domingo, 26 de julho de 2020

Ciclo das Oferendas - IV

Se vens a mim
traze nas mãos a lua nova
esculpindo seu claro traço
na densa paisagem noturna.

Se vens 
não te esqueças dessa chama
urdindo-se na maré crescente
até a sua inevitável explosão
- rosa ardendo no espaço
inflamada de promessas e plenitude.

Também
é imprescindível que tragas
navegando na água incerta
o definhar da luminosidade
em sua trajetória minguante.

Quando nos meus gestos
já nada houver do que a ti pedi,
ficarão as tuas mãos
- condutoras das oferendas
guardiãs de minhas ansiedades.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - III

Se vens a mim
traze na voz a cantiga
da fonte mais remota
que pela vertente desce
comboiando o desejo
de ainda tornar-se mar.

Se vens 
não te esqueças da luz
que na esperança da água
é fluida correnteza e nos remansos
dança a consagrada
coreografia da claridade.

Também
é imprescindível que tragas
as nuvens devassadas pelos ventos
levando para o íntimo da fonte
a água que um dia de lá partiu.

Quando na minha garganta
já nada houver do que a ti pedi,
ficará a tua voz
- condutora das oferendas
acalanto das minhas convicções.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - II

Se vens a mim
Traze no sorriso a silenciosa pulsação
da semente que no fundo da terra
gesta a liturgia da vida.

Se vens
não te esqueças das parreiras e trigais 
por luas e sóis habitados.
Nem o aroma das folhagens secas.
O vinho enrubescendo a palidez
do pão e dos desejos.

Também
é imprescindível que tragas
o fruto à mesa posta
guardando a semente que no ritual
do plantio já determina
o tempo da próxima colheita.

Quando nos meus lábios
já nada houver do que a ti pedi,
ficará o teu sorriso
- condutor das oferendas
trajeto das minhas alegrias.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Ciclo das Oferendas - I

Se vens a mim
traze no teu abraço o sagrado sal
das madrugadas rebatizando paisagens.
E os ventos cingindo de ternura
as manhãs de neblina e mel.

Se vens
não te esqueças da insubmissa
alegria das preamares ungindo
de verde-lume tardes e sargaços.

Também
é imprescindível que tragas
a abrangente espessura das noites
sem contornos nem alaridos.

Quando nas minhas veias
já nada houver do que a ti pedi,
ficará o teu abraço
- condutor das oferendas
companheiro da minha solidão.

Poema de Bartyra Soares retirado do livro Ciclo das Oferendas, da Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2007.

Gramática do Mar

Sol
Quem falou que a Mouraria é em Lisboa?
Quem falou que a poesia gosta de estar ao sol?
Quem falou que nalgum dia o sol
Nasceria aqui
Viveria aqui
Mas é aqui que ele se põe quando o dia finda

Anda o sol pelas palavras da minha língua
Passa a língua nas vogais e o mar vai falando
Das antigas tradições de um povo
Que nasceu aqui
Que viveu aqui
E é aqui que ele adormece na maré vaza

Um cavalo branco
Dança na areia do deserto
A areia é branca
E a vida é perto

A gramática do mar se aprende cantando
Fados que nos ensinou o tempo e a vida
Gritos de sereias ao luar
Que vêm do sul
Que vêm do sol
E que serão cantados até o fim do Tempo

Um cavalo branco
Dança na areia do deserto
A areia é branca
E a vida é perto

Música de Thamires Tannous e Tiago Torres da Silva, do CD dela intitulado Canto Para Aldebarã, lançado em 2013.

Uma Palavra

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer tudo
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra

Palavra dócil
Palavra d'água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra

Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra

Talvez, à noite
Quase palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Música de Chico Buarque, do CD Uma Palavra, lançado em 1995.

sábado, 25 de julho de 2020

Camaleão Vaidoso

Camaleão vaidoso
No meio das foia parada
Não podia ser visto
Nem quando o vento soprava
Pois carregava na pele
A sina da vida camuflada
Beleza, que não é vista, não serve
Não tem valor pra nada

Usava suas cores
De um modo particular
Mas o que parecia é que as foia
É quem se fazia mudar
Mudava e escondia o bicho
Mas era por admirar
O seu jeito esquisito de ser, de viver e de amar

Triste por não ser visto
Nem no olho do araçá
Sua beleza morria com as horas
Por não poder se mostrar
Do alto mirou o abismo
Fazendo pose de voar
Como uma ordem divina do céu, saltou para cantar

Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.

Kirimurê*

Espelho virado ao céu
Espelho do mar de mim
Iara índia de mel
Deitada nas ondas brancas
Rendeira da beira da terra
Com a espume da esperança

Kirimurê linda varanda
De águas salgadas mansas
De águas salgadas mansas
Que mergulham dentro de mim

Meu Deus deixou de lembrança
Nas conchas dos sambaquis
Na fome da minha gente
E nos traços que guardo em mim
Minha voz é flecha ardente
Nos Catimbós que vivem aqui

Eira e beira
Onde era mata hoje é Bonfim
De onde meu povo espreitava baleias
É um farol que desnorteia a mim
Eira e beira
Um caboclo não é Serafim
Salvem as folhas brasileiras
Oh! Salvem as folhas pra mim

Se me derem a folha certa
E eu cantar como aprendi
Vou livrar a terra inteira
De tudo que é ruim

Eu sou o Dono da Terra
Eu sou o Caboclo daqui


Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.
* Kirimurê, termo que significa, na língua dos tupinambás, "mar interior".

Jorge e o Dragão

Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão

O dragão perambula na cidade
Suas garras negras cravam na alma a dor
Labaredas saem das ventas da crueldade
Queimando as palhas da crença no amor

Sua cauda deixa rastros de tempestades
Inveja, mágoa, e aflição na fé
Espalha o cheiro podre do terror e da vaidade
É o dono das trevas que não quer a paz de pé

Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão

Das nuvens desce o santo guerreiro
Ogun, Oxossi, chamam o rei como quiser
A sua flecha tem a direção correta
A maldade abre o peito e tem vontade de morrer

Prosperidade, vitórias e amor
Não escolhe casa, credo nem calcula a fé
É a luz de Deus cavalgando aqui na Terra
Pra que o bem vença, acabe a tristeza, haja o que houver

Música de J. Veloso e Jorge Mautner retirada do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.

Santo Antônio

Que seria de mim, meu Deus
Sem a fé em Antônio
A luz desceu do céu
Clareando o encanto
Da espada espelhada em Deus
Viva, viva o meu Santo

Saúde que foge
Volta por outro caminho
Amor que se perde
Nasce outro no ninho
Maldade que vem, vai
Vira flor da alegria
Trezena de junho
É tempo sagrado na minha Bahia

Antônio querido
Preciso do seu carinho
Se ando perdido
Mostre novo caminho
Nas suas pegadas, claras,
Trilho o meu destino
Estou nos seus braços
Como se fosse o Deus Menino

Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.