sábado, 27 de julho de 2024

Duplas Dinâmicas

 Dicionários relacionam vários vocábulos com duas ou mais formas porque determinar a grafia certa e a errada é complicado e não se detém apenas em aspectos etimológicos


É fato que idiomas são objetos em transformação constante, muito por causa das alterações que provoca a relação língua-falante. Talvez por isso exista a dificuldade em assinalar o certo e o errado, já que há a tendência de que, com o passar do tempo, alguns desses mesmos "erros" se tornem "acertos" ou, pelo menos, aceitáveis.

Um exemplo dessa alteração temporal é o pronome de tratamento "Vossa Mercê", que além de ter perdido suas características de uso passou por contrações até chegar aos nossos dias como o "você" que, em alguns lugares do Brasil, já virou "cê". Um ótimo exemplo disso está em Guimarães Rosa (1908-1967), no conto A Terceira Margem do Rio: "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!"

Tal processo, apesar de demorado, começa a imprimir mudanças mais profundas: hoje, em grande parte do território brasileiro, o "você" substitui o "tu" como pronome de segunda pessoa do singular. Mesmo em lugares como o Rio de Janeiro, onde ainda há o uso do "tu", o "você" já é utilizado com o verbo na terceira pessoa do singular. Isso assinala uma possível mudança na gramática tradicional - lógico, a longuíssimo prazo.

Pensando-se em pares que concorrem no uso cotidiano da língua, temos também o clássico "bêbedo" e "bêbado". Nesse caso, a primeira forma seria a mais "correta", porque traz clara a raiz etimológica, "bebedeira". No entanto, a segunda forma se apresenta como a mais comum no uso cotidiano, e não há como afirmar que ela foge completamente à raiz. Houve provavelmente, uma alteração no âmbito fonético, o fenômeno conhecido por dissimilação - processo que altera um ou mais sons de um fonema, tornando os dois diferentes. Obras antigas, como o Dicionário Moderno da Língua Portuguêsa (grafia original), de 1953, já apresentavam as duas formas como possíveis.

Há, contudo, pares em que a confusão é ainda maior, por exemplo, "efeminado" e "afeminado". A mais aceita pelas gramáticas tradicionalistas é a primeira ocorrência, que tem raiz no Latim. No entanto, ao consultar o dicionário Houaiss, vemos que a segunda apresenta etimologia que viria do Português medieval afemjnado. E ambas datadas do século 15. Pares semelhantes são "percentagem" e "porcentagem"; "zunido" e "zumbido"; "taramela" e "tramela", que também apresentam a primeira forma como a mais aceita pela gramática tradicional e a segunda como a mais comum no uso da língua.

Um par interessante é "tetravô" e "tataravô", no qual a primeira ocorrência é a considerada mais correta (contém raiz etimológica) e também a forma mais comum pelo dicionário Houaiss. No entanto, talvez pelo poder do culto kitsch ao seriado mexicano Chaves, não há quem não tenha ouvido ou utilizado a segunda forma. Assim como "salsicha" e "salchicha": a segunda seria uma forma mais informal da primeira, e a esta, privilegiada pela língua.

O que se observa genericamente é que os puristas preferem as formas aportuguesadas ou sinônimas já existentes na Língua Portuguesa, no entanto o uso comum do Português se apropriou das formas vindas diretamente do idioma matriz. No par "cabina" e "cabine" que, por exemplo, vem do Francês. Os tradicionalistas, que as consideram galicismo, recomenda o uso de sinônimos, mas a forma já está de tal maneira incorporada no cotidiano que seria estranhamento ouvir alguém dizer "vou utilizar o compartimento telefônico" ou "o cubículo telefônico está ocupado". Ou ainda entrar em uma loja de materiais para construção e pedir ao vendedor um "semicúpio", sugerido no lugar de "bidê" (do Francês bidet). Isso é normal com diversos idiomas influentes, seja por fatores culturais, como o inglês ("xampu" e shampoo, "uísque" e whisky, etc), ou sociais, como o imigrante italiano ("ricota" e ricotta, "espaguete" e spaghetti, "mezanino" e mezzanino, etc.).

Há outras línguas que influenciam o Português, assim como o nosso idioma já influenciou a transformação de outros. Um exemplo disso é um típico drinque brasileiro famoso mundo afora, que já tem uma versão, por exemplo, em Alemão: das Caipi. Isso indica que até línguas como a germânica, conhecida pelo cuidado em admitir estrangeirismos, não se fecha completamente à influência externa... Se não, de que outra forma se poderia pedir uma caipirinha em Berlim?


Texto de Andréa Santos Neiva, professora de Redação do curso Alferes Vestibulares, de São Paulo. Retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa (edição Extra), Escala Educacional, São Paulo, 2008.

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