terça-feira, 30 de julho de 2024

A evolução esbarra na educação

Que as línguas evoluem já se tornou um truísmo. Estamos tão acostumados à ideia de que cada geração se expressa de modo diferente e novos termos e construções surgem a todo momento que prestamos mais atenção à mudança do que à conservação. E, no entanto, se a tendência natural da língua é mudar, o fato verdadeiramente admirável não é que haja inovações o tempo todo, mas que exista certa estabilidade no sistema, de modo que conseguimos nos comunicar com eficiência desde que aprendemos a falar até o fim da vida.

Embora muitos pensem que exista uma força impulsionando a evolução, na verdade, a mudança se dá por inércia: é necessário uma força para deter ou retardar a evolução. Afinal, abandonada à própria sorte, toda língua muda rápida e inexoravelmente, já que todo falante, mesmo involuntariamente, contribui para essa transformação.


Formalidade

O fator que mais obstrui a mudança é a escrita: línguas com escrita formal são mais conservadoras que as ágrafas. A escrita socialmente partilhada precisa que haja uniformidade espacial e temporal. E para que exista escrita formal, tem de haver educação. Portanto, a escola é a grande força a se opor à evolução da gramática (o léxico muda mais pacificamente com o próprio progresso social). A língua falada na România, os territórios europeus outrora dominados por Roma, mudou mais do século 5º ao 10º de nossa era do que nos cinco séculos anteriores ou nos dez seguintes. Essa rápida mutação se deveu ao desaparecimento da educação formal durante a Alta Idade Média.


Níveis

Todas as línguas literárias, ou de cultura, admitem um nível de linguagem formal e um informal, além de um que podemos chamar de "iletrado". Em Português, em simplificação grosseira, esses três níveis podem ser representados pelas construções "nós vamos", "a gente vai" e "nós vai" (ou "a gente vamos"). Entre os dois primeiros níveis e o terceiro há uma barreira: um falante escolarizado alterna seu registro entre formal e informal conforme o interlocutor e a situação de comunicação em que se encontre (entrevista de emprego, palestra, bate-papo entre amigos). Mas nunca se expressa como as pessoas iletradas, a não ser de brincadeira. Já estas acabam prisioneiras de seu nível de linguagem pela falta de escolaridade.

É notável que em países como os escandinavos a distância entre a língua falada e a escrita é menor do que em outros, como o Brasil. Mas para discutir esse ponto, é preciso primeiro desfazer um equívoco frequente entre nível formal e modalidade escrita, assim como entre nível informal e modalidade falada. Muitos acreditam que a norma padrão existe só para a escrita, e a expressão oral é livre de obedecer a ela dada a sua natural informalidade.

Há formalidade e informalidade tanto na escrita quanto na fala: podemos escrever a um amigo em linguagem coloquial, como se estivéssemos falando com ele, assim como se deve usar o Português padrão numa conferência ou aula magna. É bem verdade que a maioria dos textos escritos é formal e a dos atos de fala é informal, o que gera a confusão entre registro e modalidade.


Conservadorismo

Pessoas bem escolarizadas tendem a se expressar de maneira mais próxima do padrão mesmo em situações informais. Ou seja, não se passa pelo processo de escolarização impunemente! Portanto, se em certos países a língua falada está bem próxima da escrita, é porque, neles, a qualidade e a abrangência da educação são muito altas.

Povos como o sueco ou o alemão têm a fama de escreverem como se fala; a realidade é que eles falam como se escreve, ou seja, a forte ênfase em escrita no ensino básico faz com que os falantes, mesmo em ambientes informais, prefiram "nós vamos" a "a gente vai".

No Português brasileiro, a distância entre a língua dos contratos e ofícios e a dos botequins e campinhos de futebol é abismal - em Portugal, essa distância é um pouco menor. Isso se dá em parte porque nosso padrão é excessivamente conservador (jornais e revistas tendem a um meio-termo, elegante e correto, mas simples e direto), mas também porque nossa escola é fraca; fosse mais forte, mais gente usaria "nós vamos" em lugar de "a gente vai", e mais pessoas diriam "a gente vai" em vez de "a gente vamos".

Some-se a isso o fato de que, para muitos estudantes, a figura de prestígio e modelo de comportamento e linguagem não é o professor, mas o traficante, temido e respeitado por seu poder de fogo. Nesse sentido, arriscaria dizer que, em matéria de fala, a população de baixo letramento - que, infelizmente, inclui até universitários - não se encontra em situação tão diferente da experimentada pelos europeus da Idade das Trevas.


Texto de Aldo Bizzochi retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 115, Maio de 2015, Editora Segmento, São Paulo.


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