terça-feira, 3 de julho de 2012

Lenda do Pequi

                 Marietta Telles Machado


Tainá-racan tinha os  olhos cor de noite estrelada. Seus cabelos desciam pelas espáduas como um tufo de seda negra e luzidia. O andar era elegante, cadenciado, macio como o de uma deusa passeando, flor entre flores, no seio da mata. Maluá botou os olhos em Tainá-racan e o coração saltou, louco e fogoso, no peito do jovem e formoso guerreiro. " Ela é mesmo linda como a estrela da manhã. Quero-a para minha esposa. Hei de amá-la enquanto durar a minha vida! "

Doce foi o encontro e, juntos e casados, a vida dos dois era bela e alegre como o ipê florido. De madrugada, Maluá saía para a caça e para a pesca, enquanto a esposa tecia os colares, as esteiras, moqueava o peixe, preparando o calugi para ofertar ao amado, quando ele chegasse com o cesto às costas, carregado de peixe e frutas, as mais viçosas, para oferecer-lhe.

O tempo foi passando, passando. No enlevo do amor, eles não perceberam quantas vezes a lua viajou pela arcada azul do céu, quantas vezes o sol veio e se escondeu na sua casa do horizonte. Floriram os ipês. Caíram as flores. Amareleceram as folhas, que o vento levava em loucas revoadas pelos campos. Os vermelhos cajus arcavam de fartura e beleza os galhos dos cajueiros. As castanhas escondiam-se no seio da terra boa. Rebentavam-se em brotos, e novos cajueiros despontavam. As cigarras enchiam as matas com sua forte sinfonia e sua vida evolava-se, aos poucos, em cada nota de seu canto. Nascimentos, mortes, transformações e os dias andando, andando.

Após três anos de casamento, numa noite bonita, em que o rio era um calmo dorso de prata à luz do luar e os bichos noturnos cantavam fundas tristezas e medos, Maluá encostou a cabeça no peito de Tainá-racan e apertou-a com ternura. No olhar de ambos, há muito, havia uma sombra. Nenhum deles tinha a coragem de falar. Uma palavra de mágoa, temiam, poderia quebrar o encanto de seu amor. A beleza da noite estremecia o coração sensível de Tainá-racan. Ela ajuntou a alma dos lábios e perguntou com a voz trêmula em sussurro:

- Estás triste, amado meu? Nem é preciso que respondas. Há tempo vejo uma sombra nos teus olhos.

- Sim, respondeu o valente guerreiro. Tu sabes que eu estou triste e tu também estás. A dor é a mesma.

- Onde está nosso filho que Cananxiué não quer mandar?

- Sim, onde está nosso filho?...

Maluá alisou com carinho o ventre da formosa esposa. " E o nosso filho não vem ", murmurou. Dois pequeninos rios de lágrimas deslizaram pelas faces coradas de Tainá-racan. Um vento forte perpassou pela floresta. Uma nuvem escura cobriu a lua, que não mais tornava de prata as águas mansas do rio. trovões reboaram ao longe. Maluá envolveu Tainá-racan nos braços e amou-a. " Nosso filho virá sim. Cananxiué no-lo mandará. "

Quando os ipês voltaram a florir, no ano seguinte, numa madrugada alegre, nasceu Uadi - o arco-íris. Era lindo, gordinho, tinha os olhos cor da noite estrelada como os da mãe e era forte como o pai. Mas, havia algo diferente, algo que espantou o pai, a mãe, a tribo inteira: Uadi tinha os cabelos dourados como as flores do ipê. Maluá recebeu o nascimento do filho como um presente de Cananxuié. Seu coração, contudo, estremeceu com a singularidade dele. Começou a espalhar pela tribo a lenda de que o menino era filho de Cananxiué. O menino crescia cheio de encanto, alegria e de uma inteligência incomum. Fascinava a mãe, o pai, a aldeia, a tribo toda. Com rapidez incrível aprendeu o nome das coisas e dos bichos. Sabia cantar as baladas tristes e alegres que a mãe ensinava. Era a alegria e a festa da mãe, do pai, da tribo.

Um dia, Maluá, com outros guerreiros, foi chamado para a luta. Os olhos pretos de Tainá-racan encheram-se de lágrimas. O rostinho vivo de Uadi se ensombreceu. À despedida, seus bracinhos agarraram-se ao pescoço do pai e ele falou: " Papai, vou-me embora para a noite, depois, chegarei à casa de Tainá-racan, a mãe, lá no céu. " E seu dedinho róseo apontou o horizonte. O corpo de bronze do guerreiro se estremeceu. Seus lábios moveram-se, mas as palavras teimavam em não sair. Ele apertou, com força, o menino nos braços e, por fim, falou: " Que é isso, filhinho, tu não vais para lugar nenhum, nenhum deus te arrancará de mim. A tua casa é a casa de tua mãe, Tainá-racan, aqui na terra, e a de teu pai. Se for preciso, não partirei para a guerra. Ficarei contigo. "

Nesse momento, Cananxiué, o senhor de todas as matas, de todos os animais, de todos os montes, de todos os vales, de todas as águas e de  todas as flores, desceu do céu sob a forma de Anderurá, a arara vermelha, e gritou forte: " Vim buscar meu filho! " Agarrou-o e levou-o pelos ares. Tainá-racan e Maluá caíram de joelhos. O guerreiro abriu os braços gritando: " O filho é nosso, sua casa é a casa de sua mãe, Tainá-racan, aqui na terra! Devolve meu filho, Cananxiué! " O grito de Maluá ecoou pela mata, ferindo de dor o silêncio. O peito do guerreiro palpitava de sofrimento como uma montanha ferida pelo terremoto. O velho chefe guerreiro aproximou-se dele, bateu-lhe no ombro e bradou: " Teus companheiros já partem. Maior que tua dor é tua honra de guerreiro e a glória de nossa tribo! Vai, meu filho. Cananxiué buscou o que é dele. Muitos outros filhos ele te dará. Tainá-racan é jovem. Vai, guerreiro, não deixa a dor matar tua coragem! "


Maluá partiu. Tainá-racan encostou a fronte na terra, onde pouco antes pisavam os pezinhos encantados de Uadi. Chorou. Chorou. Chorou três dias e três noites. Então, Cananxiué se apiedou dela. Baixou à terra e disse: " Das tuas lágrimas nascerá uma planta, que se transformará numa árvore copada. Ela dará flores cheirosas que os veados, capivaras e lobos virão comer nas noites de luar. Depois, nascerão os frutos. Dentro da casca verde, os frutos serão dourados como os cabelos de Uadi. Mas a semente será cheia de espinhos, como os espinhos da dor de teu coração de mãe. Seu aroma será tão tentador e inesquecível que aquele que provar do fruto e gostar, amá-lo-á para jamais o esquecer. Como também amará a terra que o produziu. Todos os anos, encherei, generosamente, sua copa de frutos, e os galhos se curvarão com a fartura. Ele se espalhará pelos campos, irá para a mesa dos pobres e  dos ricos. Quem estiver longe e não puder comê-lo, sentirá uma saudade doida de seu aroma. Nenhum sabor o substituirá. Ele há de dourar todos os alimentos com que se misturar e, na mesa em que estiver, seu odor predominará sobre todos. Ele há de dourar também os licores, para a alegria da alma. "


Tainá-racan ergueu o olhar, aquele olhar onde brilhou a primeira estrela da consolação. E perguntou ao deus:


- Como se chamará, Cananxiué, esse fruto bom, cujo coração são os espinhos de minha dor, cuja cor são os cabelos de ouro de Uadi e cujo aroma é inesquecível como o cheiro dessa mata, onde brinquei com meu filhinho?


- Chamar-se-á Ramauó, pequi, minha filha. Quero ver-te alegre de novo, pois te darei muitos filhos, fortes e sadios como Maluá. E teu marido voltará cheio de glória da batalha, pois muitos séculos se passarão até que nasça um guerreiro tão destemido e tão honrado! Ele comerá deste fruto e gostará dele por toda a vida!


Tainá-racan sorriu. E o pequizeiro começou a brotar.


Este conto faz parte do livro " Antologia do Conto Goiano II - o conto contemporâneo ", organizado pelas professoras Vera Maria Tietzmann Silva e Maria Zaira Turchi, de 1994 e lançado pela Editora UFG.

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