quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Perigo no Ar

"Cuidado com os latino-americanos: são beberrões, desordeiros e costumam lançar alarmes falsos de bombas com o objetivo de atrasar o voo!" Por incrível que pareça, essa é a recomendação que a American Airlines dava a seus funcionários até a semana passada.

Eu, ali, na sala de embarque, doido pra voltar pro Brasil, nem sabia desse preconceito, e muito menos desconfiava que estava prestes a fazer o voo mais terrível da minha vida.

Alguns dias antes da viagem, aquela bomba famosa tinha explodido no avião da TAM. No dia anterior, um ataque terrorista deixou vários mortos em Israel. O clima estava tenso no aeroporto e meu medo começou logo antes da decolagem, quando o piloto avisou no alto-falante: "Pedimos a todos que saiam do avião, levando as bagagens de mão. Esta nave está vindo do Panamá e houve uma ameaça de bomba..." Assim, com a voz mais tranquila do mundo, como quem anuncia uma faxina.

Saímos correndo do avião, uns esmagando os outros naqueles corredores fininhos. Na porta, topamos com um esquadrão de brutamontes, todos de colete preto, bigode grosso e cara de destruidor de bomba da Sessão da Tarde. Foi nessa hora que a minha mulher entrou em pânico. "Eu é que volto pra esse avião! Prefiro ir pra casa nadando". Eu também estava tremendo de medo, mas argumentei que não tínhamos escolha e, além do mais, se fôssemos nadando íamos passar muito perto do Triângulo das Bermudas.

Depois de uma hora de expectativa, os fortões saíram sorridentes do avião e fomos convidados a reembarcar. Minha mulher, jurando que nunca mais conversava comigo, sentou-se na poltrona da janela, eu no meio e um sujeito no corredor. A história acabaria por aqui se, na hora em que o avião entrou na pista, pra decolar, o cara do meu lado não tivesse aberto sua mochila preta e catado um livro grosso, de capa dura.

O sujeito olhou firme pro livro e começou a rezar numa língua esquisita. Quando reparei, as letras eram uns rabiscos incompreensíveis. Aí foi minha vez de desesperar.

"Pronto, é um terrorista árabe e vai explodir o avião!", deduzi. "Está encomendando a alma pra Alá."

Naquele instante eu vi a vó pela greta, como dizem na minha terra. Eu precisava fazer alguma coisa!

Pensei em avisar a aeromoça, mas o que é que eu ia dizer? "Socorro, tem um sujeito lendo aqui do meu lado?" Em vez disso, tive outra ideia, ainda mais patética: percebi que a luzinha do teto não estava bem direcionada para o livro, então resolvi ajeitá-la. Assim, talvez o terrorista pensasse: "Ei, esse cara é legal. Quem sabe eu deixo pra explodir o próximo avião?" Ideia ridícula, mas duvido que, no meio do pânico, você bolasse algo melhor.

Só que o terrorista nem notou meu ato cordial. Continuou murmurando suas rezas e, justo na hora em que o avião levantou voo, ele fechou o livro e os olhos. "É agora", engoli seco e esperei a explosão.

Mas não, eu tinha pelo menos que olhar bem para o rosto do meu assassino. Então tomei coragem, virei o pescoço, e, pra minha surpresa, vi que ele não era árabe: tinha na cabeça um solidéu judaico. Ou seja: o livro não era o Alcorão, era o Torá. Eu estava salvo!

Mas um segundo depois pensei melhor: o ataque terrorista de ontem foi feito pelos árabes ou pelos judeus? Quem é que sabe direito, hoje em dia?

Depois do pouso, aliviado, eu caí na gargalhada. Minha mulher não entendeu nada: "Está rindo de quê, depois de tanto susto?"

Expliquei: "Esse rapaz aqui do meu lado deve ter escutado nossa conversa e deduziu que eu era um terrorista panamenho prestes a explodir o avião. Por isso começou a rezar, pra pedir proteção..."

Assim como eu não não consigo distinguir hebraico e árabe, pra ele também português e espanhol é tudo grego. Resultado: cada um com sua paranoia, acabamos fazendo o pior voo de nossas vidas.

E a American Airlines ainda vem com esse papo de que os latino-americanos têm mania de lançar alarmes falsos com o objetivo de atrasar o voo! Ora, que petulância, isso nunca me passou pela cabeça!


(Belo Horizonte, 1997)


Crônica de Leo Cunha retirado do livro Do conto à crônica, da série Literatura em Minha Casa - Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização de Heloisa Prieto.

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