sábado, 31 de dezembro de 2022

Meu Melhor Conto

    Você me pergunta qual foi o melhor conto que escrevi. Indagação típica de jovens jornalistas; vocês vêm aqui, com esses pequenos gravadores, que sempre dão problema, e uma lista de perguntas - e aí querem saber qual foi o melhor conto que a gente fez, qual provocou maior controvérsia, essas coisas. Mas tudo bem: não vou me furtar a responder a essa questão. Dá mais trabalho explicar por que a gente não responde do que simplesmente responder.

    Meu melhor conto... Não está em nenhum dos meus livros, em nenhuma antologia, em nenhuma publicação. Ele está aqui, na minha memória; posso acessá-lo a qualquer momento. Posso inclusive lembras as circunstâncias em que o escrevi. Não esqueci, não. Não esqueci nada. Mesmo que quisesse esquecer, não o conseguiria.

    Eu era então um jovem escritor - faz muito tempo, portanto, que isso aconteceu. Estava concluindo o curso de Letras e acabara de publicar meu primeiro livro, recebido com muito entusiasmo pelos críticos. É uma revelação, diziam todos, e eu, que à época nada tinha de modesto, concordava inteiramente: considerava-me um gênio. Um gênio  contestador. Minhas histórias estavam impregnadas de indignação; eram verdadeiros panfletos de protesto contra a injustiça social. O que me salvava do lugar-comum era a imaginação - a imaginação sem limites que é a marca registrada da juventude literária e que, como os cabelos, desaparece com os anos.

    Mas eu não era só escritor. Era militante político. Fazia parte de um minúsculo, obscuro, mas extremado grupo de universitários. Veio o golpe de 1964, participei em manifestações de protesto, cheguei a pensar em juntar-me à guerrilha - o que certamente seria um desastre, porque eu era um garoto de classe média, mimado pelos pais, acostumado ao conforto, enfim, o antípoda do guerrilheiro. De qualquer modo, fui preso.

    Uma tragédia. Meus pais quase enlouqueceram. Fizeram o possível para me soltar, falaram com Deus e todo o mundo, com políticos, jornalistas e até generais. Inútil. O momento era de linha dura, linha duríssima, e eu estava em mais de uma lista de suspeitos. Não me soltariam de jeito nenhum.

    Fui levado para um lugar conhecido como Usina Pequena. Havia duas razões para essa denominação. Primeiro, o centro de detenção ficava, de fato, perto de uma termelétrica. Em segundo lugar, o método preferido para a tortura era, ali, o choque elétrico.

    O chefe da Usina Pequena era o Tenente Jaguar. Esse não era o seu verdadeiro nome, mas o apelido era mais que apropriado: ele tinha mesmo cara de felino, e de felino muito feroz. Ao sorrir, mostrava os caninos enormes - e isso era suficiente para dar calafrios nos prisioneiros.

    Fiquei pouco tempo na Usina Pequena, quinze dias. Mas foi o suficiente. Da cela que eu ocupava, um cubículo escuro, úmido e fétido, eu ouvia os gritos dos prisioneiros sendo torturados e entrava em pânico, perguntando-me quando chegaria minha vez. E aí uma manhã eles vieram me buscar e levaram-me para a chamada Sala do Gerador, o lugar das torturas, e ali estava o Tenente Jaguar, à minha espera, fumando uma cigarrilha e exibindo aquele sorriso sinistro. Leu meu prontuário e começou o interrogatório. Queria saber o paradeiro de um de meus professores, suspeito de ser um líder importante da guerrilha.

    Tão apavorado eu estava que teria falado - se soubesse, mesmo, onde estava o homem. Mas eu não sabia e foi o que respondi, numa voz trêmula, que não sabia. Ele me olhou e estava claramente decidindo se eu falava a verdade ou se era bom ator. Mas ali a regra era: na dúvida, a tortura. E eu fui torturado. Choques nos genitais, o método clássico. No quarto choque, desmaiei, e me levaram de volta para a cela.

    Durante dois dias ali fiquei, deitado no chão, encolhido, apavorado. No terceiro dia o carcereiro entrou na cela: o Tenente queria me ver. Implorei para que não me levasse: eu não aguento isso, vou morrer, e vocês vão se meter em confusão. Ignorando minhas súplicas, arrastou-me pelo corredor, mas não me levou para o lugar das torturas, e sim para a sala do Tenente. O que foi uma surpresa. Uma surpresa que aumentou quando o homem me recebeu gentilmente, pediu que sentasse, ofereceu-me um chá. Perguntou se eu tinha me recuperado dos choques; e aí - eu cada vez mais atônito - pediu desculpas: eu tinha de compreender que torturar era função dele, e que precisava cumprir ordens.

    Ficou um instante olhando pela janela - era uma bela manhã de primavera - e depois voltou-se para mim, anunciando que tinha um pedido a me fazer.

    Àquela altura eu não entendia mais nada. Ele tinha um pedido a me fazer? O todo-poderoso chefe daquele lugar? O cara que podia me liquidar sem qualquer explicação tinha um pedido? Estou às suas ordens, eu disse, numa voz sumida, e ele foi adiante. Eu sei que você é escritor, e um escritor muito elogiado.

    - Está em sua ficha - acrescentou, sorridente. - Nós aqui temos todas as informações sobre sua vida.

    Olhou-me de novo e acrescentou:

    - Tem uma coisa que eu queria lhe mostrar.

    Abriu uma gaveta e tirou de lá um recorte de jornal. Era uma notícia sobre um concurso de contos. Cada vez mais surpreso, li aquilo e mirei-o sem entender. Ele explicou:

    - Eu escrevo. Contos, como você. Mas tenho de admitir: não tenho um décimo de seu talento.

    Nova pausa, e continuou:

    - Quero ganhar esse concurso literário. Melhor: preciso ganhar esse concurso literário. Não me pergunte a razão, mas é muito importante para mim. E você vai me ajudar. Vai escrever um conto para mim. Posso contar com você, não é?

    E então aconteceu a coisa mais surpreendente. Eu disse que não, que não escreveria merda nenhuma para ele.

    Tão logo falei, dei-me conta do que tinha feito - e fiquei a um tempo aterrorizado e orgulhoso. Sim, eu tinha ousado resistir. Sim, eu tinha mostrado a minha fibra de revolucionário. Mas, e agora? E os choques?

    Para meu espanto, o homem começou a chorar. Chorava desabaladamente, como uma criança. E então me explicou: quem tinha mandado aquele recorte fora o seu filho, um rapaz de catorze anos que adorava o pai, e adorava as histórias que o pai escrevia.

    - Ele quer que eu ganhe o concurso, o meu filho - o Tenente, soluçando. - E eu quero ganhar o concurso. Para ele. É um rapaz muito doente, talvez não viva muito. Eu preciso lhe dar essa alegria. E só você pode me ajudar.

    Olhava-me, as lágrimas escorrendo pela face.

    O que podia eu dizer? Pedi que me arranjasse uma máquina de escrever e umas folhas de papel.

    Naquela tarde mesmo escrevi o conto. Nem precisei pensar muito; simplesmente sentei e fui escrevendo. A história brotava de dentro de mim, fluía fácil. E era um belo conto, diferente de tudo o que eu tinha escrito até então. Não falava em revolta, não satirizava opressores. Contava a história de um pai e de seu filho moribundo.

    Entreguei o conto ao Tenente, que o recebeu sem dizer palavra, sem sequer me olhar. E no dia seguinte fui solto.

    Nunca fiquei sabendo o que aconteceu depois, o resultado do concurso, nada disso. Não estava interessado; ao contrário, queria esquecer a história toda, e inclusive o conto que eu tinha escrito. O que foi inútil. A narrativa continuava dentro de mim, como continua até hoje. Se eu quisesse, poderia escrevê-la de uma sentada.

Mas não o farei. Esse conto não me pertence. É, acho, a melhor coisa que escrevi, mas não me pertence. Pertence ao Tenente, que esses dias, aliás, vi na rua: um ancião alquebrado, que anda apoiado numa bengala.

Ele me olhou e sorriu. Talvez tivesse, com gratidão, lembrado aquele episódio. Ou talvez estivesse debochando de mim. Com esses velhos torturadores, a gente nunca sabe.


(Porto Alegre, 2003)


Conto de Moacyr Scliar retirado do livro Do conto à crônica, série Literatura em Minha Casa, Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização e apresentação Heloisa Prieto.

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