos. A proibição da entrada das obras de Joyce no país, e das traduções de Boccacio e Casanova, nos dias de hoje compreendidos talvez como escritores de uma literatura de caráter erótico, mas nunca pornográfico, como se foram considerados na época, serve como exemplo da relatividade dessas noções.

As tentativas de conceituação do termo "pornografia", obedecem, evidentemente, a padrões de ordem moral (e o padrão estético, nesses casos, termina por confundir-se com o moral), dando origem, na maioria das vezes, a conceitos abstratos e arbitrários, impossíveis de detectar, como os da justiça inglesa da época: "Textos escritos com o único propósito de corromper a moral dos jovens, e com um teor capaz de chocar os sentimentos de decência de qualquer mente equilibrada." Igualmente absurdas eram as definições da justiça americana, que chegou a considerar como pornográficos quaisquer assuntos ou coisas que exibissem ou representassem visualmente pessoas ou animais mantendo relações sexuais. A maior parte desses argumentos esbarra em problemas de impossível resolução, como a penetração nas intenções de um autor ao escrever uma obra e é evidente que, em casos como esse, a última palavra seria dada a partir da maior ou menor flexibilidade dos critérios morais do juiz, vinculados, é claro, aos interesses da época.

Parece-me que as tentativas de delimitação de fronteiras entre erotismo e pornografia, em última análise, se misturam com as definições do artístico e do não artístico , não menos problemáticas. Obras que realizam a exploração do sexo com fim em si próprio, sem preocupações de caráter estético, são, em geral, consideradas como pornográficas, subliteratura. Obras que, a partir do sexo, abordam outros motivos e, por fim, transcendem o caráter exclusivamente sexual, são consideradas eróticas, literárias. Isso nos remete mais uma vez a Georges Bataille com sua definição da experiência erótica como a transcendência da experiência sexual rudimentar, animal.

Para o estudo do erotismo em dado período literário é, pois essencial que se adote uma perspectiva também histórica. O Realismo burguês pode ser compreendido, com Lúcia Miguel-Pereira, como o estilo que engloba os diversos movimentos do período Realista: O Realismo propriamente dito, o Naturalismo e o Regionalismo, que têm como unidade a tentativa de "fugir ao idealismo obedecendo em geral mais às ideias de seu tempo do que ao seu  temperamento". No estudo dos discursos eróticos dessa época estendi-me também ao Parnasianismo, por se tratar da manifestação do pensamento realista na poesia, e ao Simbolismo, com suas nuances de Decadentismo, já que esse estilo, contemporâneo dos demais, estrutura-se enquanto discurso do outro, enquanto reação ao pensamento positivista da época. Esses movimentos, apesar de obedecerem a uma "frouxa unidade essencial", como afirma a autora, desenvolvem-se através de uma "grande pluralidade de caminhos, de pontos de vista, de modos de escrever e de sentir", e é nessa diferença, nessa pluralidade, que se detectam as diversas falas de Eros.

O estudo do erotismo no Realismo burguês implica, portanto, a análise de diferentes discursos eróticos, produtos de uma época em que imperava uma burguesia cada vez mais poderosa, portadora de uma ideologia moralizadora, que buscava confiscar a sexualidade através da família conjugal: "No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se: o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos." Vinculando a existência de Eros à finalidade única da procriação, estavam garantidas a tranquilidade da família e a segurança do Estado. O sexo regulamentado mantinha, no canto escuro do quarto dos pais, equilíbrio e harmonia de toda uma sociedade. Numa época em que o pensamento burguês atinge o seu ápice, em que o trabalho e a mão-de-obra são cada vez mais requisitados em vista de uma industrialização crescente, seria de se esperar que os mecanismos de poder tentassem sufocar o erotismo, regulamentar a sexualidade, varrer da literatura os corpos nus, vestindo-os com palavras de bom tom e figurinos de bom gosto. As pesquisas de sexualidade sob uma perspectiva política já demonstraram que trabalho e erotismo se opõem, que "renúncia e dilação da satisfação constituem pré-requisitos do progresso."

No entanto, num estudo cuidadoso do Realismo burguês brasileiro, percebe-se que também aí o erotismo não está ausente. Subliminar, talvez, em alguma poesia parnasiana, canalizado para diferentes situações no romance e teatro realistas, mas nunca ausente. Evidente (e muitas vezes esvaziado por uma verbalização excessiva) na poesia simbolista, subvertendo a ordem nas obras de caráter decadente, e regulamentado, analisado, classificado e controlado através da scientis sexualis naturalista. Disfarçado, na maioria das vezes, mas nunca ausente.

Afinal, mesmo em tempos em que o decoro controlava os discursos o erotismo não poderia optar por desaparecer, já que ele existe na base de qualquer trabalho de arte, como existe na base da vida. Araripe Júnior, crítico da época, já havia pressentido isso, quando afirmou ser o "amor, ou melhor, a função genésica o elemento propulsor e inconsciente de toda e qualquer manifestação artística", e o eco de suas palavras pode ser ouvido em diversos perseguidores de Eros, como Bataille: "a poesia leva ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão de objetos distintos. Ela nos leva à eternidade, nos leva à morte, e, através da morte, à continuidade: a poesia é a eternidade".

O que pretendo, ao trilhar os caminhos de Eros nos diversos movimentos do Realismo burguês brasileiro, vai, portanto, um pouco além da simples constatação de sua existência nesse período. Estende-se à análise de seus discursos, à pesquisa de seus disfarces, ao desvendar de suas máscaras, numa época em que as máscaras eram necessárias para que Eros pudesse falar.


Texto de Lúcia Castello Branco retirado do livro Eros Travestido - um estudo do erotismo no realismo burguês brasileiro, Editora UFMG, Belo Horizonte, 1985.

Recebeste a Luz? (87)

 "Recebestes o Espírito Santo quando crestes?" - (ATOS, 19:2.)

O católico recolhe o sacramento do batismo e ganha um selo para identificação pessoal na estatística da Igreja a que pertence.

O reformista das letras evangélicas entra no mesmo cerimonial e conquista um número de  cadastro religioso do templo a que se filia.

O espiritista incorpora-se a essa ou àquela entidade consagrada à nossa Doutrina Consoladora e participa verbalmente do trabalho renovador.

Todos esses aprendizes da escola cristã se reconfortam e se rejubilam.

Uns partilham o contentamento da mesa eucarística que lhes aviva a esperança no Céu; outros cantam, em conjunto, exaltando a Divina Bondade, aliciando largo material de estímulo na jornada santificante; outros, ainda, se reúnem, ao redor da prece ardente, e recebem mensagens luminosas e reveladoras de emissários celestiais, que lhe consolidam a convicção na imortalidade, além...

Todas essas posições, contudo, são de proveito, consolação e vantagem.

É imperioso reconhecer, porém, que se a semente à auxiliada pela adubação, pela água e pelo sol, é obrigada a trabalhar, dentro de si mesma, a fim de produzir.

Medita, pois, na sublimidade da indagação apostólica: - "Recebeste o Espírito Santo quando creste?"

Vale-te da revelação com que a fé te beneficia e santifica o teu caminho, espalhando o bem.

Tua vida pode converter-se num manancial de bênçãos para os outros e para tua alma, se te aplicares, em verdade, ao Mestre do Amor. Lembra-te de que não és quem espera pela Divina Luz. É a Divina Luz, força do Céu ao teu lado, que permanece esperando por ti.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 24 de agosto de 2025

Introdução do Livro "1808"

O Brasil foi descoberto em 1500, mas, de verdade, só foi inventado como país em 1808. Foi quando a família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro fugindo das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte. Até então, o Brasil ainda não existia.

Pelo menos, não como é hoje: um país integrado, de dimensões continentais, fronteiras bem definidas e habitantes que se identificam como brasileiros. Até 1807, era apenas uma grande fazenda, de onde Portugal tirava produtos que levava embora. Ou seja, uma colônia extrativista, sem qualquer noção de identidade nacional.

As diferentes províncias eram relativamente autônomas. Não havia comércio nem estradas, meios de comunicação, nem, praticamente, contato entre elas. Tinham como único ponto de referência em comum o Governo Português, que ficava lá em Lisboa, do outro lado do Atlântico.

A vinda da Corte transformaria radicalmente esse cenário. Uma semana depois do seu desembarque em Salvador, o regente D. João (que ainda não era João VI) anunciou a abertura dos portos. Além disso - uma medida muito importante -, na chegada ao Rio de Janeiro, liberou o comércio e a indústria manufatureira, o que, na prática, era o fim do sistema colonial.

Antes disso, o Brasil não podia comerciar com nenhuma nação, a não ser com Portugal. E não podia fabricar nada por aqui - livros, sapatos, louça de casa, tecidos; tudo era comprado de Portugal ou por intermédio de Portugal. Eram três séculos de monopólio português que terminavam. Finalmente, o Brasil integrava-se ao sistema internacional de produção e comércio.

Foi o começo das grandes mudanças. Em apenas treze anos, entre a chegada e a partida da Corte, o Brasil deixou de ser uma colônia atrasada, proibida e ignorante, para se tornar uma nação independente. Nenhum outro período da história brasileira testemunhou mudanças tão profundas, tão decisivas, em tão pouco tempo.

Foi também um evento sem precedentes na história da humanidade. Nunca antes uma Corte europeia havia cruzado um oceano para viver e governar do outro lado do mundo. D. João foi o único soberano europeu a colocar os pés em terras americanas em mais de quatro séculos de dominação.

O propósito de 1808 - na sua edição original, lançada no Brasil em setembro de 2007 e em Portugal em fevereiro de 2008, e agora também nesta versão juvenil - é contribuir para que esse acontecimento, tão importante na história de ambos os países, se torne cada vez mais conhecido pelos leitores brasileiros e portugueses. Nesta nova versão, o texto de 1808 foi editado pela jornalista Denise Ortiz. As informações foram condensadas e, sempre que necessário, reordenadas para facilitar a compreensão. Nesse trabalho, feito com a orientação do autor, Denise teve o cuidado de preservar todos os detalhes fundamentais que compõem a história da Corte no Brasil, excluindo apenas alguns personagens e situações considerados acessórios. Os capítulos são ilustrados com cenas e personagens da época reproduzidos em aquarelas pela artista plástica Rita Bromberg Brugger. Gaúcha de Porto Alegre, Rita mora em Caxias do Sul e produz ilustrações com base em rigorosa pesquisa histórica.

Do mesmo modo, o texto de 1808, nas suas duas versões, é todo fundamentado em referências bibliográficas. O resultado pretende ser, ao mesmo tempo, atraente e educativo para os interessados em conhecer um pouco mais sobre a grande aventura da fuga da corte de D. João para o Brasil.


Introdução feito pelo autor do livro 1808, Laurentino Gomes (São Paulo, março de 2008); Edição Juvenil Ilustrada, Editora Planeta Jovem, São Paulo, 2015. O título do livro é 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.

sábado, 23 de agosto de 2025

Prefácio do livro A Tolice da Inteligência Brasileira

A realidade social não é visível a olho nu, o que significa que o mundo social não é transparente aos nossos olhos. Afinal, não são apenas os músculos dos olhos que nos permitem ver, existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, "selecionam" e "distorcem" o que os olhos veem, e "escondem" o que não deve ser visto. O leitor pode se perguntar: mas por que alguém faria isso? Por que existiria o interesse em esconder, distorcer ou, como dizemos na vida cotidiana, o interesse em "mentir" sobre como o mundo social realmente é? Ora, como diria o insuspeitado Max Weber, os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm "direito" à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio - mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança - necessita ser "legitimado", ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios.

Nas sociedades do passado o privilégio era aberto e religiosamente motivado: alguns tinham "sangue azul" por decisão supostamente divina, o que os legitimava terem acesso a todos os bens e recursos escassos. A sociedade moderna, no entanto, diz de si mesma que superou todos os privilégios injustos. Isso significa que os privilégios injustos de hoje não podem "aparecer" como privilégio, mas sim como, por exemplo, "mérito pessoal" de indivíduos mais capazes, sendo, portanto, supostamente justificável e merecido.

É isso que faz com que o mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando dependem do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do "convencimento", e não da "violência". Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma "violência simbólica" (Esta é uma noção do sociólogo francês Pierre Bourdieu para se diferenciar da noção de "ideologia" em Marx e enfatizar o trabalho da dominação social como tendo seu núcleo na tentativa de fazer o dominado aceitar por "convencimento" as razões da própria dominação.), perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da "violência física". é por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro, renda da terra ou aluguel.

A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere em grande medida para o bolso do 1% mais rico. Este livro é uma reflexão acerca do que torna possível desigualdade tão abissal e concentração de renda tão grotesca em um país formalmente democrático como o Brasil de hoje.

A tese central deste livro é que tamanha "violência simbólica" só é possível pelo sequestro da "inteligência brasileira" para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da "corrupção apenas do Estado".

E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado - concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro -, como o reino da virtude e da eficiência. E em um contexto no qual não existe fortuna de brasileiro que não tenha sido construída à sombra de financiamentos e privilégios estatais nem corrupção estatal sistemática sem conivência e estímulo do mercado. E também em um cenário em que as classes sociais que mais apoiam essa bandeira como se fosse sua - os extratos conservadores da classe média tradicional e setores ascendentes da nova classe trabalhadora - são precisamente as classes que mais sofrem com os bens e serviços superfaturados e de qualidade duvidosa que o 1% mais rico vende a elas. (Os serviços de telefonia celular no Brasil é um excelente exemplo que pode ser multiplicado para vários setores. Ramo privatizado no governo FHC em nome da "eficiência do mercado", apresenta uma das taxas de preço mais altas do mundo para um serviço de péssima qualidade e campeão de reclamações do PROCOM - em 2013, era um total de 172.000 reclamações. O mesmo acontece com o mercado automotivo: o preço que o brasileiro paga pelo automóvel chega a ser três vezes maior que nos outros países)

Não basta aos endinheirados controlar todos os grandes jornais e redes de TV para legitimar seus próprios interesses. Hoje em dia esses interesses precisam ser "justificados" de modo que pareçam "razoáveis" a fim de "convencer" os que são feitos de tolos por essas falsas justificações. Os endinheirados e poderosos têm que ser inteligentes o bastante para criar uma "ciência para seus interesses", como de fato construíram no Brasil, o que, espero, demonstraremos neste livro para além de qualquer dúvida. Afinal, a "ciência" - e os cientistas especialistas que a incorporam - é atualmente, quem herda o "prestígio" das grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é errado. Não existe notícia em jornal ou TV que não necessite do "aval" de um especialista.

É por isso que este livro parte da crítica da ciência social conservadora até hoje no Brasil como o fundamento último da dominação material e efetiva - que a grotesca divisão do PIB, ou seja, da riqueza social entre as pessoas, mostra tão bem - das classes do privilégio entre nós. A dominação social material e concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se "justificar" e convencer. E produzir "convencimento" é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado.

A ação combinada do "culturalismo conservador" com o "economicismo", os dois pilares da "inteligência brasileira" que criticaremos neste livro, leva a um extremo empobrecimento do debate político nacional. É preciso sempre levar em conta que, na sociedade contemporânea, a legitimação da dominação social é realizada pela "ciência" de modo semelhante à maneira como as grandes religiões do passado faziam nas sociedades tradicionais. São sempre ideias de intelectuais e especialistas que estão na base de programas de partido político, de planejamento do Estado, do que se ensina em salas de aula, do que se decide em tribunais e daquilo que se publica em jornais. Como a genealogia das ideias dominantes não é realizada ou explicitada, temos a impressão de que as ideias "brotam" espontaneamente. Isso não é verdade. São ideias-força de intelectuais e especialistas que se conectam a "interesses poderosos" e logram se "institucionalizar" como leitura dominante de toda uma sociedade sobre si mesma.

Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização. Na verdade, tanto o culturalismo, com sua generalização da corrupção apenas do Estado como contraposta a um mercado supostamente virtuoso, quanto o economicismo, com sua leitura superficial e simplificadora da realidade, levam a um mesmo resultado. Essas duas leituras dominantes e complementares acarretam uma confusão das hierarquias a respeito das questões mais importantes da sociedade brasileira e uma superficialidade e fragmentação da própria percepção da realidade social.

Retira-se dos indivíduos a possibilidade de compreender a totalidade da sociedade e suas reais contradições e conflitos, os quais são substituídos por falsas questões. A fragmentação do conhecimento serve aos interesses dos que estão ganhando na sociedade, já que evitam sua mudança possível. A ação da mudança, a capacidade moral e política de escolher caminhos alternativos pela vontade de intervir no mundo, pressupõe "conhecimento do mundo" para não ser "escolha cega". É isso que faz com que todo conhecimento fragmentário e superficial seja necessariamente conservador. Ele ajuda a manter e justificar o que já existe. Mostraremos neste livro como essa justificação dos privilégios injustos se faz possível no Brasil pela continuação do culturalismo e do economicismo como leituras dominantes fragmentárias e superficiais de nossa realidade.

A "crítica das ideias" dominantes é a primeira trincheira de luta contra os "interesses dominantes" que se perpetuam por se travestirem de supostos interesses de todos. Esse é precisamente o nosso objetivo neste livro: apelar para a inteligência viva daqueles que foram feitos de tolos, ou seja, todos nós, vítimas de uma violência simbólica bem perpetrada. Nosso compromisso e desafio é fazê-lo de tal modo que qualquer leitor de boa vontade - que ama a verdade e percebe o esforço que sua conquista envolve - possa compreendê-lo. Ainda que a desconstrução do senso comum seja um desafio não só cognitivo, mas também emotivo - afinal, são visões de mundo que nos acostumamos a perceber como "nossas" -, nosso empenho foi eliminar do texto todo e qualquer vocabulário "técnico" dispensável. Normalmente a linguagem técnica dos especialistas só serve para criar um abismo entre estes e leigos, para proteger e "distinguir" o  especialista dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do conhecimento como mero "fetiche" do mesmo modo que se utilize o dinheiro na vida social: para "comprar" reconhecimento e legitimar privilégios.

Nosso esforço, ao contrário, foi utilizar o conhecimento como "arma de combate", para rearmar o cidadão que foi destituído das precondições para entender seu cotidiano e as lutas sociais, nas quais se encontra inserido sem o saber, para torná-lo sujeito de seu destino. O pressuposto é que as pessoas que foram feitas de "tolas" podem ser tão inteligentes na política quanto o são nas outras esferas da vida cotidiana e estão aptas a recuperar o que lhes foi tomado: a capacidade de refletir e julgar com autonomia e independência.


Prefácio de Jessé de Souza para o seu livro A Tolice da Inteligência Brasileira (ou como o país de deixa manipular pela elite), Leya Editora, São Paulo, 2015.

Estás Doente? (86)

 "E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará." - (TIAGO, 5:15.)


Todas as criaturas humanas adoecem, todavia, são raros aqueles que cogitam de cura real.

Se te encontras enfermo, não acredites que a ação medicamentosa, através da boca ou dos poros, te possa restaurar integralmente.

O comprimido ajuda, a injeção melhora, entretanto, nunca te esqueças de que os verdadeiros males procedem do coração.

A mente é fonte criadora.

A vida, pouco a pouco, plasma em torno de teus passos aquilo que desejas.

De que vale a medicação exterior, se prossegues triste, acabrunhado ou insubmisso?

De outras vezes, pedes o socorro de médicos humanos ou de benfeitores espirituais, mas, ao surgirem as primeiras melhoras, abandonas o remédio ou o conselho salutar e voltas aos mesmos abusos que te conduziram à enfermidade.

Como regenerar a saúde, se perdes longas horas na posição da cólera ou do desânimo? A indignação rara, quando justa e construtiva no interesse geral, é sempre um bem, quando sabemos orientá-la em serviços de elevação; contudo, a indignação diária, a propósito de tudo, de todos e de nós mesmos, é um hábito pernicioso, de consequências imprevisíveis.

O desalento, por sua vez, é clima anestesiante, que entorpece e destrói.

E que falar da maledicência ou da inutilidade, com as quais despendes tempo valioso e longo em conversação infrutífera, extinguindo as tuas forças?

Que gênio milagroso te doará o equilíbrio orgânico, se não sabes calar, nem desculpar, se não ajudas, nem compreendes, se não te humilhas para os desígnios superiores, nem procuras harmonia com os homens?

Por mais se apressem socorristas da Terra e do Plano Espiritual, em teu favor, devoras as próprias energias, vítima imprevidente do suicídio indireto.

Se estás doente, meu amigo, acima de qualquer medicação, aprende a orar e a entender, a auxiliar e a preparar o coração para a Grande Mudança.

Desapega-te de bens transitórios que te foram emprestados pelo Poder Divino, de acordo com a Lei do Uso, e lembra-te de que será, agora ou depois, reconduzido à Vida Maior, onde encontramos sempre a própria consciência.

Foge à brutalidade.

Enriquece os teus fatores de simpatia pessoal, pela prática do amor fraterno.

Busca a intimidade com a sabedoria, pelo estudo e pela meditação.

Não manches teu caminho.

Serve sempre.

Trabalha na extensão do bem.

Guarda lealdade ao ideal superior que te ilumina o coração e permanece convicto de que se cultivas a oração da fé viva, em todos os teus passos, aqui ou além, o Senhor te levantará.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.