sábado, 28 de julho de 2012

Antoninha

                     Bartyra Soares

      No final da rua, num terreno da prefeitura, destoando da paisagem suntuosa da Boa Viagem, lá estava o quarto de Antoninha. Era um exíguo espaço, uma única porta circundada por uma trepadeira de flores miúdas - nada mais.
      Todas as manhãs, com saias de baiana superpostas uma sobre as outras, o branco contrastando com a pele acobreada, os pés nus, de turbante e colares coloridos, Antoninha dançava quase flutuante pela rua, entoando canções que afirmavam ter ter suas raízes na voz das pretas escravas - suas antepassadas. Por vezes executava estranhos passos que ninguém jamais soube se acompanhavam o ritmo do vento ou das ondas espraiando-se ali perto.
      Todo aquele bamboleio enlevava os moradores da rua que saíam para a caminhada ou espreitavam-na das janelas dos edifícios e casas. Era um bailado de pássaro, ondulante, suave, os pés mal tocando o chão, como se fossem deslizar no horizonte que delimitava o verde-azul da distância.
       Não se sabia se Antoninha chegara a Boa Viagem com suas ruas asfaltadas, de mansões e edifícios luxuosos. Invadira o terreno e instalara-se sob velhas caixas de papelão, pedaços de madeira e lona.
       Na verdade, havia sido ela uma das primeiras moradoras daquela rua. Quando edifícios e casas foram construídos, os primeiros moradores olhavam-na constrangidos, intranquilos, cheios de restrições.
       Mas logo acostumaram-se à sua presença discreta. Enfim, ela era uma espécie de patrimônio da rua. Não raro sua dança se estendia até as avenidas adjacentes. Ninguém se atrevia a enxotá-la. Havia aquele cantar de palavras enigmáticas, o bailado de insuspeitada beleza.
        Alimentava-se do que lhe ofereciam às portas, a todos chamando de preto ou preta. De poucas palavras, raramente saía de seu mutismo para exibir aos passantes, amarelados papéis catados nos monturos assegurando que eram cartas de políticos influentes a ela endereçadas. Um dia, alguém providenciara a contrução daquele minúsculo quarto e a partir de então, à noite, viam-na sentada à soleira, balbuciando preces, ou quem sabe? Talvez dialogando com seres só por ela reconhecidos, os olhos cheios de tristeza acompanhando a trajetória da lua.
       Entretanto, ficava profundamente inquieta quando à guisa de brincadeira perguntavam-lhe pelo prédio. Comentava-se ser o manicômio de onde ainda muito jovem evadira-se para escapar do estrangulamento de uma louca.
       Naquelas ocasiões, recolhia-se ao seu quarto com uma dor inalcançável dentro de si, diluindo-se em lágrimas e não aparecia sequer para apanhar algum prato de comida deixado à sua porta.
        Outro fato que desnorteava era quando alguns meninos assediavam-na perguntando-lhe, maliciosos, se já havia pago o condomínio do quarto.
         - Condomínio? - Os olhos escancaravam-se aflitos.
         - Sim, Antoninha. Todo mundo paga. E retiravam-se às gargalhadas.
         Ela postava-se ainda mais silenciosa. a palavra girando dentro do seu corpo como uma ferida semovente, dilacerando-lhe as entranhas:
          - Condomínio?! Condomínio?!
          Porém, mal amanhecia, esquecida de tudo, seguia outra vez pela rua cantarolando suas toadas, bailando ao ritmo das ondas (ou do vento?). As saias esvoaçantes, um meio-sorriso abrindo clareira entre as canções, o sol naufragando-lhe nos olhos muito abertos.
          Uma noite, aproximou-se dela um homem maltrapilho e não foram necessárias palavras. Antoninha retirou o olhar da lua fitando os dele e logo estavam abraçados.
          Certa manhã, foram vistos um defronte ao outro, ela tentando ensinar-lhe alguns passos de dança. O homem, desajeitado, sem ritmo, a barriga desdobrando-se sobre a bermuda rota arrastava os pés, os braços abertos, a cabeça inclinada. A cena sacudiu alguns dos espectadores para risadas incontroláveis e a outros deixou imersos num silêncio imposto pela compaixão. Só a voz de Antoninha enchia de suavidade a rua. Fora um canto tão triste que mais pareceu uma súplica fluindo de uma flauta doce.
          Aquela foi a última vez que o viram. Quando indagada sobre ele, era lacônica:
          - Quem não tem coração de passarinho não aprende a voar.
          - Voar, Antoninha?
          Mas o silêncio era um felino de passos mansos esgueirando-se de seu olhar deixando os curiosos sem mais perguntas.
          E assim, à noite, voltou a sentar-se à porta do quartinho, seguindo, os olhos fiando água, o itinerário da lua.
          Numa manhã, o sol já escalara alguns patamares no caminho das horas e Antoninha não apareceu. O vento redemoinhava nas árvores, arrancando-lhes folhas e o mar jogava-se afoito por sobre o calçadão como que, ambos a reclamarem daquela ausência.
          Alguns moradores aproximaram-se do seu quarto e empurraram a porta semicerrada: estava vazio. No chão algumas saias, os colares e o turbante soltos em desalinho.
          De imediato a rua inteira soube e começaram a surgir as conjeturas. O que acontecera? Teria sido a polícia que, numa ronda, a encontrara com seus passos de bailarina vagando pela noite? Falava-se que possuía alguns parentes. Tinham sido eles que a vieram buscar abrasados pelo remorso? Ou ela teria sido vítima da sanha desvairada de algum marginal? daquele maltrapilho que com ela dividira algumas noites de amor?
          - Quem não tem coração de passarinho... - Relembraram alguns.
          Um meninozinho explicava a todo momento, nervoso, as mãos agitadas atritando-se uma de encontro à outra, como se a ausência de Antoninha fosse uma tragédia para a humanidade:
           - Juro! Nunca mais perguntei a ela pelo prédio!
           Sem respostas, com o passar do tempo, os habitantes da rua, imersos nas suas atividades foram-na esquecendo. A rua passou a dormitar indiferente aos movimentos da Lua, do Sol, do vento.
             Numa madrugada, contudo, Antoninha surgiu como que saída do mar. Seus passos ritmados com o balanço das ondas (ou do vento?), flutuantes como nunca, ágeis, determinados, ao mesmo tempo suaves e sinuosos percorreram toda a rua, a voz clara enchendo o espaço de encantamento, trazendo consigo o anúncio de que breve o sol nasceria das águas. E como se nada estivesse acontecendo dirigiu-se para o seu quartinho.
              Alguns madrugadores saindo para a caminhada, surpresos seguiram-na, dela aproximando-se cheios de indagações. Onde estivera? O que fizera? Com quem andara?
               Antoninha sorridente retirou de um bolso da saia um papel amarrotado, exibindo-lhes uma cédula de R$ 1,00 em tamanho gigante, reproduzida num jornal de intensa circulação na cidade e esclareceu com um gesto gracioso de bailarina:
               - Agora posso pagar o condomínio.
               Naquela noite, sequer apareceu para acompanhar o trajeto da lua cheia.
        

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