sábado, 14 de novembro de 2020

Marcha

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.

Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebraram as formas do sono
com a ideia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
Entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela forma,
com alguns mortos pelo fluido.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas, 
mais minha dúvida aumenta.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho, meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
Já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A espera que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

Poema de Cecília Meireles retirado do livro Flor de Poemas, Coleção Poiesis, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 7ª Edição, 1983.

O Brinco

 - Alô?

- Russo, deixa eu falar com a Moira.

- O quê?!

- Eu sei que ela está aí. Passa o telefone pra ela.

- Maurão, você enlouqueceu? O que a Moira ia estar fazendo aqui a esta hora?

- Eu só quero falar com ela, Russo. Não vou brigar, não vou fazer cena...

- Mas o que é isso? Você sabe que horas são?

- Desculpe se interrompi qualquer coisa, mas eu preciso falar com a Moira.

- Maurão. Escuta. São três horas da manhã, eu estou dormindo, não tem ninguém aqui comigo e muito menos a... Ó Maurão! O que você pensa que eu sou? Você e a Moira são meus melhores amigos!

- A Moira não é só amiga, não é, Russo? Eu sei. Você e ela...

- Mas que loucura! Maurão...

- Deixa eu falar com ela!

- Quer saber de uma coisa? Vai à... Se a Moira não está em casa eu não tenho nada a ver com isso. Aqui ela não está.

- Você não sabia, mas eu vi você comprando o brinco no calçadão.

- Que brinco?

- Eu vi! E no dia seguinte o brinco apareceu na orelha da Moira.

- E ela disse que eu dei pra ela?

- Ela não disse nada. Eu vi!

- Maurão...

- Você quer que eu faça uma cena? Então está bem. Estou indo praí agora mesmo. Vamos fazer a cena completa, Russo. Marido traído, revolver na mão, tudo. Te prepara!

Maurão desliga. Russo fica por um momento pensativo. Roberto, deitado ao seu lado, não diz nada. Finalmente, Russo fala. Não há rancor em sua voz, só decepção.

- Você e a Moira, é, Roberto?

- Por que eu e a Moira?

- O brinco que eu comprei pra você apareceu na orelha dela.

- Deve ser um parecido.

- Por favor, Roberto. Tudo menos mentira.

- Está bem, eu dei o brinco, Russo. Mas não para a Moira. Pra Lise.

- Pra Lise?!

- É, pra Lise, minha mulher. Juro.

- E a Lise deu pra Moira.

- Será?

- Você sabe onde a Lise está agora, Roberto?

- Deve estar em casa, por quê?

- Porque a Moira não está em casa.

- Você acha que a Lise e a Moira...

- É melhor você ir embora, Roberto. Estou esperando alguém.

- Quem?

- O Maurão vem me matar.

- Eu fico.

- Você vai.

- Está bem.

Roberto levanta da cama, se veste e começa a sair.

- Roberto...

- Ahn?

- Você não gostou do brinco?


Crônica de Luis Fernando Veríssimo retirada do livro Comédias da Vida Privada - 101 Crônicas Escolhidas, L&PM Editores, Porto Alegre, 14ª Edição, 1995.

Fabulosos

 A Mula Sem Cabeça teve uma ideia: convocar todos os personagens folclóricos a uma reunião para reivindicar o reconhecimento como cidadãos brasileiros de verdade.

- Somos tratados como se fôssemos meros produtos da imaginação de escritores, quando na verdade nós aqui estamos mais vivos do que nunca - dizia ela indignada a uma plateia lotada de celebridades literárias.

O Saci-Pererê foi um dos primeiros a reclamar:

- Prometeram institucionalizar um dia só meu e até hoje estou a ver navios. E eu aqui me equilibrando há séculos numa só perninha, meu gorro vermelho já furado e meu cachimbo há muito apagado. Exijo meu dia já!

Quem ocupou o microfone em seguida foi o Boitatá:

- A nova geração ao ouvir meu nome pensa que sou boi, quando na verdade sou uma cobra de fogo. Eu me chamo assim porque na língua tupi-guarani cobra se diz "mboi". Exijo reparação urgente.

Chega então a vez do Curupira:

- Vocês podem imaginar o quanto me custa manter pintados meus cabelos vermelhos, meus dentes verdes e andar com os pés virados pra trás despistando quem em persegue para só se referirem a mim como um mero anão? Exijo reconhecimento.

Tomou a palavra o Boto:

- Há séculos minha fama é a de sedutor de mulheres, eu que nem gosto muito de intimidades com os humanos, que vivo nos rios sem perturbar ninguém. Exijo minha reputação de volta.

Mais que depressa, a Cuca pega o microfone:

- Pior sou eu, que me chamam de mocreia, dizendo que pareço um jacaré e espalham que assusto crianças quando na verdade só as faço dormir. Exijo justiça.

E assim foi que um a um tomou a palavra expondo seu problema de forma que todos concordassem e aplaudissem. Os personagens não estavam brincando, queriam partir para a greve geral até que fossem atendidas suas demandas, caso contrário permaneceriam irredutíveis e cortariam a inspiração de escritores do populário cultural. Ou seriam cidadãos brasileiros com direitos trabalhistas iguais ou desapareceriam de vez dos livros. Organizaram um abaixo-assinado e mandaram para a Academia Brasileira de Letras.

Pouco depois, receberam a resposta oficial:

"Viemos informar por meio desta que não poderemos atender vossas postulações. Realizamos uma grande pesquisa em várias escolas e sentimos muito ao dizer que vocês foram excluídos da preferência literária dos alunos, sendo substituídos por super-heróis estrangeiros. Atenciosamente..."

Crônica de Rita Lee retirada do livro Dropz, Globo Livros, São Paulo, 1ª Edição, 2017.

Guias Espirituais

 Nunca se cansam de inspirar e socorrer.

Jamais abandonam os seus pupilos ou desistem da ação de beneficência ao lado deles.

Sempre se utilizam das menores ensanchas para incutir as ideias felizes e o bem operante.

Vigilantes, são o apoio no desfalecimento, a coragem no receio e a força no momento do desânimo.

Não estimulam à insensatez, nem emulam à vaidade ou ao orgulho venenoso.

Discretos, passam, às vezes, despercebidos, porém, estão sempre presentes.

Generosos, não descuram a disciplina ou a energia.

Gentis, invectivam contra o erro, admoestando com carinho, todavia, com decisão.

Caridosos, perseveram até a exaustão que não atingem, porque se renovam no amor de Deus, que nunca lhes falta.

Assumem o compromisso de apoiar, antes que se inicie a experiência carnal do tutelado, e não o encerram, nem sequer quando se rompem os liames corporais.

Alteram as técnicas de socorro, conforme a ocasião e as necessidades.

Repetem o discurso de amor e de proteção mil vezes, apresentando entonação nova e cordial.

Não se exasperam, tampouco mantêm-se em conivência.

(...) São os Guias Espirituais da criatura humana.

Ninguém, na Terra, que se encontre sem a proteção deles em nome de Deus.

São anjos guardiães, operosos e nobres, que intercedem, respaldam e guardam os homens, protegendo-os das imperfeições que lhes afeiam o caráter e para cuja purificação retornaram à reencarnação.

Haja o que houver, mesmo que repelidos e maltratados, não desprezam os protegidos rebeldes, que mais amam, propiciando-lhes, em diversas ocasiões, o benefício do sofrimento que os desperta para as realidades maiores.

Sabendo que a dor é o método mais eficaz além do amor, propiciam-na, confiando que o buril lapidador realizará o milagre de limar as arestas e liberar a gema preciosa, que é o Espírito adormecido na ganga da ignorância e da perversidade.

Se pretendes alcançar as estrelas, voar livre na amplidão, sonhar e viver o amor sem limite, faze silêncio interior e ouvirás os teus abnegados Guias Espirituais, que vêm aguardando a tua decisão de felicidade, desde há muito, e estão prontos a distender-te as mãos angélicas e salvadoras.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

domingo, 8 de novembro de 2020

Visitante Noturno

 O inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem fazer anunciar. E sem que se atinasse por que motivo escolhera aquele pouso. Não parecia bicho da noite, desses que não podem ver lâmpada acesa, e logo se aproximam, fascinados. Era uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima, sem explicação, sem sentido para ninguém.

Ninguém? O homem, que tem o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros, sentiu-lhe a presença e pensou imediatamente em esmagar o intruso. Chegou a mover a mão. Não o mataria com os dedos, mas com outra folha de papel.

Deteve-se. Não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido, sem fazer mal nenhum. Inseto nocivo? Talvez. Mas sua ignorância em entomologia não lhe dava chance de decidir entre a segurança e a injustiça. E na dúvida, era melhor deixar viver aquilo, que nem nome tinha para ele. Com que direito aplicaria pena de morte a um desconhecido infinitamente desprovido de meios sequer para reagir, quanto mais para explicar-se?

O inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em perspectiva. Dormia ou modorrava sobre a mesa literária, indiferente, simplesmente. Chegara por acaso, sumiria daí a pouco; deixá-lo viver a seu modo, que era um viver anônimo, desligado de inquietações humanas, invariável dentro da natureza: curto e pobre.

Uma ternura imprevista brotou no homem pelo animálculo que momentos antes pensara destruir. Como se alguém viesse de longe para vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho. Não conversava, não incomodava, era uma questão apenas de estar à sua frente, imóvel, em secreta comunhão. Ele fora o escolhido de um inseto, que poderia ter voado para outro apartamento, onde houvesse outra vigília de escrevedor de coisas, mas aquela fora a casa de sua preferência.

A menos que o acaso determinasse aquele encontro. Era possível. O mesmo inseto voara a esmo. O homem quis aferrar-se a esta hipótese, bem plausível. Já se envergonhava de ter envolvido o estranho numa aura de sensibilidade, e talvez voltasse ao impulso inicial de eliminação. A essa altura, espantou-se com a  mobilidade de suas reações. Passava de verdugo a sentimentalão, depois a observador cético e crítico, finalmente perdia-se na confusão das várias atitudes que podemos assumir diante de um inseto instalado na mesa de um escritório, a uma hora que ainda não é madrugada mas já é noite alta e de sono profundo.

Aquietou-se, afinal, na contemplação do "bicho da terra tão pequeno". Era alguma coisa parecida com um botão marrom rombudo, que tivesse olhos e um projeto de asas - o suficiente para deslocar-se no espaço em aventuras breves. E não era uma aventura simples: a altura do edifício exigia esforço grande para chegar da árvore até o décimo primeiro andar. Entretanto, o botão vivo a fizera, e ali estava, tranquilo ou cansado, à mercê do gigante indeciso, que procurava entender, não propriamente sua presença, mas a turbação que essa presença despertava no gigante.

O homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie, não avançaria muito no conhecimento do indivíduo, que era único por ser entre todos o que o visitava. E na multidão de insetos, imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado rumo.

Já não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado, quando o inseto fez ligeiro movimento que o colocou diretamente sob o foco de luz. Seria exagero encontrar expressão naqueles dois pontinhos negros e reluzentes, mas o fato é que deles parecia vir para os olhos do homem um sinal de atenção ou curiosidade. E os dois, homem e inseto, assim ficaram longo tempo, na muda inspeção, ou conversa, que não se conduzia a nada.

A nada? Muitas conversas entre homens também não levam a resultado algum, mas há sempre a esperança de um entendimento que pode vir das palavras ou de uma troca desprevenida de olhares. E o olhar pode penetrar mais fundo que as palavras. O homem sabia disto. Mas aí, notou que, sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver diretamente o real. A figura do inseto dizia-lhe pouco. Dos dois, talvez fosse ele, homem, o que menos habilitado se achava para uma forma de comunicação, aquém - ou além - dos códigos tradicionais.

Distraiu-se avaliando essas limitações e, ao voltar à observação do visitante, este havia desaparecido, decepcionado talvez com a incomunicabilidade dos gigantes. Não é todas as noites que um inseto nos visita. E, se consegue insinuar-nos alguma coisa, esta nunca jamais foi captada para os homens que merecem crédito; só os ficcionistas é que costumam registrá-la, mas quem leva a sério ficcionistas?


Crônica de Carlos Drummond de Andrade retirada do livro Boca de Luar, Editora Record, Rio de Janeiro, 1984.

sábado, 7 de novembro de 2020

Lamentações

 Aglutinam-se na massa humana as pessoas desesperadas.

Uma vaga de aflição paira ameaçadora no mundo, carregando os inquietos que perderam a direção de si mesmos, vitimados pelas circunstâncias dolorosas do momento

A insânia conduz expressivo número de criaturas que estertoram ao sabor do sofrimento, buscando fugir da realidade dos problemas, com a aparência voluptuosa de triunfadores nos patamares dos prazeres alucinantes.

A desordem campeia, e ameaças desumanas transformam-se em torpe conduta nos países do mundo, destroçados por guerras impiedosas em nome de religiões fanatizadoras, de raças asselvajadas, de interesses mesquinhos...

Os governantes da Terra perdem as rédeas da administração e negociam com organizações criminosas, estabelecendo colegiados políticos abomináveis.

A corrupção adquire cidadania, e a imoralidade desfruta de status, perturbando os valores éticos e morais.

Nuvens borrascosas avolumam-se nos céus já escurecidos da humanidade.

Tudo anuncia a chegada dos dias apocalípticos, convocando à razão, à renovação dos códigos, à interiorização espiritual.

Como consequência do período grave de transição, surgem o pessimismo, a desconfiança, as lamentações. De tal forma se vão arraigando no organismo individual e social, que os temas de conversações perdem os conteúdos ou se apresentam desconcertantes, caracterizados pelas sombras do desconforto, da mágoa, dos irrefreáveis desejos de vingança.

A lamentação grassa e perturba as mentes, impedindo a ação correta do bem, como se não adiantasse produzir com elevação, laborar com honradez.

Lamentar não é atitude saudável. Pelo contrário, produz deterioração dos conteúdos bons que ainda remanescem em muitas vidas e movimentam-nas, sustentando os ideais de engrandecimento humano.

A lamentação, qual ocorre com a queixa sistemática, é morbo portador de destruição, de desalento e morte.

Antídoto aos males que infestam os dias atuais, é ainda o amor a força única portadora de recursos salvadores.

Este é um ciclo que se encerra, dando início a outro, que se irradiará plenificador.

Os períodos de renovação fazem-se preceder por inumeráveis acontecimentos devastadores, nos mais diversos aspectos da natureza. O mesmo ocorre na área moral da humanidade.

Assim, não te desalentes, nem duvides do triunfo do bem. Não fiques, porém, inativo, aguardando que forças externas operem miraculosamente sem a tua contribuição.

És importante no contexto atual, em face do que penses e como ajas.

Produze, portanto, com esforço bem direcionado, oferecendo o teu contributo valioso, por menos expressivo que pareça.

Não cedas o passo aos aventureiros da desordem.

Permanece no teu lugar, realizando o que podes, deves e te cabe fazer.

Muita falta fazem Jesus e Sua doutrina no mundo.

Fala-se sobre Ele, discute-se-Lhe a mensagem, mas não se vive o ensinamento que dela deflui.

Sê tu quem confia e faz o melhor.

Se cada cristão decidido resolvesse por viver Jesus, a paisagem atual se modificaria, e refloresceria a primavera no planeta em convulsão.

Assim sendo, ama e contribui em favor do progresso, sem lamentação de qualquer natureza, em paz e confiança.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2015, 2ª Edição.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Elos Vivos

 Mãos abrasadas pela ansiedade ou pelas chamas itinerantes da tarde? Mãos de fogo consumindo-se de solidão. Por entre elas escorriam lancinantes alguns elos da corrente definindo Gustavo no que ele era, no seu próprio ser.

Deitado sob a árvore no canto mais recuado do quintal, a cabeça esmagando antigas notícias de uma revista, ele não vislumbrava horizontes, só sentia a vida que lhe doía. Não tinha esperança e o verde dos seus olhos diluía-se compreendendo tudo.

Os dedos passavam e repassavam os elos como quem desfia um terço áspero e incolor numa exploração exaustiva, revelando-se em gestos inconclusos, incendiados, indagativos: por quê? por quê?

Brigara com Aniette, a mulher, e não fora como de costume para o desabrigo das ruas onde os seus passos rangiam nas calçadas, enquanto ele repetia um estribilho de raiva e exasperação:

- Não volto mais para casa, não volto mais, não volto...

E quando os pés reclamavam repouso, entregava-se à mesa de um bar, terminando sempre refletido num copo vazio, em mais um sonho destroçado. Era quando os ventos da madrugada reconduziam-no para casa, somente eles impulsionavam os seus passos no itinerário da volta.

Naquele dia, também, não buscara refúgio na biblioteca como às vezes fazia, dissolvendo-se em letras que refeitas em palavras iam povoar as páginas dos livros por ele mal tocados. E havia aquele romance inacabado no qual sempre existiam fatos a acrescentar e a diminuir. Era ele o protagonista de uma história que era a sua e, ao mesmo tempo, não era. Pertencia ao mar que se despejava sem tréguas nas conchas das suas mãos? Ou o cachorro ladrando cheio de cismas no fundo do seu peito? Não podia buscar definições. Não lhe matava a sede aquelas águas azuis.

Um elo de silêncio chegou aos seus dedos hirtos. Tão intenso, tão palpável, que ele poderia desenhar usando a trajetória dos pensamentos, seguindo as pegadas das lembranças. Os seus dedos foram-se amaciando numa imponderabilidade de nuvem atravessando o verão. Era a vida que fluía calada. Gustavo escutava os intervalos das batidas do seu coração.

Onde e quando encontrara um silêncio daquele? Só quando ainda menino flagrara a entrega velada de uma flor ao primeiro pássaro da manhã. Naquela hora ele se fizera gesto e colhera para si a plenitude mágica daquele instante.

E como um barco preso à correnteza de um rio que fluísse em sentido contrário, da foz à cabeceira, ele continuou desaguando na infância.

Reviu a fruta aberta no chão amortalhado de folhas e deteve-se curioso diante daquela intimidade subitamente revelada, embora guardado permanecesse o mistério da vida. A sua baleeira nunca permitia aos canários o direito ao pouso. Chorou a sua solidão nos quartos escuros nos dias de febre ou trovoadas. Redescobriu moças regando flores nos jardins pejados de manhãs.

Outros elos desceram-lhe pelas mãos que ainda há pouco estiveram revestidas de saudade. Precisava fazer um acréscimo no romance: havia um vento desembestado descendo uma ladeira esquecida, um sol rubro de medo, uma borboleta de asas partidas.

Eram elos contorcendo-se na sua flexibilidade plástica. Devia ser mais tolerante com Aniette - dizia-lhe outro elo numa dureza de ferro.

Entre ele e Aniette adensava-se um rio de águas turvas rolando encachoeirado para um tempo que se desfazia no nada. Ela a reclamar dos seus mutismos prolongados, a queixar-se dos seus desleixos, da sua falta de iniciativa para resolver os problemas, a pedir a sua palavra quando ele preferia tê-la guardada no poço da garganta.

Ele a exigir o filho que ela não podia ter. Um filho é um caminho que continua e ele estava ali, os pés retidos numa viela. Outra vez veio o silêncio apaziguando tudo numa maciez de elo de algodão.

A tarde de há muito desmanchava-se na noite. Agora eram sombras que passeavam pelas suas mãos. Algumas cochilavam sorrateiras nos seus cabelos em desalinho. Elos de vidro retratavam-lhe o rosto, ora contrafeito, ora desanuviado. Era ele escorrendo-se em si - rio de comportas abertas resvalando pelo leito do tempo.

Um débil traço de luz alcançou-o por entre a folhagem da árvore. Certamente aquilo era arte da lua. Procurou-a. Lá estava: contida, frágil, minguante - um elo de fogo agônico aninhando-se no verde baço de seus olhos.

- Gustavo, vem jantar. Fiz uma sopa daquelas que você gosta. A voz de Aniette, ali diante dele, chegou-lhe mansa numa clara atitude de quem busca a reconciliação.

Ergueu-se aturdido. A lua saltou dos seus olhos indo abrigar-se no regaço de uma nuvem que a acolheu silente.

- Você me desculpa? - De muito longe veio a sua voz.

Aos seus pés caiu a corrente desfazendo-se em elos isolados rolando sem barulho pela inércia da terra seca.

- Ora...

Num impulso de ternura, Aniette estendeu a mão tentando segurar a dele. Só encontrou o vazio.


Conto de Bartyra Soares retirado do livro Silêncio das Velas Vivas, Editora Novo Horizonte, Recife, 2008.

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

Poema de Paulo Leminski retirado do livro Caminho da Poesia, Volume 1, Global Editora, Coleção Literatura em minha casa, 1ª Edição, São Paulo, 2003.

O Gato

No alto do muro
pulando no escuro
miando no mato
entrando em apuro
é o gato, seguro.

De antigo passado
e jeito futuro
movimento puro
ar sofisticado
é o gato, de fato

Só pode ser gato
esse bicho exato
acrobata nato
que só cai de quatro

Poesia de Marina Colasanti retirada do livro Caminho da Poesia, Volume 1, Coleção Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 1ª Edição, 2003.

domingo, 1 de novembro de 2020

A Raposa e o Gato

 Um dia, o gato encontrou a raposa no bosque e disse para si mesmo: vou cumprimentá-la. Ela é tão inteligente, tão experiente, tão respeitada por todo mundo...

E fez uma saudação amigável:

- Bom dia, querida Dona Raposa! Como tem passado? Como tem levado a vida, agora que as coisas andam tão caras?

A raposa ficou inchada de orgulho. Olhou o gato de alto a baixo e levou algum tempo para resolver se respondia ou não. Finalmente disse:

- Dobre a língua, seu patife lambedor de bigodes, seu palhaço de meia-tigela, seu pilantra caçador de ratos, você não se enxerga? Quem você pensa que é? Como ousa me perguntar como eu tenho passado? Quem é você? Que é que você sabe? O que aprendeu? Que artes domina?

- Só uma - respondeu o gato modestamente.

- E qual é, se mal pergunto?

- Quando os cachorros correm atrás de mim, consigo escapar, subindo numa árvore.

- Só isso? - disse a raposa. - Pois eu sou senhora de mil artes e além disso tenho um monte de truques que dariam para encher um baú... Fico de coração apertado só de pensar como você é indefeso. Venha comigo, vou lhe ensinar a escapar dos cachorros.

Justamente nesse momento, apareceu um caçador com quatro cachorros. O gato deu um pulo rápido para o tronco de uma árvore e foi lá para cima, para o meio da copa, onde as folhas e os galhos o esconderam por completo.

- Abra o baú, Dona Raposa, abra o baú! - gritava o gato.

Mas não adiantou nada. Os cachorros já tinham agarrado a raposa, que estava bem presa e imóvel nas patas deles.

- Que pena, Dona Raposa! - disse o gato. - Veja a encrenca em que a senhora está, com todas as suas mil artes. Se pelo menos soubesse subir em árvores, como eu, salvava sua vida...


Texto dos Irmãos Grimm (Jakob& Wilhelm) retirado do livro Contos de Grimm: animais encantados - Clássico Universal; Editora Nova Fronteira, Volume 4, Coleção Literatura em Minha Casa, Rio de Janeiro, 2ª Edição, 2002.