sábado, 1 de outubro de 2022

O Tempo

    A calúnia zurze o látego em teu dorso com impiedade?

    A zombaria gargalha dos teus propósitos e ações com irreverência?

    Mantém-te calmo, e confia no tempo.

    A intriga rouba-te amigos antes devotados e experimentas solidão enquanto eles se voltam contra ti?

    Confia em Deus, e dá-lhes tempo.

    A inveja te persegue, arengando acusações que sabes injustas?

    Resguarda-te na oração, e deixa passar o tempo.

    O ódio se levanta e cumula o teu céu claro com nuvens sombrias, ameaçadoras?

        Persevera no trabalho, e apoia-te ao tempo.

        A competição infeliz rouba-te as oportunidades que contavas amistosas?

        Não desistas, e entrega tudo ao tempo.

        Sentes as forças caindo, enquanto os novos dominadores da situação sorriem nas carnes moças, afirmando-te ultrapassado?

    Persevera com coragem, e dá-lhes tempo.

A traição passou pela porta dos teus  sentimentos e deixou-te combalido?

Levanta, e concede-lhe a bênção do tempo.

As tuas palavras amigas foram voltadas contra ti e sentes cansaço para a defesa inútil?

Silencia, e encarrega o tempo.

Apontam-te como fracassado, aqueles a quem ajudaste e concedeste o teu amor, as tuas horas, as tuas esperanças?

Desculpa-os, e oferta-os ao tempo.

O tempo é de Deus.

As ações são dos homens.

Todas as tragédias e desaires que os homens sofrem, o tempo retifica.

A terra vencida pela tempestade, o tempo, em nome de Deus, a reverdece e a veste de flores.

Os que perseguem e são ingratos, aprendem com o tempo que o mal é um dardo cravado nas carnes da alma a dilacerá-las.

Nesse incessante passar do tempo, o sorriso de vitória se converte em carantonha de dor e a amargura se transforma em esperança.

O tempo a ninguém poupa, na sua inigualável tarefa de colocar as coisas e os homens nos seus necessários lugares.

Não reajas, precipitado, quando ofendido, com a sofreguidão de quem deseja imediata justiça.

Nunca te rebeles, porque te não reconhecem os valores positivos e somente te espezinham.

O tempo refaz e altera a paisagem terrestre, modificando, também, os acontecimentos morais.

O tempo demonstrou que o triunfo de Herodes, de Anás, de Caifás, de Pilatos, contra Jesus, foi uma ilusão de breves momentos.

Hoje, o vencido na Cruz, permanece como Vencedor, ensinando que só o amor, através do tempo, restabelece a verdade e tudo encaminha aos justos fins.


Retirado do livro Momentos de Harmonia; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª Edição, 2014.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Dor de Dente

    Joca acordou danado da vida.

    - Droga de dor de dente!

    Um dente de leite havia doído durante boa parte da noite, deixando o Joca sem dormir direito.

    - Droga, logo hoje que é domingo, esse dente me amolando.

    Mal havia levantado, sua mãe deu a primeira ordem do dia:

    - Joca, vem me ajudar a limpar a cas!

    Isso era costumeiro do domingo de manhã: sem escola para ir, sem tarefa para fazer, não tinha jeito de escapar.

    - Pô, mãe, hoje não! Tô com uma baita dor de dente.

    Meia hora depois, Joca ainda estava carrancudo, queixando-se da maldita dor de dente.

    O pai, como fazia todos os domingos, chamou o filho para ir à feira.

    - Vamos, Joca. Depois te compro um pastel de carne na barraca do chinês.

    - Hoje não, pai.

    O pai de Joca insistiu:

    - Por que não?

    - Tô com dor de dente.

    - Tá doendo muito, Joca?

    - Um pouco.

    E o domingo continuou como tantos outros domingos da vida do Joca.

    Vieram os amigos de sempre: primeiro o Tuta, chamando para soltar pipa no morro perto da escola.

    Depois o Pepê, chamando para andarem de bicicleta na pista cross que eles mesmos fizeram.

    Depois a Ritinha, chamando para um desfile de bandas na praça; o Daniel, chamando para brincar na casa dele; e o Juca, seu irmão, pedindo ajuda para limpar a casa do cachorro.

    Nada. O Joca com dor de dente, amuado, com cara de poucos amigos, sem querer papo com ninguém.

    - Vamos ter que procurar dentista ainda hoje. Esse menino tá muito jururu.

    - Amanhã, mãe. Dá para aguentar até amanhã.

    Depois veio o almoço. Almoço de domingo na casa do Joca é coisa fina: macarrão, carne, molho e muito catchup.

    - Vem comer, Joca.

    - Num quero.

    - Vem comer só um pouco.

    Joca não quis.

    O pai, preocupado com o filho, mas não querendo estragar o domingo da família, levantou-se da mesa e sugeriu:

    - Que tal a gente tomar sorvete na padaria Rainha do Pão Fresco?

    - Oba! - concordaram todos.

    Joca esticou os olhos, ainda borocoxô.

    - Vamos, vamos.

    E puseram-se a caminho. De saída, já na porta, a mãe do Joca, com o coração pequenino, vendo o filho ali adoecido, suspirou:

    - Pena que você não pode ir, né, Joca? Sorvete faz mal pra dor de dente.

    Assim é demais. Ninguém resiste!

    O Joca, num segundo, pôs-se de pé junto ao grupo, meteu um sorriso novo nos lábios e disse:

    - Já passou, mãe. A dor de dente já passou.


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, série Conte Outra Vez, Atual Editora, 14ª Edição, São Paulo, 1988.


Homem pode ser mulher?

     Nós estávamos todos no quartinho dos fundos da casa do Zé Dirceu ensaiando uma peça de teatro para a aula de Língua Portuguesa. Eu, o Zé Dirceu, a Raquel, o Pedrão e o Engasgado (o nome dele não era esse, não: era apelido. Uma vez ele pegou escondido um lanche de um colega e quis comer depressa para não ser descoberto. Aí, já viu... engasgou e ganhou o apelido. O apelido pegou tão bem que hoje ninguém sabe o verdadeiro nome dele).

    Estávamos discutindo e trocando ideias a respeito da distribuição dos papéis. Quem faz o quê? Quem fica com o quê?

    - Eu faço o marido.

    - Eu faço o vendedor.

    O Zé Dirceu, dono da casa, fez biquinho e chantagem:

    - Eu quero é fazer o marido. De todos aqui, eu é que tenho mais jeito de homem.

    - Xiii... lá vem o machão da turma.

    - Que machão, coisa nenhuma! É que eu tenho uma baita cara de bravo!

    - Huummmm... bravinho, hein!?

    - Vamos parar com a brincadeira!

    Resolvi dar um palpite antes que a coisa engrossasse:

    - Tenho uma ideia: cada um escolhe seu papel preferido. A pessoa que escolher um papel e não tiver outro concorrente, já fica com o papel escolhido. O papel que for escolhido por mais de uma pessoa vai pra sorteio. A sorte decide pela gente.

    Pela cara dos meus amigos, percebi que todos tinham aceitado a sugestão. O único que ficou meio assim foi o Zé Dirceu.

    - E se eu não for sorteado para o papel de marido?

    Aí foi a vez do Engasgado falar por nós:

    - Se você não for sorteado, azar o seu. Fica com o papel que sobrar, ora bolas.

    Zé Dirceu tentou negociar:

    - Mas... a casa é minha.

    A Raquel arrematou:

    - Você fica com a casa e nós vamos ensaiar na rua. Está bom assim?

    Acho que isso entupiu a reclamação do Zé Dirceu, pois ele não falou mais nada.

    Fizemos a escolha. Dito e feito: o que todos nós pensamos aconteceu. Sobraram o papel de marido, com duas escolhas: o Zé Dirceu e o Engasgado; e o papel de empregada, sem escolha. Um dos dois ficaria com o papel de marido. O outro... bem, o outro... aí estava o problema: o outro ficaria com o papel de empregada. O sorteio foi feito, sem cambalacho, na frente de todos, com cinco pares de olhos acompanhando tudo, tintim por tintim. Adivinhe o que deu?

        - Engasgado foi sorteado... vai ficar com o papel de marido. Zé Dirceu... pra você sobrou o papel de empregada...

    Imaginem a cara do Zé Dirceu. Nós pensamos que ele fosse estourar. Os olhos brilhando muito, a pele vermelha, o rosto e o peito estufados:

    - Isso nunca!

    Saiu do quartinho dos fundos e entrou em casa. Esperamos mais um pouco e, como ele não deu as caras, fomos embora.

    -Como vamos explicar para a professora?

    - Explicando o que aconteceu, ué!

    - Será que ela vai acreditar?

    - Se não acreditar, paciência!

    Fomos embora. À tarde, teríamos aula e resolveríamos o que fazer. Não dava mesmo para arrumar outro colega, pois a classe inteira já havia sido dividida em grupos.

    Tivemos aula normalmente, cada qual na sua. O Zé Dirceu não falou com ninguém. Ficou jururu o tempo todo. Apenas no fim da tarde deu sinal de vida, mandando um bilhetinho para mim. Abri o papel e li:

Duda, já que vocês insistem e

já que não podem fazer a peça

sem a minha ajuda, avise a

turma que eu aceito ser a empregada.

Amanhã, às 9 horas, no

mesmo lugar.


    No dia seguinte, lá estávamos todos. Com os papéis escolhidos, começamos o ensaio. Foi um quiproquó danado. O Zé Dirceu deu um trabalhão e tanto para fazer o papel de empregada. Mas acabou acertando e dando um jeito.

    No dia da apresentação, ele esteve ótimo. Acho que até que foi por causa dele que fomos tão aplaudidos e convidados a apresentar nossa peça para as outras classes. O Zé Dirceu arrumou uma peruca loira, um sutiã emprestado da mãe, um vestido da irmã e se transformou numa verdadeira mulher. Até voz diferente ele inventou para cumprir bem sua parte.

    Sabe por que eu contei isso?

    Naquela época, eu era menina ainda. Depois cresci, me casei e tive três filhos. Um deles, um menino arteiro pra chuchu, entre uma vidraça quebrada por um chute torto e uma perna machucada por um tombo de bicicleta, de vez em quando resolve vestir minhas roupas para imitar e debochar da irmã mais velha...


Conto de Edson Gabriel Garcia retirado do livro Treze Contos, coleção Conte Outra Vez, Atual Editora, São Paulo, 1988.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

As Cocadas

    Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
    Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.
    Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada, oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina.
    Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.
    Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
    As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.
    Aói minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... E veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces em interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.
    Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.
    Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta - má e dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.

Crônica de Cora Coralina retirada do livro O Tesouro da Casa Velha; Global Editora, seleção de Dalila Teles Veras, São Paulo, 1989.

As almofadas de Dona Lu

Conheci há tempos uma senhora que se chamava Dona Lucinda. Para o marido era eternamente Lu e para os da roda, Dona Lu.

Dona Lucinda veio ao mundo com uma arte ingênua e inspiração irresistível de fazer almofadas, exatamente no tempo em que era requintado o seu uso. Tinha a mania desse inútil pertence. Espalhada na vastidão de sua casa sem criança, Dona Lu contava, rentes, afora, os dois monumentais e bem estofados e bem enfronhados do leito conjugal.

De cima das cadeiras e nos encostos, na assoalho, em todas as direções, na entrada e na saída, tolhendo os passos, e atrapalhando as pernas, estiravam-se, quadravam-se, ou arredondavam-se as almofadas da boa senhora.

Mania interessante que me deixou sempre na dúvida de como a gente se comporta entre elas. Nunca soube ao certo se era para a gente sentar em cima ou ajeitar o corpo cansado; ou se eram  simplesmente para deleite dos olhos. Visitas prudentes, às vezes, antes de se sentarem, punham a almofada no colo.

Tudo quanto caísse do céu por descuido e passasse pelos olhos da excelente senhora, seus dedos ágeis logo transformavam. Retalhos de seda. Vestidos velhos descosidos, ticos de renda, véus usados de noiva, penas de galinha, palmilhas de sapatos velhos. Canhões de meias imprestáveis e até cabelo cortado das amigas, Dona Lu, com sua mania excelsa e habilidade inata, transformava em almofada, tradicional, clássica ou modernista. Era uma inspiração.

Não havia noiva que se casasse, amiga que se lembrasse de fazer anos, casal que festejasse bodas de prata, que não recebessem, para enfeite, deleite ou repouso, uma almofada de Dona Lu. Na teimosa abstinência dos filhos, dedicava-se às almofadas.

O marido conformou-se com a mania (com que não se conformam os maridos depois de 10 anos de vida conjugal?) e passava os dias no escritório porque não tinha em casa onde pôr os pés.

Conheci uma outra senhora, cujo maior pesar era não possuir tantas almofadas como Dona Lu.

Bem sabia ela que o marido da amiga não tinha em casa dois palmos desimpedidos por onde arrastasse descuidado os chinelos caseiros. Tinha o escritório, pensava. Fosse para o escritório.

Com franqueza, depois de dez anos de vida conjugal, o marido só tem mesmo um lugar seguro, apropriado, que lhe vai bem e onde não atrapalha - o escritório.

A amiga relava-se silêncio, no subconsciente. Passou a decorar o feitio, o modelo e a tática de Dona Lu. Logo mais começou a fabricação. Discreta no começo, ganhou impulso e foi longe, querendo mesmo ultrapassar a amiga.

No dia em que terminou a vigésima, discretamente deu uma festinha às pessoas de sua roda mais íntima. Competição sempre teve força e o fabrico continuou. O marido, amigo da paz doméstica, desistiu do dique que tentou opor à avalanche.

Como não tinha escritório fora do lar, diminuiu as passadas pela casa. Fazia voltas prudentes e cautelosas para alcançar um objeto mais afastado.

Pensou no desquite, pensou numa demorada excursão pela selva amazônica, onde não houvesse almofadas, pensou num incêndio, num terremoto e outras muitas coisas.

Afinal, pela força da inação, das pernas e da vontade, acabou paralítico numa cadeira de rodas, rodeado de almofadas.


Conto de Cora Coralina retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, seleção de Dalila Teles Veras; Global Editora, São Paulo, 1989.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Tanto Mar

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá

Com a tua gente

E colher pessoalmente

Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei, também, quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente

Ainda guardo renitente

Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá

Mas certamente

Esqueceram uma semente

N'algum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei, também, quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Canta primavera, pá

Cá estou carente

Manda novamente

Algum cheirinho de alecrim


Letra original da música Tanto Mar, de Chico Buarque, bem diferente da versão dele no então LP de 1978. Aqui, a gravação é da cantora brasileira Ciça Marinho em seu belíssimo CD intitulado Além Mar, Além Mim, gravado em São Paulo no ano de 2012. Filha de portugueses, manteve o sotaque de seus pais na gravação do disco...

Assim caminha a humanidade

    Há muito tempo que penso nisso e muitas pessoas devem ter pensado a mesma coisa.

    Mas ninguém fala, ninguém diz nada. Por que, não o sei. Trata-se do automóvel. Essa maravilha mecânica, o veículo revolucionário que acabou com os carros de tração animal e expulsou o trem urbano para os longos percursos.

    E agora esse totem da nossa era, o AUTOMÓVEL, também chega ao seu fim, transforma-se num veículo obsoleto. Não serve mais. A finalidade a que se destinava, nas áreas urbanas: transporte individual, rápido, seletivo, perdeu o sentido. Você, hoje, para transpor alguns poucos mil metros, da sua casa para o centro, leva o mesmo tempo que gastaria se fosse caminhando a pé. As ruas de todas as cidades do mundo - pequenas, médias, grandes (ou imensas como São Paulo ou New York) vivem atravancadas por essas tartarugas ninjas, andando a passo de - sim, de tartaruga mesmo, cada uma ocupando um espaço que vai de 10 a 12 metros quadrados, e transporta na sua grande maioria só uma ou duas pessoas, no máximo três, se houver o motorista.

    Arrogante. Nas suas janelas de cristal, na pintura luzidia, nos metais polidos, o automóvel é, acima de tudo, um monstro de egoísmo. A área que ele exige para si, na via pública, em vez de dois personagens lhe ocupando os assentos, daria para, no mínimo, três bancos de três pessoas, folgadamente instaladas. Para quem vem, aqui no Rio, da Barra da Tijuca ao Centro, tem de se inserir logo na avenida das Américas, num imenso, compacto cortejo, andando em velocidade de enterro (qual enterro, já vi enterro marchando um muito maior velocidade!) e carregando todos juntos, um contingente de pessoas que caberia folgadamente dentro de um trem suburbano. E em meio de buzinadas, palavrões, batidas de para-choques ou outros incidentes mais graves, só vai alcançar o seu destino - se der sorte - dentro de, no mínimo, hora e meia.

    É, temos de livrar as ruas disso que Macunaíma  chamava " máquina veículo automóvel ". O carro puxado a cavalos também não desapareceu, por obsoleto? Hoje nem a rainha da Inglaterra o emprega, prefere os seus reluzentes Rolls Royces. Tal como não se podia mais suportar o atropelo e sujeira dos cavalos, das lerdas carruagens do fim do século 19, assim também o automóvel acabou.

    Há que substituí-lo por um transporte coletivo de qualidade, rápido, limpo, confortável. Metrôs, ou mesmo grandes veículos de superfície, sei lá. A cabeça dos técnicos já deve estar trabalhando, a dos urbanistas, a dos chamados cientistas sociais.

    Hoje em dia, se leva mais tempo viajando de casa para o trabalho, do que no trabalho propriamente dito. E como os patrões exigem as suas oito horas, tem-se de sair de casa em plena madrugada e chegar em casa depois das 10 da noite. Quem mora em subúrbio conhece bem essa tragédia. Os ônibus mesmo, que poderiam ser um grande recurso, têm os seus espaços disputados furiosamente pelos carros, e se embaralham, retardam e engarrafam, na confusão geral.

    Quem sabe vai-se recorrer ao transporte aéreo, grandes helicópteros que seriam como ônibus voadores, pousando em heliportos arranjados nos tetos dos grandes edifícios? Não sei... Porque logo apareceriam helicópteros particulares, cada executivo teria o seu, de luxo, importados. O que, aliás, já está acontecendo. Eu mesma viajei num desses, a convite de uma amigo.

    Ou será que os engarrafamentos vão continuar por mais anos e anos, como os assaltos, os sequestros, os meninos de rua, as favelas e demais desgraças dos grandes ajuntamentos urbanos? Então, a solução seria mesmo acabar com os próprios grandes ajuntamentos urbanos. Voltar todo mundo a se espalhar pelo campo, só procurando os centros quando a natureza do seu trabalho o exigisse.

    Até que o campo se deteriorasse também - já que esse é o destino do homem sobre a Terra: acabar com tudo de bom e bonito que a natureza para ele criou.


Crônica de Rachel de Queiroz retirada do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Zeppelin em Santa Teresa

    A serra da Carioca vem acabar a leste nesta ponta do morro do Curvelo, onde moro. O Curvelo é um pedacinho de província metido no Rio de Janeiro. Na verdade é uma pequena província. As corografias do Brasil mentem duplamente quando ensinam que o nosso país se compõe de vinte estados. Mentem primeiro porque não se trata de estados, mas de províncias, destituídas de toda autonomia política, como o provou o episódio da última eleição presidencial; mentem segundo porque esquecem a minha provinciazinha do Curvelo.

    Rua sossegada esta, onde pela volta do dia é doce acompanhar o jogo das sombras das fachadas no tabuleiro dos paralelepípedos; as lavadeiras estendem roupa nos paredões que fecham a calçada do lado da perambeira (fica um menino de guarda para dar aviso do aparecimento dos fiscais da municipalidade); a gurizada dos cortiços (naturalmente há um que se chama Buraco Quente) brinca o dia inteiro de gude, que gude!, buraca, pião (bico de aço!), pipa (linha crua!), futebol (a trinca do Curvelo contra a trinca do Cassiano); e pela boca da noite é aqui que todos os namorados das redondezas vêm passear agarradinhos. Todo o mundo sabe da vida dos outros, mas estão acostumados. Dona Júlia diz as últimas a Dona Aninha, Dona Aninha roga pragas, amanhã estão de bem e falando mal da Dona Leonor... A província a dez minutos da avenida Rio Branco. Não é delicioso? E só houve intervenção federal uma vez, quando os comunistas quiseram reunir-se na casa do intendente Otávio Brandão para escolher os seus candidatos à sucessão presidencial às cadeiras do parlamento. Sempre a política estragando o Brasil.

    Desde que começaram a falar na viagem do "Zeppelin" ao Brasil eu fiquei curiosíssimo de ver como o Curvelo reagiria a esse acontecimento empolgante e inédito. Se um simples balão de São João levanta clamores de estádio em momento de gol! Corre daqui. corre ali, as lavadeiras largam da lixívia, as comadres interrompem o fuxico, e os meninos - já sabem:

    - Água-rás! Água-rás!

    Tira a força desse gás!

    ... Às seis e meia ouvi no meu sono um ruído de motor: autocaminhão da ladeira do Cassiano, pensei. Mas de chofre um risco forte na consciência: "Zeppelin!" Pulei da cama e abri a janela. O "Zeppelin" de fato apontava à Barra.

    Antes de vê-lo eu imaginava que não sentiria este alvoroço, tão acostumado estava a ver as fotografias. Em imaginação já o tinha representado tantas vezes em todos os pontos do Rio, - sobre a avenida, para os lados da Tijuca, em cima do meu morro, e sobretudo como eu o via agora, entrando a Barra. Entretanto o espetáculo era perturbantemente inédito, como o do primeiro cometa que vi. Assim que acontece com a mulher por que se está enrabichado. A gente viu cem vezes, mil vezes, duas mil vezes. Sabe de cor. Pois toda vez que aparece é coisa inédita, é coisa nova, é charada novíssima, enfim é "Zeppelin".

    O balão estava dividido em dois pelo cume do Pão de Açúcar. A estranha serenidade disfarçava a velocidade da marcha. Ei-lo agora sobre o canal, a pino da Fortaleza da Laje. Visão de aquário. A Laje, o Pão de Açúcar, Santa Cruz são as pedrinhas do fundo da câmara. Como a água está clara!

    A proporção que o balão avança, a luz modela-o sob todas as faces. Agora de frente é apenas um disco, um escudo cintilante.

    Mas o morro já deu o alarma! Zipilim! Zipilim! Aquele não é balão de São João... Guri nenhum está gritando: "Olha lá um balão-ã-ão!" A palavra que se ouve mais é filha-da-mãe. De repente uma correria danada pelas escadarias acima para ver o bicho do outro lado. Quando chego à porta de casa o balão está atravessando no fim da rua. Confesso que fiquei brutalmente comovido: um Zeppelin por cima da ruazinha tão cotidiana! Também neste momento ela não tem nada de cotidiano. As janelas estão cheias de carinhas e carões estremunhados. Há moças nos telhados. Um grupo de cabras dança em torno de uma vitrola portátil funcionando no meio da calçada... Vão depois falar dos desenhos do Cícero Dias! Na verdade eu estou vendo tudo como nos desenhos de Cícero. Tem um sujeito tocando sanfona trepado numa palmeira da chácara de D. Sebastião Leme! Tem mulheres nuas na platibanda das casas! Tem anjinhos tristes oferecendo rosas ao corpo da mocinha que se matou em Madureira! Tem sujeito jogando tênis com duas bolas! Tem um burro no teto de um bonde em cima dos Arcos!

    Na ponta do terreno baldio na curva do Cassiano a trinca do Curvelo está toda arrumadinha olhando o balão. Mais atenção não é possível. Digo para o "Encarnadinho", treze anos, mulatinho bonito:

    - Vai apanhar o balão, vai!

    Risinho do lado.

    - Não se pode...

    - Por quê?

    - É balão de motô!

    "Piru", dez anos, magricelíssimo, diz que "não adianta" porque o Zeppelin é de alumínio, não se pode dobrar...

    Álvaro - um dia contarei aos senhores a história deste Álvaro, nove anos, ex-entregador de carne de açougue, ex-carregador de marmita, ex-jornaleiro da Noite no Largo da carioca - interpelado por mim não dá confiança e se limita a dizer:

    - Não fala bobagem, Seu Manuel Bandeira!


Crônica de Manuel Bandeira retirado do livro Deixa que eu Conto, série Literatura em minha casa, Global Editora, São Paulo, 2003.

domingo, 25 de setembro de 2022

A Mente em Ação

    Mais graves que as viroses habituais são aquelas que têm procedência no psiquismo desvairado.

    Por ser agente da vida organizada, a mente sadia propicia o desenvolvimento das micropartículas que sustentam com equilíbrio a organização somática, assim como, através de descargas vigorosas, bombardeia os seus centros de atividade, dando curso a desarmonias inumeráveis.

    Mentes viciosas e pessimistas geram vírus que se alojam no núcleo das células e, destruindo-as, espalham-se pela corrente sanguínea, dando surgimento a enfermidades soezes.

    Além desta funesta realização, interferem na organização imunológica e, afetando-a, facultam a agressão de outros agentes destruidores, que desenvolvem síndromes cruéis e degenerativas.

    Além dos vícios que entorpecem os sentimentos relevantes do homem, perturbando-lhe a existência, o tédio e o ciúme, a violência e a queixa, entre outros hábitos perniciosos, são responsáveis pela desestruturação física e emocional da criatura.

    O tédio é resultado da ociosidade costumeira da mente acomodada e preguiçosa.

    Matriz de muitos infortúnios, responde por neuroses estranhas e depressivas, culminando com o suicídio injustificável e covarde.

    Entregue ao tédio, o paciente transfere responsabilidades e ações para os outros, deixando-se sucumbir na amargura, quando não se envenena pela revolta contra todos e tudo.

    A mente, entregue ao ciúme, fomenta acontecimentos que gostaria se realizassem, a fim de atormentar-se e atormentar, aprisionando ou perseguindo a sua vítima.

    Por sua vez, desconta os centros de equilíbrio, passando à condição de vapor dissolvente da confiança e do amor.

    A violência é distúrbio emocional, que remanesce do primitivismo das origens, facultando o combustível do ódio, que se inflama em incêndio infeliz, a devorar o ser que o proporciona.

    Quando isto não ocorre, dispara dardos certeiros nas usinas da emoção, que se destrambelha, gerando vírus perigosos que se instalam no organismo desarticulado e o vencem.

    A queixa ressuma como desrespeito ao trabalho e aos valores alheios, sempre pronta a censurar e a fiscalizar os outros, lamentando-se, enquanto vapores tóxicos inutilizam os núcleos da ação, que se enferrujam e perdem a finalidade.

    Há todo um complexo de hábitos mentais e vícios morais, prejudiciais, que agridem a vida e a desnaturam.

    É indispensável que o homem se resolva por utilizar do admirável arsenal de recursos que possui, aplicando os valores edificantes a serviço da sua felicidade.

    Vives consoante pensas e almejas, consciente ou inconscientemente.

    Conforme dirijas a mente, recolherás os resultados.

    Possuis todos os recursos ao alcance da vontade.

    Canalizando-a para o bem ou para o mal, fruirás saúde ou doença.

    Tem em mente, no entanto, que o teu destino é programado pela tua mente e pelos teus atos, dependendo de ti a direção que lhe concedas.


Retirado do livro Momentos de Felicidade; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 5ª Edição, 2014.

sábado, 17 de setembro de 2022

Correta Visão da Vida

    Quando a criatura se resolve por diluir o véu da ignorância, que encobre a realidade da vida espiritual, começa a libertar-se da mais grave cegueira, que é a propiciada pela vontade.

    Cegos não são apenas aqueles que deixaram de enxergar, senão todos quantos se recusam a ver, sendo piores os que fogem das evidências a fim de permanecerem na escuridão.

    A vida, por sua própria gênese, é de origem metafísica, possuindo as raízes poderosamente fincadas no mundo transcendental, que é o causal. Expressando-se na condensação da energia, que se apresenta em forma objetiva, não perde o seu caráter espiritual; pelo contrário, vitaliza-se por seu intermédio.

    Quando a consciência acorda e as interrogações surgem, aguardando respostas, as contingências do prazer fugaz e sem sentido cedem lugar a necessidades legítimas, que são as responsáveis pela estruturação do ser profundo, portanto, imortal.

    Simultaneamente, os valores éticos se alteram, surgindo novos conceitos e aspirações em favor dos bens duradouros, que são indestrutíveis, e passíveis de incessantes transformações pata melhor, na criatura.

    Desperta-se-lhe então a responsabilidade, e a visão otimista do progresso assenhoreia-se de sua mente, estimulando-a a crescer sem cessar. A sensibilidade se lhe aprimora e seu campo de emoções alarga-se, enriquecendo-se de sentimentos nobres, que superam as antigas manifestações inferiores, tais o azedume, a raiva, o ressentimento, a amargura, a insatisfação...

    Porque suas metas são mediatas, a confiança aumenta em torno da Divindade e as realizações fazem-se primorosas, conquistando sabedoria e amor, de que se exorna a fim de sentir-se feliz.

    Quando a criatura se encontra com a realidade espiritual, toda uma revolução se lhe opera no mundo interior.

    Dulcifica-se o seu modo de ser o torna-se afável.

    Tranquiliza-se ante quaisquer acontecimentos, mesmo os mais desgastantes, porque sabe das causalidades que elucidam todos os efeitos.

    Nunca desanima, porque suas realizações não aguardam apoio ou recompensas imediatas.

    Identifica no serviço do bem os instrumentos para conseguir a perfeita afinidade com o amor, e doa-se.

    Na meditação em torno dos desafios existenciais ilumina-se, crescendo interiormente, sem perigo de retrocesso ou parada.

    Descobre no século os motivos próprios para a revolução e enfrenta-os com alegria, dando-se conta que viver, no mundo, é aprender sempre, utilizando com propriedade cada minuto e acontecimento do cotidiano.

    Usa as bênçãos da vida, porém, não abusa, de cada experiência retirando lições que incorpora às aquisições permanentes.

    Acalma as ansiedades do sentimento, por compreender que tudo tem seu momento próprio para acontecer, e somente sucede aquilo que se encontra incurso no processo da evolução.

    Aprende a silenciar, eliminando palavras excessivas na conversação, e, logrando equilíbrio mental, produz o silêncio mais importante.

    Solidário em todas as circunstâncias, não se precipita, nem recua.

    Conquista a paz e torna-se irmão de todos.

    Quando a criatura compreende que se encontra na Terra em trânsito, realizando um programa que se estenderá além do corpo, na vida espiritual, realiza o autoencontro, e, mesmo experimenta o fenômeno da morte, defronta a vida sem sofrer qualquer perturbação ou surpresa, mergulhando na Amorosa Consciência Cósmica.

    Certamente, pensando em tal realidade, propôs Jesus: - Busca primeiro o Reino de Deus e Sua Justiça, e tudo mais te será acrescentado.

    Despertar para a vida é imperativo de urgência, que não podes desconsiderar.


Retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.