quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A Velha Contrabandista

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

- É areia!

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com a muamba, dentro daquele maldito saco.No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com quarenta anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro.Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:

- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a  senhora está passando por aqui todos os dias?

- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.

- Juro - respondeu o fiscal.

- É a lambreta.


Crônica de Stanislaw Ponte Preta retirada do livro Dois Amigos e um chato, Editora Moderna, Coleção Veredas, 26ª Edição, 1997.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

A Paz Primitiva (2)

No ano 10000 a. C. o gelo começou a recuar para o Norte, modificando o clima e, com isso, a vegetação. No Oriente, surgiram campos naturais de trigo e cevada. Na ausência da roda e de animais de carga, era impossível para os homens transportar os alimentos colhidos. Decidiram, então, mudar-se para perto das plantações, fazendo surgir, assim, as primeiras aldeias. Além de colher, passaram também a plantar cereais. Do VIII ao VI milênio, houve uma transformação radical na vida das populações. É a chamada Revolução Neolítica.

A agricultura estabeleceu-se definitivamente em 6500 a. C. Presume-se ter sido uma invenção da mulher, devido às constantes ausências do homem. Com o passar do tempo, os homens foram-se dando conta de que, matando sistematicamente os animais, poderiam provocar sua extinção. Começaram, então, a domesticá-lo, e foram abandonando a caça; assim, a agricultura ganhava mais importância. Acreditava-se que a fecundidade da mulher influenciava a fertilidade dos campos. Tal associação fez com que ela alcançasse um prestígio nunca antes vivenciado. A mãe era a personagem central nessa sociedade. A mulher, assim como a Deusa, tornava-se poderosa no imaginário da época.

Entre 6500 e 5600 a.C., na Anatólia do Sul, atual Turquia, surge a maior e mais antiga cidade conhecida: Çatal Huyuk. Nela forma encontradas casas decoradas com relevos femininos: mulheres grávidas e figuras com pares de seios. A Deusa de Çatal Huyuk, Pótnia, é representada com uma pantera de cada lado, em cujas cabeças ela coloca as mãos, demonstrando seu poder de mãe e, ao mesmo tempo, de senhora da natureza. Origem de inúmeras divindades femininas que reinaram durante muito tempo, mais tarde foi sendo personificada, adquirindo características próprias.

Apesar de múltipla, a Deusa manteve a universalidade. Após a invenção da escrita, em 3000 a. C., foi venerada com o nome de Inanna, na Suméria; Ishtar, na Babilônia; Anat, em Canaã; Astarte, na Fenícia; Isis, no Egito; Nukua, na China; Freya, na Escandinávia; e Kunapipi, na Autrália. Era sempre reverenciada como fonte de vida, como a força que proporciona a existência das plantas e da fertilidade.

O Neolítico foi um longo período pacífico. As cidades não possuíam defesas. Na arte Neolítica, em vez da representação de guerras, sepultamento de chefes de grupos ou fortificações militares, há a presença de símbolos, admiração e respeito pela beleza e pelo mistério da vida.

Não mais tendo que arriscar a vida como caçador, os valores viris do homem não eram enaltecidos, daí a ausência de deuses masculinos. As súplicas e os sacrifícios eram dirigidos à Deusa e toda atividade econômica estava ligada ao seu culto. Os homens não tinham motivos para se sentir superiores ou exercer qualquer tipo de opressão sobre as mulheres. Continuavam ignorando sua participação na procriação e supunham que a vida pré-natal das crianças começava nas águas, nas pedras, nas árvores ou nas grutas, no coração da terra-mãe, antes de ser introduzida por um sopro no ventre de sua mãe humana.

Trecho 2 do capítulo 1 O Passado Distante, do livro A Cama na Varanda, de Regina Navarro Lins, Editora Best Seller, 5ª edição, 2005.

O Princípio (1)

A história humana divide-se em dois grandes períodos: a idade da Pedra e a Idade dos Metais. Há registros escritos deste último, iniciado por volta do ano 3000 a. C., correspondendo à história das nações civilizadas. A Idade da Pedra subdivide-se em: Paleolítico (antiga Idade da Pedra) e Neolítico (nova Idade da Pedra). O período Paleolítico da pré-história é muito longo - de 500000 a 10000 a.C.

Vivia-se nos bosques, provavelmente nas árvores, a maior parte do tempo, devido à presença de animais selvagens, e a alimentação consistia apenas em raízes e frutos. A descoberta do fogo tornou os homens mais independentes do clima e do lugar. Podiam cozinhar, afugentar animais, iluminar as cavernas. Adquiriram maior autonomia.

O primeiro representante do Homo Sapiens foi o homem de Cro-Magnon, no Paleolítico superior, isto é, nos últimos 35 mil anos. Na caverna de Cro-Magnon, em Les Eysies, França, foram encontrados, em 1868, os primeiros restos desses nossos ancestrais. Eram fortes e tinham, em média, 1,80 metro. Viviam da caça e da coleta de alimentos, e, para sobreviver, dependiam da parceria entre homens e mulheres.

O temor diante do mistério da vida e da morte era expresso em rituais e mitos associados à crença de que os mortos pudessem renascer. Desconhecia-se o vínculo entre sexo e procriação. Os homens não imaginavam que tivessem alguma participação no nascimento de uma criança, o que continuou sendo ignorado por milênios. A fertilidade era característica exclusivamente feminina, estando a mulher associada aos poderes que governam a vida e a morte. Embora tudo indique que tivesse mais poder do que o homem, não havia submissão. A ideia de casal era desconhecida. Cada mulher pertencia igualmente a todos os homens, e cada homem, a todas as mulheres. O matrimônio era por grupos. Cada criança tinha vários pais e várias mães e só havia a linhagem materna.

Arqueólogos encontraram quase 200 estatuetas que testemunham o culto à fecundação. Nenhuma representa o ato sexual ou qualquer sinal de erotismo. A maioria foi descoberta na Europa Central e data de uma época entre 30000 e 25000 a. C. Eram feitas de marfim de mamute, pedra macia ou argila misturada com cinza e depois cozida. O resto nunca foi retratado.

Ao que parece, o símbolo sexual do período Paleolítico foi a mais famosa dessas estatuetas: a Vênus de Willendorf, desenterrada nesse local, próximo a Viena, na Áustria. Tem mais ou menos 12 centímetros de altura e representa uma mulher de nádegas e seios imensos, quadris largos, barriga muito proeminente e uma grande fenda vaginal. Seu significado é discutido. O mais provável é que seja uma deusa primitiva da fertilidade. Supõem alguns, entretanto, ser expressão do erotismo masculino, isto é, "um análogo remoto da atual revista Playboy".

O prazer encontrado nessas figuras sexuais causou indignação em alguns historiadores contemporâneos. "A vida sexual na era Paleolítica deve ter sido sem qualquer erotismo, porque essa Vênus não passava de um monte de banha", afirma um deles. Talvez a gordura funcionasse como proteção contra o frio, mas, também, nada indica que a estética ocidental moderna se aplique ao Paleolítico. Ao contrário, temos de levar em conta que o homem da Idade da Pedra pudesse vê-la como objeto de seu desejo, ansiando por refestelar-se nas banhas de sua Vênus após um dia exaustivo dedicado à caça.

Os vestígios Paleolíticos de estatuetas femininas, assim com as pinturas e os objetos encontrados em mais de 60 cavernas desse período, revelam uma forma de religião em que o feminino ocupava lugar primordial. São manifestações do culto a uma deusa-mãe como fonte regeneradora de todas as formas de vida. Ao longo dos milhares de anos que se seguiram, a adoração à Deusa intensificou-se em culturas cada vez mais avançadas.

Trecho do capítulo 1 O Passado Distante, do livro A Cama na Varanda, de Regina Navarro Lins, Editora Best Seller, 5ª edição, 2005.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Mitologia dos Orixás - Prólogo

Um dia, em terras africanas dos povos iorubás, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiam a todos, tantos os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o homem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manutenção da saúde contra os ataques da doença e da morte. Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento também aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Assim fez ele, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubás, que Exu juntou um número incontável de histórias. Realizada essa pacientíssima missão, orixá mensageiro tinha diante de si todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza, sobre o desenrolar do destino dos homens, mulheres e crianças e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a pobreza, a perda dos bens materiais e de posições sociais, a derrota em face do adversário traiçoeiro, a infertilidade, a doença, a morte.

Conta-se que todo esse saber foi dado a um adivinho de nome Orunmilá, também chamado Ifá, que o transmitiu aos seus seguidores,  os sacerdotes do oráculo de Ifá, que são chamados babalaôs ou pais do segredo. Durante a iniciação a que é submetido para o exercício da atividade oracular, o babalaô aprende essas histórias primordiais que relatam fatos do passado que se repetem a cada dia na vida dos homens e mulheres. Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já teria acontecido antes. Identificar no passado mítico o acontecimento que ocorre no presente é a chave da decifração oracular. Os mitos dessa tradição oral estão organizados em dezesseis capítulos, cada um subdividido em dezesseis partes, tudo paciente e meticulosamente decorado, já que a escrita não fazia parte, até bem pouco tempo atrás, da cultura dos povos de língua iorubá. Acredita-se que um determinado segmento de um determinado capítulos mítico, que é chamado odu, contém a história capaz de identificar tanto o problema trazido pelo consulente como sua solução, seu remédio mágico, que envolve sempre a realização de algum sacrifício votivo aos deuses, os orixás. O babalaô precisa saber em qual dos capítulos e em que parte encontra-se a história que fala dos problemas do seu consulente. Ele acredita que as soluções estão lá e então joga os dezesseis búzios, ou outro instrumento de adivinhação, que lhe indica qual é o odu e, dentro deste, qual é o mito que procura. Acredita-se que Exu é o mensageiro responsável pela comunicação entre o adivinho e Orunmilá, o deus do oráculo, que é quem dá a resposta, e pelo transporte das oferendas ao mundo dos orixás.

Essa arte da adivinhação sobrevive na África, entre os iorubás seguidores da religião tradicional dos orixás, e na América, entre os participantes do candomblé brasileiro e da santeira cubana, principalmente. Na África e em Cuba, o oráculo é prerrogativa dos babalaôs, e, no Brasil, onde os babalaôs se extinguiram, dos pais é mães-de-santo. Aqui, pouco a pouco a adivinhação praticada no candomblé no jogo de búzios foi sendo simplificada e o corpo de mitos foi sendo desligado da prática divinatória, preservando-se, contudo, os nomes dos odus, as previsões e os ebós ou oferendas propiciatórias, além do nome dos orixás que eram os protagonistas das histórias originais de cada odu. O próprio orixá Orunmilá foi sendo esquecido, passando Exu a ocupar o papel central na prática oracular do jogo de búzios. Os mitos, entretanto, continuaram presentes nas explicações da Criação, na composição dos atributos dos orixás, na justificativa religiosa dos tabus, que são muito presentes no cotidiano do candomblé, no sentido das danças rituais etc. Tudo porém muito difuso, embutido nos ritos, sem organização alguma.

A partir da década de 1960 conheceram significativo reavivamento religiões tradicionais, entre elas as religiões dos orixás constituídas na América, verificando-se grande expansão do candomblé, que da Bahia se alastrou por todo o território brasileiro, e da santeria cubana, agora também cultivada nos Estados Unidos, sobretudo entre os imigrantes hispano-americanos. Isso fez proliferar as publicações sobre as religiões dos orixás. Textos oraculares, coletâneas de mitos e de fórmulas rituais colhidos na África, em Cuba e no Brasil têm sido publicados por pesquisadores e sacerdotes, geralmente de modo fragmentado e pouco sistematizado. Essas publicações, científicas ou religiosas, foram se tornando mais e mais procuradas, tanto pelos pesquisadores como pelos seguidores das religiões dos orixás, denominados entre nós de o povo-de-santo. A recente expansão do candomblé no Brasil envolveu forte adesão de segmentos sociais diferentes daqueles em que se originou no Brasil a religião dos orixás, com a inclusão de adeptos não necessariamente de origem negra e que são provenientes de camadas sociais com maior escolaridade e habituadas à ideia da informação pelo livro. Esse novo segmento, que em geral associa culturalmente religião com a palavra escrita, encontrou nos mitos explicações e sentidos para práticas e concepções do candomblé, descobrindo que o mito está impregnado nos objetos rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas e colares, nos rituais secretos de iniciação, nas danças e na própria arquitetura dos templos e, marcadamente, nos arquétipos ou modelos de comportamento do filho-de-santo, que recordam no cotidiano as características e aventuras míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano. Isso reforçou o crescimento e a diversificação de um mercado livreiro sobre os orixás, de modo que a transmissão oral do conhecimento religioso, que caracteriza o candomblé, foi aos poucos incorporando o uso do texto escrito.


Prólogo do livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, Editora Companhia das Letras, 8ª Edição, 2006.

domingo, 9 de agosto de 2020

Madalena (Entra em beco sai em beco)

Fui passear na roça
Encontrei Madalena
Sentada numa pedra
Comendo farinha seca
Olhando a produção agrícola
E a pecuária

Madalena chorava
Sua mãe consolava
Dizendo assim
Pobre não tem valor
Pobre é sofredor
E quem ajuda é Senhor do Bonfim

Entra em beco sai em beco
Há um recurso, Madalena
Entra em beco sai em beco
Há uma santa com seu nome

Entra em beco sai em beco
Vai na próxima capela
E acende uma vela
Pra não passar fome

Música de Isidoro gravada por Gilberto Gil em seu CD Parabolicamará, gravado em 1991.

O Rio Severino

Um tísico à míngua espera a tarde inteira
Pela assistência que não vem

Mas vem de tudo nágua suja, escura e espessa deste
Rio Severino, morte e vida vêm

Mas quem não tem abc não pode entender hiv
Nem cobrir, evitar ou ferver

O rio é um rosário cujas contas são cidades
À espera de um Deus que dê
Quem possa lhes dizer

Me diz o que é que você tem
A quem se pode recorrer
Me diz o que é que você tem

É muita gente ingrata reclamando de barriga d'água cheia
São maus cidadãos

É essa gente analfabeta interessada em denegrir
A boa imagem da nossa nação

És tu Brasil, ó pátria amada, idolatrada por quem tem
Acesso fácil a todos os teus bens

Enquanto o resto se agarra no rosário, e sofre e reza
À espera de um Deus que não vem

O que é que você tem
Me diz o que é que você tem
O que é que eu posso te dizer?
Me diz o que é que você tem

Música de Herbert Vianna gravada no CD Severino, dos Paralamas do Sucesso, de 1994.

Severino e seu chapéu

 Pois ele tinha um chapéu.

Muita gente tem um chapéu, a até tem muita gente que não tem chapéu, mas Severino tinha um chapéu fantástico.

Cada dinheirinho que Severino ganhava, lá na feira de Maceió, era reservado, em grande parte, para o seu chapéu.

E nas festas de fim de ano, Severino se apresentava e cantava, batendo com os pés. As fitas esvoaçavam... e a cabeça de Severino usava, com grande pompa, orgulho e distinção, o seu chapéu.

No início, o chapéu era mais comum, meio igual aos outros. Mas o tempo foi passando, e Severino economizava para o chapéu.

Na verdade, Severino continuava muito pobre, vendendo docinhos na feira. Vez por outra, levava umas blusas de rendendê, tecidas por Madalena, sua mulher. As blusas faziam sucesso, sobretudo para as gringas turistas do Rio e de São Paulo.

Madalena reclamava:

- Eu faço renda para enfeitar o chapéu de Severino! Às vezes passamos necessidade, que vida de pobre é isso... Mas podia ser mais fácil, se não fosse o chapéu! Tudo o que ganho vai pro chapéu!

Severino tomava um trago, tomava outro, mais um, que era pra esquentar do frio, ou pra esfriar do calor. Depois, ia ensaiar pra festa.

Maceió foi deixando de ser um lugar desconhecido, virou atração turística. Madalena vendia que vendia rendas, as mãos doídas, os olhos cansados de prestar atenção dos fios.

Ganhava-se um dinheirinho a mais. Severino, por causa do chapéu, guardava toda sobrinha e comprava espelhos, contas, vidrilhos.

As danças de fim de ano viraram de ano inteiro, pra turista ver, enquanto comia sururu. E Severino, com seu grupo, fitas, cores e o chapéu de Severino, que tinha um feitio de igreja, capelinha de espelhos.

No final, todo turista tinha que ir ver o chapéu de Severino, ali, no meio dos outros chapéus-capelinhas, os palhaços, o compasso de fitas e cores. O chapéu de Severino já não era capela, era uma igreja, uma catedral. Pois Severino, tudo que ganhava, metade era pra pinga, metade pro chapéu... e Madalena que não se arrependesse de ter casado com ele, o mais famoso chapéu de Maceió!

O nome da dança? E isso interessa? Era folclore, chapéu e Severino, espelhando.

- Espelho, espelho meu, existe no mundo um chapéu-catedral mais reluzente do que o meu?

E o chapéu de Severino virou cartaz de turismo.

Naquele dia, pra comemorar, Severino, em frente do cartaz, bebeu uma garrafa inteira. Será que foi uma inteira? E qual o tamanho da garrafa? E eu sei? Só sei que Severino abusou, caiu e dormiu, bem debaixo de um coqueiro.

Na manhã seguinte, quando acordou, deu por falta do chapéu.

- Um ladrão levou meu chapéu!

Nunca houve tristeza maior em toda Maceió! Ninguém achou o chapéu de Severino, que continuou a beber, a beber... a acabou se metendo num caminhão pro sul, largando Madalena, que fazia rendas.

Severino prometeu:

- Madalena, vou trabalhar no Rio de Janeiro; lá eu ganho um sustento melhor, depois a gente arruma a vida, volto a construir um chapéu. Disseram que no Rio tem pagamento melhor. Vou trabalhar de ajudante de pedreiro, que disso sei um pouquinho e o motorista do caminhão garantiu.

Mas no Rio não foi tão fácil. Até que Severino arranjou o  emprego e trabalhava em obras. A cachaça ajudava a esquecer.

Severino contou do seu chapéu para os colegas. Mas riram, zombaram. Aí Severino encheu a cara, bebeu, saiu pela avenida Rio Branco, virou para a direita, deu com a igreja da Candelária. Estava toda iluminada. Severino entrou e caiu de joelhos:

- Obrigado, Jesus Cristinho!

Depois, Severino olhou em volta e disse para as paredes douradas da igreja:

- Puxa, chapeuzinho, como você cresceu! Benza-o Deus!


Conto de Sylvia Orthof retirado do livro Papos de Anjo, Editora Record, 1987.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sol Sublime

Estivesse o homem entregue à própria sorte, e a existência, na Terra, seria insuportável.

Os liames com o passado de onde procede retê-lo-iam no primitivismo.

As imposições atávicas dificultar-lhe-iam vencer os degraus mais difíceis da escala da evolução, e motivo algum lucilaria na sua mente produzindo estímulo para o esforço.

Os passos iniciais são sempre mais demorados e de logro mais complicado.

À medida que se firmam os pés ensejando a verticalidade, mais fáceis se tornam as tentativas de êxito para a marcha.

O Amor de Deus faculta que os anjos guardiães, responsáveis pela evolução do seres, inspirem e emulem os homens ao crescimento, favorecendo o desabrochar das potencialidades que dormem latentes em todos.

Eles velam com carinho e geram recursos que podem ser movimentados para a ascensão.

Cada conquista faculta mais longos horizontes a vencer.

Ampliando-se o raio de ação, mais se agigantam as possibilidades de desenvolvimento.

À frente de todas as experiências vitoriosas, estão esses Guias incansáveis, estimulando-os.

Nunca te consideres, portanto, em abandono, a sós, esquecido.

Quando as dificuldades te advierem, compreende que estás sob avaliação para seres promovido.

Enfrentando enfermidade ou incompreensão, logica sobre o Amor do Pai e alegra-te com a experiência de fixação de forças morais nos painéis da alma.

Sofrendo os aguilhões dos processos degenerativos que as enfermidades produzem, considera que o corpo é somente veste transitória, mas tu és vida imperecível.

Todo triunfo se assenta sobre as lutas ganhas e as dificuldades superadas.

A raiz da árvore gigante e florida permanece frágil no seu extremo, perfurando o solo e nutrindo-se.

A água deixa as impurezas, espremidas nos poros das pedras pelas quais se coa.

Assim também são os mecanismos da evolução para conosco.

Solidão é palavra absurda para quem ama, e queixa de abandono representa desconhecimento das Leis da Vida.

Busca sintonizar com os teus Guias Espirituais e galgarás sucessivos patamares do progresso e da paz.

Jesus prometeu-nos que nos não deixaria a sós, e, mesmo desde antes de se nos desvelar, sempre esteve e permanece conosco, na condição de Sol sublime, atraindo-nos na Sua direção.


Texto retirado do livro Momentos de Harmonia, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis. Livraria Espírita Alvorada Editora, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Eis a Primavera

 João saiu do hospital para morrer em casa - e gritou três meses antes de morrer. Para não gastar, a mulher nem uma vez chamou o médico. Não lhe deu injeção de morfina, a receita azul na gaveta. Ele sonhava com a primavera para sarar do reumatismo, nos dedos amarelos contava os dias.

Não fosse a umidade do ar... - gemia para o irmão nas compridas horas da noite.

Já não tinha posição na cama: as costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, obrava-se sem querer. A filha tapava o nariz com dois dedos e fugia para o quintal:

- Ai, que fedor... Meu Deus, que nojo!

Com a desculpa que não podiam vê-lo sofrer, mulher e filha mal entravam no quarto. O irmão Pedro é que o assistia, aliviando as dores com analgésico, aplicando a sonda, trocando o pijama e os lençóis. Afofava o travesseiro, suspendia o corpinho tão leve, sentava-o na cama:

- Assim está melhor?

Chorando no sorriso, a voz trêmula como um ramo de onde o pássaro desferiu voo:

- Agora a dor se mudou...

Vigiava aflito a janela:

- Quantos dias faltam? Com o sol eu fico bom.

Pele e osso, pescocinho fino, olho queimando de febre lá no fundo. Na evocação do filho morto, havia trinta anos:

- Muito engraçado, o camaradinha - e batia fracamente na testa com a mão fechada. - Com um aninho fazia continência. Até hoje não me conformo.

A saudade do camaradinha acordava-lhe duas grandes lágrimas. No espelho da penteadeira surpreendia o vulto esquivo da filha.

- Essa menina nunca me deu um copo d'água.

Quando o irmão se levantava:

- Fique mais um pouco.

Ali da porta a sua querida Maria:

- Um egoísta. Não deixa os outros descansar.

Ao parente que sugeriu uma injeção para os gritos:

- Não sabe que tem aquela doença? Desenganado três vezes. Nada que fazer.

Na ausência do cunhado, esqueciam-no lá no quarto, mulher e filha muito distraídas. Horas depois, quando a dona abria a porta com o dedo no nariz:

- É que eu me apurei - ele se desculpava, envergonhado. - Doente não merece viver.

A filha, essa, de longe sempre se abanando:

- Ai, como fede!

Terceiro mês o irmão passou a dormir no quarto. Ao lavar-lhe a dentadura, boquinha murcha, o retrato da mãe defunta? Nem podia sorver o café.

- Só de ruim é que não engole - resmungava a mulher.

Negou-lhe a morfina até o último dia: ele morre, a família fica. Tingiu de preto o vestido mais velho, o enterro seria de terceira.

Ao pé da janela, uma corruíra trinava alegrinha na boca do dia e na doçura do canto, ele cochilava meia hora bem pequena. Batia a eterna continência, balbuciava no delírio:

- Com quem eu briguei?

- Me conte, meu velho.

- Com Deus - e agitou a mãozinha descarnada. - Tanto não devia judiar de mim.

Fechando os olhos, sentiu a folha que bulia na laranjeira, o pé furtivo do cachorro na calçada, o pingo da torneira no zinco da cozinha - e o alarido no peito de rua barulhenta às seis da tarde. Se a mulher costurava na sala, ele ouvia os furos da agulha no pano.

- Muito acabadinho, o pobre? - lá fora uma vizinha indagava da outra.

Na última noite, cochichou ao irmão:

- Depois que eu... Não deixe que ela me beije!

Ainda uma vez a continência do camaradinha, olho branco em busca da luz perdida, e o irmão enxugava-lhe na testa o suor da agonia.

Mais tarde a mulher abriu a janela para arejar o quarto.

- Eis o sol, meu velho - e o irmão bateu as pálpebras, ofuscado.

Era o primeiro dia de primavera.


Conto de Dalton Trevisan retirado do livro O Conto Brasileiro Contemporâneo. Vários autores, organização de Alfredo Bosi. Editora Cultrix.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O Grande Passeio

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:

- Mocinha.

As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:

- Nome, nome mesmo, é Margarida.

O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-lhe estreita e dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.

Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:

- Passeando.

Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.

Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão. Todos lá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: "olha!" Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um riso inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar.

Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.

Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? À ideia de uma viagem, no corpo endurecido o coração desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida de repente aclaravam-lhe algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão - se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas, não era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura.

- Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.

É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito - mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardara secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a  comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.

E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.

Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. "Tem mais saúde do que eu!", brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: "E eu que até tinha pena dela."

Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento. O rapaz virou-se para trás:

- Não vá enjoar, vovó!

As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.

A viagem foi muito bonita.

As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçava a sorrir. E, embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! letras - tudo engolido pela velocidade.

Quando Mocinha acordou não sabia mais onde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante.

Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó - achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até aleijada. As lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras.

As moças falavam:

- Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!

Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como conhecera seu marido e onde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.

O rapaz disse para as irmãs:

- Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.

Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a cunhada.

- É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o garoto, viu...

Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.

Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na cabeça, tomava café. Um menino louro - decerto aquele que Mocinha deveria vigiar - estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente talvez passasse o frio no corpo.

A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da recomendação da cunhada, embora "de lá" tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na  saleta, com o armário cheio de louça nova.

- Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se pode fazer.

Mocinha não entendeu muito bem,  pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda. Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se:

- Mãe, cem cruzeiros.

- Não. Para quê?

- Chocolate.

- Não. Amanhã é que é domingo.

Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em véspera de domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café.

A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer a verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.

Afinal, Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para Mocinha:

- Não pode ser não, aqui não tem lugar não.

E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto:

- Não tem lugar não, ouviu?

Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele se impacientou:

- E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu!

Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para comer, Mocinha reapareceu:

- Obrigada, Deus lhe ajude.

Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a menor saudade. Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é bonita.

No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma lata de água.

Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.

Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.

Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.

A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu.

Conto de Clarice Lispector retirado do livro Felicidade Clandestina, Editora Nova Fronteira, 3ª Edição, 1981.