domingo, 14 de julho de 2013

Todo o Poder da Palavra

           Lucília Garcez

A escrita permeia toda a nossa vida. Embora muitos tenham sido sistematicamente espoliados em seu direito de se expressar pela escrita, seja pelas condições sociais, seja por um perverso mecanismo escolar de destruição da autoestima, usufruir dos bens simbólicos que a escrita proporciona é um direito de todos. Mas um dos mais insidiosos complexos que os indivíduos vão acumulando durante a vida é o de não saber se expressar por escrito. É muito frequente ouvir de profissionais que estão em plena atividade, e que precisam escrever relatórios e outros documentos, a confissão de que sofrem para escrever porque não têm talento, como se a escrita cotidiana dependesse de algum dom divino.

Para desfazer esse mito é necessário compreender que o processo de escrever é naturalmente o de reescrever, e que a primeira versão de um texto, apesar de tão privilegiada na escola, é apenas um rascunho, não traz mais que o embrião das ideias. O processo de reavaliar, reestruturar e reescrever é que constitui a essência da escrita, embora esta comece muito antes, no momento em que o redator tem o desejo de escrever. Desejar já é escrever, pois implica elaboração mental, processamento interior, busca, decisões e escolhas em diversos níveis. Colocar essas escolhas em linguagem verbal exata para transmitir as ideias, rompendo a distância entre o que pensamos e o que escrevemos, é apenas uma das etapas da escrita. O próprio ato de produzir o texto vai recortando o mundo para o redator de uma maneira surpreendente, imprevisível.

Nesse sentido, escrever é descobrir, é desvendar, é construir, é dar forma às evanescentes sensações, emoções, representações, significações e interpretações do mundo. A trajetória humana vai sendo filtrada pela escrita e muitas vezes é o processo de escrever que nos mostra a nós mesmos o que somos e o que sabemos. Marguerite Duras considera: "Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever - só se pode saber depois - antes, é a pergunta mais perigosa que se pode fazer. Mas também é a mais comum."

Somos escritos pela escrita. O ato de escrever torna explícitos pensamentos e saberes submersos, e refazer a escrita é retomar essas formulações, refletir sobre elas e reformulá-las, o que corresponde a uma reformulação de nossos fragmentos interiores.

Qualquer tipo de texto exige esse trabalho árduo. Escritores consagrados refazem seus textos incessantemente. Gabriel Garcia Márquez reescreve seus livros mais de 10 vezes, Mempo Giardinelli chega a refazer seus contos mais de 30 vezes, e Murilo Rubião modificava seus textos a cada nova edição. Ricardo Piglia afirma: " Escrever é sobretudo corrigir (...), quando o texto está pronto há um trabalho de revisão bastante singular. A gente faz um esforço para se colocar no lugar de uma espécie de leitor perfeito, capaz de detectar todas as falhas e nós do texto, e tenta ler o que escreveu como se fosse outro. Nesse sentido, a revisão é uma leitura utópica e tão interminável como a própria escrita. "

Em qualquer serviço editorial, antes de um texto ser levado ao público sofre pelo menos quatro revisões minuciosas. Mesmo jornalistas que escrevem diariamente, desenvolvem a habilidade de reformular rapidamente textos antes de publicá-los. Apenas a escola enfatiza a primeira versão, e, assim, passa para o estudante uma visão equivocada do processo de escrever e consolida um mito que é preciso destruir para viver a escrita em sua plenitude, como uma forma de liberdade e de felicidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário