domingo, 1 de janeiro de 2023

Tua Cara

A esperança

Talvez seja o amor maior

Que a gente carrega

Dentro do peito de menino

E vaga no tempo

Que a vida lhe deu

Caminhando, jogando no mundo

Tudo que é seu

Aprendendo

No gosto da vida

A fruta mais rara

Quem me dera hoje ver tua cara

No desenho da lua minguante

Boiando no espaço

Nos faróis do expresso noturno

Que vai a São Paulo

No ruído do jato que passa

Rasgando o céu

Na colmeia

Toda lambuzada de mel

Nas encostas do Pão de Açúcar

Postal Guanabara

Quem me dera hoje ver tua cara.


Música Tua Cara de Geraldo Amaral e Carlos Fernando que abre o então 5º LP de Joanna lançado em 1983 pela Gravadora RCA e intitulado Brilho e Paixão.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Meu Melhor Conto

    Você me pergunta qual foi o melhor conto que escrevi. Indagação típica de jovens jornalistas; vocês vêm aqui, com esses pequenos gravadores, que sempre dão problema, e uma lista de perguntas - e aí querem saber qual foi o melhor conto que a gente fez, qual provocou maior controvérsia, essas coisas. Mas tudo bem: não vou me furtar a responder a essa questão. Dá mais trabalho explicar por que a gente não responde do que simplesmente responder.

    Meu melhor conto... Não está em nenhum dos meus livros, em nenhuma antologia, em nenhuma publicação. Ele está aqui, na minha memória; posso acessá-lo a qualquer momento. Posso inclusive lembras as circunstâncias em que o escrevi. Não esqueci, não. Não esqueci nada. Mesmo que quisesse esquecer, não o conseguiria.

    Eu era então um jovem escritor - faz muito tempo, portanto, que isso aconteceu. Estava concluindo o curso de Letras e acabara de publicar meu primeiro livro, recebido com muito entusiasmo pelos críticos. É uma revelação, diziam todos, e eu, que à época nada tinha de modesto, concordava inteiramente: considerava-me um gênio. Um gênio  contestador. Minhas histórias estavam impregnadas de indignação; eram verdadeiros panfletos de protesto contra a injustiça social. O que me salvava do lugar-comum era a imaginação - a imaginação sem limites que é a marca registrada da juventude literária e que, como os cabelos, desaparece com os anos.

    Mas eu não era só escritor. Era militante político. Fazia parte de um minúsculo, obscuro, mas extremado grupo de universitários. Veio o golpe de 1964, participei em manifestações de protesto, cheguei a pensar em juntar-me à guerrilha - o que certamente seria um desastre, porque eu era um garoto de classe média, mimado pelos pais, acostumado ao conforto, enfim, o antípoda do guerrilheiro. De qualquer modo, fui preso.

    Uma tragédia. Meus pais quase enlouqueceram. Fizeram o possível para me soltar, falaram com Deus e todo o mundo, com políticos, jornalistas e até generais. Inútil. O momento era de linha dura, linha duríssima, e eu estava em mais de uma lista de suspeitos. Não me soltariam de jeito nenhum.

    Fui levado para um lugar conhecido como Usina Pequena. Havia duas razões para essa denominação. Primeiro, o centro de detenção ficava, de fato, perto de uma termelétrica. Em segundo lugar, o método preferido para a tortura era, ali, o choque elétrico.

    O chefe da Usina Pequena era o Tenente Jaguar. Esse não era o seu verdadeiro nome, mas o apelido era mais que apropriado: ele tinha mesmo cara de felino, e de felino muito feroz. Ao sorrir, mostrava os caninos enormes - e isso era suficiente para dar calafrios nos prisioneiros.

    Fiquei pouco tempo na Usina Pequena, quinze dias. Mas foi o suficiente. Da cela que eu ocupava, um cubículo escuro, úmido e fétido, eu ouvia os gritos dos prisioneiros sendo torturados e entrava em pânico, perguntando-me quando chegaria minha vez. E aí uma manhã eles vieram me buscar e levaram-me para a chamada Sala do Gerador, o lugar das torturas, e ali estava o Tenente Jaguar, à minha espera, fumando uma cigarrilha e exibindo aquele sorriso sinistro. Leu meu prontuário e começou o interrogatório. Queria saber o paradeiro de um de meus professores, suspeito de ser um líder importante da guerrilha.

    Tão apavorado eu estava que teria falado - se soubesse, mesmo, onde estava o homem. Mas eu não sabia e foi o que respondi, numa voz trêmula, que não sabia. Ele me olhou e estava claramente decidindo se eu falava a verdade ou se era bom ator. Mas ali a regra era: na dúvida, a tortura. E eu fui torturado. Choques nos genitais, o método clássico. No quarto choque, desmaiei, e me levaram de volta para a cela.

    Durante dois dias ali fiquei, deitado no chão, encolhido, apavorado. No terceiro dia o carcereiro entrou na cela: o Tenente queria me ver. Implorei para que não me levasse: eu não aguento isso, vou morrer, e vocês vão se meter em confusão. Ignorando minhas súplicas, arrastou-me pelo corredor, mas não me levou para o lugar das torturas, e sim para a sala do Tenente. O que foi uma surpresa. Uma surpresa que aumentou quando o homem me recebeu gentilmente, pediu que sentasse, ofereceu-me um chá. Perguntou se eu tinha me recuperado dos choques; e aí - eu cada vez mais atônito - pediu desculpas: eu tinha de compreender que torturar era função dele, e que precisava cumprir ordens.

    Ficou um instante olhando pela janela - era uma bela manhã de primavera - e depois voltou-se para mim, anunciando que tinha um pedido a me fazer.

    Àquela altura eu não entendia mais nada. Ele tinha um pedido a me fazer? O todo-poderoso chefe daquele lugar? O cara que podia me liquidar sem qualquer explicação tinha um pedido? Estou às suas ordens, eu disse, numa voz sumida, e ele foi adiante. Eu sei que você é escritor, e um escritor muito elogiado.

    - Está em sua ficha - acrescentou, sorridente. - Nós aqui temos todas as informações sobre sua vida.

    Olhou-me de novo e acrescentou:

    - Tem uma coisa que eu queria lhe mostrar.

    Abriu uma gaveta e tirou de lá um recorte de jornal. Era uma notícia sobre um concurso de contos. Cada vez mais surpreso, li aquilo e mirei-o sem entender. Ele explicou:

    - Eu escrevo. Contos, como você. Mas tenho de admitir: não tenho um décimo de seu talento.

    Nova pausa, e continuou:

    - Quero ganhar esse concurso literário. Melhor: preciso ganhar esse concurso literário. Não me pergunte a razão, mas é muito importante para mim. E você vai me ajudar. Vai escrever um conto para mim. Posso contar com você, não é?

    E então aconteceu a coisa mais surpreendente. Eu disse que não, que não escreveria merda nenhuma para ele.

    Tão logo falei, dei-me conta do que tinha feito - e fiquei a um tempo aterrorizado e orgulhoso. Sim, eu tinha ousado resistir. Sim, eu tinha mostrado a minha fibra de revolucionário. Mas, e agora? E os choques?

    Para meu espanto, o homem começou a chorar. Chorava desabaladamente, como uma criança. E então me explicou: quem tinha mandado aquele recorte fora o seu filho, um rapaz de catorze anos que adorava o pai, e adorava as histórias que o pai escrevia.

    - Ele quer que eu ganhe o concurso, o meu filho - o Tenente, soluçando. - E eu quero ganhar o concurso. Para ele. É um rapaz muito doente, talvez não viva muito. Eu preciso lhe dar essa alegria. E só você pode me ajudar.

    Olhava-me, as lágrimas escorrendo pela face.

    O que podia eu dizer? Pedi que me arranjasse uma máquina de escrever e umas folhas de papel.

    Naquela tarde mesmo escrevi o conto. Nem precisei pensar muito; simplesmente sentei e fui escrevendo. A história brotava de dentro de mim, fluía fácil. E era um belo conto, diferente de tudo o que eu tinha escrito até então. Não falava em revolta, não satirizava opressores. Contava a história de um pai e de seu filho moribundo.

    Entreguei o conto ao Tenente, que o recebeu sem dizer palavra, sem sequer me olhar. E no dia seguinte fui solto.

    Nunca fiquei sabendo o que aconteceu depois, o resultado do concurso, nada disso. Não estava interessado; ao contrário, queria esquecer a história toda, e inclusive o conto que eu tinha escrito. O que foi inútil. A narrativa continuava dentro de mim, como continua até hoje. Se eu quisesse, poderia escrevê-la de uma sentada.

Mas não o farei. Esse conto não me pertence. É, acho, a melhor coisa que escrevi, mas não me pertence. Pertence ao Tenente, que esses dias, aliás, vi na rua: um ancião alquebrado, que anda apoiado numa bengala.

Ele me olhou e sorriu. Talvez tivesse, com gratidão, lembrado aquele episódio. Ou talvez estivesse debochando de mim. Com esses velhos torturadores, a gente nunca sabe.


(Porto Alegre, 2003)


Conto de Moacyr Scliar retirado do livro Do conto à crônica, série Literatura em Minha Casa, Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização e apresentação Heloisa Prieto.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Velho é demais

    "Sai da frente, vô!" Com esse grito, o skatista espanta um casal de velhinhos no Parque do Ibirapuera e, quase didático, ilustra um conflito de gerações. Nas ruas vizinhas, cartazes coloridos de shows de rock exibem hordas de guerreiros-mirins. Por toda parte, garotas de dezesseis anos mostram corpos que nenhuma academia produz e invadem as telas de cinema em propagandas insinuantes, como rebeldes de confecções. 

    Estamos cercados de revistas para adolescentes, moda para adolescentes, agora orgulhosamente chamados de teens. A música fatura milhões nessa faixa de mercado, e não é à toa que os pisos dos shopping centers substituem as antigas praças públicas.

    Consumo, produção, beleza e agilidade no raciocínio. Mas, então, como é que se envelhece, ou melhor, como abandonar esse grupo tão cultuado e entrar para um outro bem menos glamouroso? Há muito que a humanidade se faz essa pergunta.

    Na mitologia grega, o implacável Chrónos engolia cada um de seus filhos, mostrando o destino que nos aguarda. Quando o corpo engorda, as rugas marcam a pele, e o ritmo de produção cai, a palavra "velho" surge como sinônimo de obsoleto, desnecessário.

    O psiquiatra Carl Jung, que procurou em diversas culturas algo que pudesse ser o patrimônio comum da humanidade, compara nossa vida à trajetória do Sol. Se ao amanhecer ele vai adquirindo cada vez mais brilho, após o meio-dia, seu avançar não significa mais aumento, e sim diminuição de força. Sem dúvida, é difícil perceber que essa diminuição não representa uma desvalorização, mas uma troca de sentido. O Sol, não se imobiliza jamais. No entanto, há um número considerável de pessoas que se fixam nos ideais luminosos, que lutam pela eterna juventude, como se o entardecer não tivesse valor. Outras, ainda, apegam-se às suas conquistas e tornam-se contrárias a qualquer novidade. Passados os "bons tempos", resta apenas lembrá-los. Jung sugere que, o que o jovem precisa encontrar fora, na relação com o mundo, o homem, no entardecer da vida, deve encontrar dentro de si, e conclui: "Há uma necessidade de se reconhecer o engano das convicções defendidas até então, de sentir-se a inverdade das verdades".

    Em nossa sociedade jovem e pobre, o idoso não encontra apoio nem é valorizado como alguém experiente, capaz de perceber coisas que fogem à pressa dos mais novos. Nelson Rodrigues, em sua biografia, dedica um capítulo a esse tema. Melancólico, lembra-se da infância como o tempo em que "ainda não era degradante ser velho. O sujeito podia ter, impunemente, setenta, oitenta anos..." Aqui, com dolorida ironia, Nelson retrata o idoso brasileiro punido pelos demais membros da sociedade.

    E se aprendêssemos com a China? Esse país, que sempre honrou os velhos pela capacidade de reflexão, considera a velhice uma imagem de imortalidade e sabedoria. Talvez por isso, o grande sábio Lao-Tsé não precisou agarrar-se à juventude nem correu o risco de ser atropelado por skatistas. Impunemente e cheio de glória, ele nasceu de cabelos brancos e aspecto ancião.


(São Paulo, 1994)


Crônica de Paulo Bloise retirado do livro Do conto à crônica, série Literatura em Minha Casa, Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização e apresentação de Heloisa Prieto.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Perigo no Ar

"Cuidado com os latino-americanos: são beberrões, desordeiros e costumam lançar alarmes falsos de bombas com o objetivo de atrasar o voo!" Por incrível que pareça, essa é a recomendação que a American Airlines dava a seus funcionários até a semana passada.

Eu, ali, na sala de embarque, doido pra voltar pro Brasil, nem sabia desse preconceito, e muito menos desconfiava que estava prestes a fazer o voo mais terrível da minha vida.

Alguns dias antes da viagem, aquela bomba famosa tinha explodido no avião da TAM. No dia anterior, um ataque terrorista deixou vários mortos em Israel. O clima estava tenso no aeroporto e meu medo começou logo antes da decolagem, quando o piloto avisou no alto-falante: "Pedimos a todos que saiam do avião, levando as bagagens de mão. Esta nave está vindo do Panamá e houve uma ameaça de bomba..." Assim, com a voz mais tranquila do mundo, como quem anuncia uma faxina.

Saímos correndo do avião, uns esmagando os outros naqueles corredores fininhos. Na porta, topamos com um esquadrão de brutamontes, todos de colete preto, bigode grosso e cara de destruidor de bomba da Sessão da Tarde. Foi nessa hora que a minha mulher entrou em pânico. "Eu é que volto pra esse avião! Prefiro ir pra casa nadando". Eu também estava tremendo de medo, mas argumentei que não tínhamos escolha e, além do mais, se fôssemos nadando íamos passar muito perto do Triângulo das Bermudas.

Depois de uma hora de expectativa, os fortões saíram sorridentes do avião e fomos convidados a reembarcar. Minha mulher, jurando que nunca mais conversava comigo, sentou-se na poltrona da janela, eu no meio e um sujeito no corredor. A história acabaria por aqui se, na hora em que o avião entrou na pista, pra decolar, o cara do meu lado não tivesse aberto sua mochila preta e catado um livro grosso, de capa dura.

O sujeito olhou firme pro livro e começou a rezar numa língua esquisita. Quando reparei, as letras eram uns rabiscos incompreensíveis. Aí foi minha vez de desesperar.

"Pronto, é um terrorista árabe e vai explodir o avião!", deduzi. "Está encomendando a alma pra Alá."

Naquele instante eu vi a vó pela greta, como dizem na minha terra. Eu precisava fazer alguma coisa!

Pensei em avisar a aeromoça, mas o que é que eu ia dizer? "Socorro, tem um sujeito lendo aqui do meu lado?" Em vez disso, tive outra ideia, ainda mais patética: percebi que a luzinha do teto não estava bem direcionada para o livro, então resolvi ajeitá-la. Assim, talvez o terrorista pensasse: "Ei, esse cara é legal. Quem sabe eu deixo pra explodir o próximo avião?" Ideia ridícula, mas duvido que, no meio do pânico, você bolasse algo melhor.

Só que o terrorista nem notou meu ato cordial. Continuou murmurando suas rezas e, justo na hora em que o avião levantou voo, ele fechou o livro e os olhos. "É agora", engoli seco e esperei a explosão.

Mas não, eu tinha pelo menos que olhar bem para o rosto do meu assassino. Então tomei coragem, virei o pescoço, e, pra minha surpresa, vi que ele não era árabe: tinha na cabeça um solidéu judaico. Ou seja: o livro não era o Alcorão, era o Torá. Eu estava salvo!

Mas um segundo depois pensei melhor: o ataque terrorista de ontem foi feito pelos árabes ou pelos judeus? Quem é que sabe direito, hoje em dia?

Depois do pouso, aliviado, eu caí na gargalhada. Minha mulher não entendeu nada: "Está rindo de quê, depois de tanto susto?"

Expliquei: "Esse rapaz aqui do meu lado deve ter escutado nossa conversa e deduziu que eu era um terrorista panamenho prestes a explodir o avião. Por isso começou a rezar, pra pedir proteção..."

Assim como eu não não consigo distinguir hebraico e árabe, pra ele também português e espanhol é tudo grego. Resultado: cada um com sua paranoia, acabamos fazendo o pior voo de nossas vidas.

E a American Airlines ainda vem com esse papo de que os latino-americanos têm mania de lançar alarmes falsos com o objetivo de atrasar o voo! Ora, que petulância, isso nunca me passou pela cabeça!


(Belo Horizonte, 1997)


Crônica de Leo Cunha retirado do livro Do conto à crônica, da série Literatura em Minha Casa - Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização de Heloisa Prieto.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

O Tempo das Crônicas

Acho que foi uma espécie de provocação amistosa. Quando minha amiga soube que eu estava escrevendo crônicas, ela disparou por telefone mesmo: "Sabe o que disse um escritor, com quem eu mantenho contato, sobre as crônicas?".

Fiquei em silêncio, pressentindo as críticas que viriam.

"Ele acredita que são ficções malfeitas. Um tipo de conto preguiçoso, ou uma história de pouco fôlego".

Fiquei contente. Há tempo que eu desejava escrever sobre o tema, e o desafio me incentivou. De início, concordei com o "pouco fôlego". Sempre comparo esse gênero literário à fotografia, técnica que se propõe a registrar instantâneos. As crônicas, via de regra, não se metem a grandes narrativas, como um longa-metragem. Isso fica para os romances ou aos seus irmãos menores, as novelas. Olha-se uma situação, escuta-se um caso, recorda-se um episódio, e eis o material para a reflexão. Tudo, literalmente, funciona como assunto. Serve o trânsito? Serve. A impunidade dos ministros, os campeonatos esportivos? Servem também. Quem não leu ainda À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, está perdendo uma ótima análise da paixão dos brasileiros pelo futebol.

Coisa curiosa: tanto faz se o fato principal, o foco de interesse, ocorreu no Afeganistão ou na casa do vizinho. Nesse sentido, O Nascimento da Crônica, artigo escrito por Machado de Assis em 1877, é memorável. Nele, o mestre destaca que a maneira certa de se começar uma crônica é por uma trivialidade.

Mas quem teria inventado esse gênero literário, e quando isso teria ocorrido? Machado ironiza: foi no exato momento em que apareceram as primeiras vizinhas. Elas se sentaram à calçada no final do dia e, provavelmente, disseram: "Que calor! Que desenfreado calor!". Então, do clima, a conversa foi para as plantações e aos demais acontecimentos que as circulavam.

Volto para a provocação da minha amiga e pergunto: será que a crônica é realmente um gênero menor? Como um advogado de defesa, fui pesquisar e destaco os trechos mais importantes que encontrei sobre o assunto.

No Dicionário Aurélio deparei com várias definições para crônica. Em resumo, ela é considerada um texto jornalístico escrito de forma livre e pessoal, cujos temas são ideias, fatos da atualidade ou do cotidiano. Foi justamente o caráter jornalístico que me chamou a atenção e lembrou-me um livro excelente sobre a história da imprensa, escrito por Jacques Wolgensinger.

Segundo o autor, a imprensa teria surgido para atender à necessidade que o ser humano tem de informar-se sobre o mundo que o cerca. Porém, as notícias, além de orientar as pessoas, deveriam oferecer algo mais: "o prazer de descobrir".

Nutrindo a minha obsessão de advogado, palpito que a crônica - sendo "livre e pessoal" - pode explorar mais esse prazer do que o texto jornalístico, limitado à informação. Jacques considera os poetas gregos e os trovadores da Idade Média ancestrais do jornalismo moderno. E (por que não?) excelentes cronistas, já que em seus cantos eles informavam para o povo fatos míticos mesclados ao cotidiano.

Bem, devo confessar uma coisa: quanto mais mergulhava na história da imprensa, mais maravilhado eu ficava. Quem imaginaria que o primeiro jornal do Ocidente, o Acta Diurna romano, já se utilizava das crônicas? E o que pensar do Commentarius Rerum Novarum, que à época de Júlio César conseguia ser semanal? Detalhe: eram feitos dez mil exemplares, escritos à mão por escravos.

Pulo, por uma questão de espaço, centenas de anos e encontro mais um elemento para defesa da crônica. Estamos no século XIX, as publicações são diárias, a distribuição é ampla, notícias voam entre os continentes. Inicia-se o império dos grandes jornais com a árdua tarefa de conquistar leitores.

A necessidade furiosa de vender jornais acirrou a competição entre os impressos. O francês La Presse, em 1836, dá um golpe fatídico, corta seu preço pela metade e duplica suas vendas. A concorrência, percebendo o seu sucesso, logo o imita. Girardin, o gênio do La Presse, não se abate e apela à qualidade, convocando os grandes escritores da época. Mas para quê? Para escreverem crônicas!

Sim, e eu considero este o meu argumento final: o que dizer de Balzac, Victor Hugo, Alexandre Dumas escrevendo essas "ficções malfeitas"? Pois foi isso o que ocorreu. A cada dia, uma crônica diferente aparecia na primeira página para estimular os leitores a lerem o resto do jornal.

Felizmente, essa competição entre os gigantes do jornalismo se manteve. Trouxe frutos, deu exemplos para que outros países os imitassem. Graças a ela, nossos melhores escritores, cujos textos podemos encontrar em coletâneas, retrataram suas épocas e costumes. A palavras "crônica" está ligada ao tempo (do grego chrónos) e ela funciona como um registro do presente. Basta procurar nos jornais de hoje. Basta procurar nos jornais de hoje. Os grandes cronistas passam por lá.


Texto de Paulo Bloise retirado do livro Do Conto à Crônica, série Literatura em Minha Casa - Volume 2 - Crônica e Conto. Organização e apresentação de Heloisa Prieto, Salamandra Editora, São Paulo, 2003.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Tristeza Perturbadora

Conquanto brilhe o sol da oportunidade feliz, abrindo campo para a ação e para a paz, a sombra teimosa da tristeza envolve-te em injustificável depressão.

Gostarias de arrancar das carnes da alma este espinho cravado que te faz sofrer, e, por não o conseguires, deixas-te abater.

Conjecturas a respeito da alegria, do corpo jovem, dos prazeres convidativos, e lamentas não poder fruir tudo quanto anelas.

A tristeza, porém, é doença que, agasalhada, piora o quadro de qualquer aflição.

A sua sombra densa altera o contorno dos fatos e das coisas, apresentando fantasmas onde existe vida e desencanto no lugar em que está a esperança.

Ela responde pela instalação de males sutis que terminam por desequilibrar o organismo físico e a maquinaria emocional.

Luta contra a tristeza, reeducando-te mentalmente.

Não dês guarida emocional às suas insinuações.

Ninguém é tão ditoso quanto supões ou te fazem crer.

A Terra é o planeta-escola de aprendizes incompletos, inseguros.

A cada um falta algo, que não conseguirá conquistar.

Resultado do próprio passado espiritual, o homem sente sempre a ausência do que malbaratou.

A escassez de agora é consequência do desperdício de outrora.

A aspiração tormentosa é prova a que todos estão submetidos, a fim de que valorizem melhor aquilo de que dispõem e a outros falta.

Lamentas não ter algo que vês noutrem, todavia, alguém ambiciona o que possuis e não dás valor.

Resigna-te, pois, e alegra-te com tudo quanto te enriquece a existência neste momento.

Aprende a ser grato à vida e àqueles que te envolvem em ternura, saindo da tristeza pertinaz para o portal de luz, avançando pelo rumo novo.

Jesus, que é o "Espírito mais perfeito" que veio à Terra, sem qualquer culpa, foi incompreendido, embora amando; traído, apesar de amar, e crucificado, não obstante amasse...

Desse modo, sorri e conquista o teu espaço, esquecendo o teu espinho e arrancando aquele que está ferindo o teu próximo.

Oportunamente descobrirás que, enquanto te esqueceste da própria dor, lenindo a dos outros, superaste-a em ti, conseguindo a plenitude da felicidade, que agora te rareia.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Trecho 33 do Livro do Desassossego

Nos primeiros dias do outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardamos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.

Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.

Mas com isso o trabalho não se atrasa: anima-se. Já não trabalhamos; recreamo-nos com o assunto a que estamos condenados. E, de repente, pela folha vasta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das tias antigas alberga, fechada contra o mundo, o chá das dez horas sonolentas, e o candeeiro de petróleo da minha infância perdida brilhando somente sobre a mesa de linho obscurece-me, com a luz, a visão do Moreira, iluminado a uma eletricidade negra infinitas para além de mim. Trazem o chá - é a criada mais velha que as tias que o traz com os restos do sono e o mau humor paciente da ternura da velha vassalagem - e eu escrevo sem errar uma verba ou uma soma através de todo o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a noites longínquas, impolutas de dever e de mundo, virgens de mistério e de futuro.

E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar... Ergo do livro, que certo lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação.


Trecho nº 33 do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Companhia das Letras/Editora Schwarcz, São Paulo, 2001.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Trecho 27 do Livro do Desassossego

    A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humana, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

    Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

    Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos surgirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

    Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.


Trecho 27 do Livro do Desassossego. Fernando Pessoa, Companhia das Letras/Editora Schwarcz, São Paulo, 2001.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Sexo e Vida

Considerando a insensatez que comanda as paixões humanas inferiores, ressalta a loucura do sexo, na condição de produto exposto à clientela alucinada, que se posta à entrada dos supermercados da vida.

Desnaturado, na sua função essencial, torna-se, a cada dia, produto de exagerado consumo, tal a liberalidade que recebe e a má informação de que desfruta a respeito das suas finalidades.

Por isso mesmo, diante da exorbitante aquisição dos ingredientes para o seu abuso, multiplicam-se os usuários frustrados e desiludidos, descambando para os tóxicos, o alcoolismo, a sandice, a depressão e a morte prematura.

Confunde-se o sexo com a civilização, qual se esta, a fim de caracterizar-se como progressista, devesse assentar os seus alicerces no lodaçal da promiscuidade ora estabelecida.

Licenças morais, em detrimento de consciência para a ação, abrem os precedentes do abuso sexual, tornando os indivíduos cansados e ansiosos, que buscam prazeres nas sensações estafantes, enquanto abandonam as emoções agradáveis da alegria e da plenitude.

(...) E o sexo governa as aspirações humanas, apresentando-se como o fator principal a viver e a meta maior a ser lograda a qualquer preço, não raro, responsabilizando-se por crimes inomináveis, que se tornam ou não conhecidos, algemando o algoz à corrente do remorso que atravessa o túmulo e ressurge em funestas reencarnações futuras.

Dando amplitude genésica ao sexo, que é a sua função primeira, encontramo-lo na força de atração mantida pela vida.

No microcosmo, ei-lo na corrente de energia que une os cristais, tanto quanto no macrocosmo, fazendo-se presente na energia de equilíbrio que fixa os astros nas suas órbitas.

No homem, ele é também o agente da inspiração e da beleza, da coragem e do amor, devendo ter as suas expressões canalizadas para os ideais de sustentação da cultura, na filosofia, na ciência, na religião, na sociedade de libertação do seres.

Bem-conduzida, a força sexual é vida, enquanto que, deixada ao desrespeito, torna-se veneno e pantanal, que vitimam sem piedade quem a execra através do mau uso.

Doenças geradas pelo psiquismo desequilibrado do homem, que fortalece vírus de rápida proliferação e acelerada mutação de estrutura, convidam a sociedade contemporânea a uma mudança de comportamento moral, na área sexual; assim readquirindo consciência dos seus deveres de criaturas inteligentes, cujas funções estão colocadas para o serviço da vida e não desta para aquelas.

Educa a mente, disciplina a vontade, corrige os hábitos e utiliza-te do sexo como fonte de inspiração e reprodução, de criatividade e ação enobrecida, sob o comando do amor, que é a força apropriada para dirigi-lo e dignificá-lo.

Sexo e vida são termos da mesma realidade corporal. Conforme te utilizares, serás senhor ou escravo de um como de outra.

Tem cuidado! 


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª edição, 2014.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O Aluno

 São meus todos os versos já cantados:

A flor, a rua, as músicas da infância,

O líquido momento e os azulados

Horizontes perdidos na distância.


Intacto me revejo nos mil lados

De um só poema. Nas lâminas da estância,

Circulam as memórias e as substância

De palavras, de gestos isolados.


São meus também os líricos sapatos

De Rimbaud, e no fundo dos meus atos

Canta a doçura triste de Bandeiro.


Drummond me empresta sempre o seu bigode.

Com Neruda, meu pobre verso explode

E as borboletas dançam na algibeira.


Poema de José Paulo Paes retirado do livro Ofício de Poeta, da série Literatura em minha casa - Volume 1 - Poesia, Editora Scipione, São Paulo, 2003.