terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Do tamanho de um irmão

    Tinha um irmão pequeno, e mais não tinha. Há muito tempo, desde a morte dos pais, haviam ficado só os dois naquela praia deserta, rodeada de montanhas. Pescavam, caçavam, colhiam frutos e sentiam-se felizes.

    Na verdade, tão pequeno era o outro, cabendo na palma da sua mão, que o mais velho achava natural tomar para si todas as tarefas. Embora sem nunca descuidar-se do irmão, delicado e único em seu minúsculo tamanho.

    Nada fazia, que o levasse junto. Se era pescaria, lá se iam mar adentro, o maior metido na água até as coxas, o menor bem firme a cavalo da sua orelha, ambos debruçados sobre a transparência, espiando o momento em que o peixe se aproximaria e, zapt!, estaria preso na armadilha das mãos.

    Se era caça, partiam para o mato, o pequeno bem acomodado no alforje de couro, o grande andando em passos compridos por entre arbustos, à procura de qualquer animal selvagem que garantisse uma refeição, ou de frutas sumarentas que refrescassem a boca.

    Nada faltava aos dois irmãos. Mas à noite, sentados diante do fogo, relembravam o passado, quando os pais ainda eram vivos. E a casa ao redor parecia encher-se de vazio. Então, quase sem perceber, começavam a falar de um mundo para lá das montanhas, perguntando-se como seria, se teria gente, e pondo-se a inventar o que essa gente faria.

    De invenção em invenção, as conversas se ampliavam, histórias surgiam ligando-se umas às outras, prolongando-se até a madrugada. E, mesmo de dia, os dois irmãos só pensavam em como ia ser bom, ao escurecer, sentar diante do fogo e falar do mundo que não conheciam. A noite foi ficando melhor que o dia, a imaginação mais sedutora que a realidade.

    Até que uma vez, o sol quase raiando, disse o pequeno:

    - Por que não vamos lá?

    E o mais velho surpreendeu-se de nunca ter pensado em coisa tão evidente.

    Não demoraram muito nos preparativos. Arrumaram alguma comida, pegaram peles para enfrentar o frio das montanhas, encostaram a porta. E se puseram a caminho.

    Montado na cabeça do irmão, segurando com firmeza as rédeas do seu cabelo, ia o pequeno sentindo-se valente como se ele também fosse alto e poderoso. Montada do irmão, pisando com firmeza terras que aos poucos se faziam desconhecidas, ia o maior, sentindo-se estremecer por dentro, como se ele também fosse pequeno e delicado. Mas cantavam os dois, estavam juntos, e aquela era sua mais linda aventura.

    Depois de alguns dias de marcha, o chão deixou de ser plano, começou a encosta da montanha. Subiram por caminhos que animais selvagens haviam aberto antes deles, inventaram atalhos. Do alto, o pequeno indicava os rumos mais fáceis. E o grande agarrava-se nas pedras, contornava valões, beirava precipícios. O vento cada dia mais frio unhava-lhes o rosto. Nuvens abafavam seu canto. Os dois acampavam à noite entre rochas, enrolados nas peles. Mas de dia continuavam subindo.

    Tanto subiram, que um dia, de repente, não houve mais o que subir. Tinham chegado na crista da montanha. E de cima, extasiados, olharam afinal o outro lado do mundo.

    Era bonito, o outro lado. Tão pequeno, na distância. Todo arrumado. As encostas desciam suaves até os vales, e os vales plantados em hortas e campos eram pintalgados de aldeias, casinhas e umas pessoinhas que, ao longe, se moviam.

    Alegres, os dois irmãos começaram a descer. Desceram e desceram, por caminhos agora mais fáceis, traçados por outros pés humanos. Mas,  estranhamente, por mais que avançassem, as casas e as pessoas não pareciam crescer tanto quanto haviam esperado. Eles estavam cada vez mais perto, e os outros continuavam pequenos. Tão pequenos, talvez, quanto o irmão que, encarapitado no alto, olhava surpreso.

    Estavam quase chegando à primeira aldeia, quando ouviram um grito, depois outro, e vieram todas aquelas pessoinhas correrem para dentro de suas casas, fechando portas e janelas.

    Sem entender ao certo o que estava acontecendo, o irmão mais velho baixou o pequeno até o chão. E este, encontrando-se pela primeira vez num mundo do seu tamanho, encheu o peito, levantou bem a cabeça e pisando com determinação caminhou até a casa mais próxima. Bateu à porta, esperou.

    Através da fresta que pouco a pouco se abriu, dois olhos exatamente à altura dos seus espiaram. Silêncio atrás da porta. Mas logo também os batentes da janela se afastaram de leve, deixando espaço para a curiosidade brilhante de mais dois olhos. E em cada casa outras frestas se abriram, portas e janelas estremecendo como asas, luzir de olhares. A princípio receosas, protegidas entre os ombros, depois mais afoitas, esticando-se, surgiram cabeças de homens, de mulheres e crianças.

    Cabeças pequenas, todas elas minúsculas como a do seu irmão, pensou o maior, enquanto o entendimento lutava para chegar até ele. Não havia ninguém ali que fosse grande, do seu próprio tamanho. E, certamente, assim era também nas aldeias vizinhas, nas casas todas que ele havia acreditado serem pequenas por causa da distância.

    O mundo, descobriu num súbito susto, ao compreender enfim a realidade, era a medida do seu irmão.

    Então viu que este, tendo falado com as pessoas da casa, voltava até ele estendendo-lhe a mão. O irmão, que sempre lhe parecera tão frágil, o chamava agora com doce firmeza. E ele inclinou-se até tocar a mãozinha, deixando-se conduzir à gente da aldeia, frágil gigante que nesse mundo se tornava único.


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Longe Como o Meu Querer, série Sinal Aberto, Editora Ática, São Paulo, 1997.

Nenhum comentário:

Postar um comentário