quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Morte Anunciada

 Entre 20 e 30 idiomas desaparecem por ano - uma média de uma língua a cada duas semanas


Linguistas preveem que metade das mais de 6 mil línguas faladas no mundo desaparecerá em um século - uma taxa de extinção que supera as estimativas mais pessimistas quanto à extinção de espécies biológicas. Há até conexão entre a diversidade linguística e a biodiversidade: os países com a maior diversidade biológica têm em geral também a maior diversidade linguística. Tanto que a Unesco propôs, por analogia com a palavra "biosfera", o termo "logosfera" para o conjunto de línguas do mundo.

Segundo a entidade, 96% da população mundial falam só 4% das línguas existentes. E apenas 4% da humanidade partilha o restante dos idiomas, metade dos quais se encontra em perigo de extinção. Entre 20 e 30 idiomas desaparecem por ano - uma média de uma língua a cada duas semanas.

A menos que cientistas e líderes políticos façam um esforço mundial para deter o declínio das línguas locais, provavelmente 90% da atual diversidade linguística da humanidade se extinguirão.

Visão de mundo

A perda de línguas raras é lamentável por várias razões. Em primeiro lugar, pelo interesse científico que despertam: algumas questões básicas da linguística estão longe de estar inteiramente resolvidas. E essas línguas ajudam a saber quais elementos da gramática e do vocabulário são realmente universais, isto é, resultantes das características do próprio cérebro humano.

A ciência também tenta reconstruir o percurso de antigas migrações, fazendo um levantamento de palavras emprestadas, que ocorrem em línguas sem qualquer parentesco. Afinal, se línguas não aparentadas partilham palavras, então seus povos estiveram em contato em algum momento.

Quando uma língua morre, perde-se para sempre uma peça desse intrincado quebra-cabeça. Perde-se também o saber específico de uma cultura e uma visão de mundo única.

Um comunicado do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) diz que "o desaparecimento de uma língua e de seu contexto cultural equivale a queimar um livro único sobre a natureza". Afinal, cada povo tem um modo único de ver a vida. Por exemplo, a palavra russa mir significa igualmente "aldeia", "mundo" e "paz". É que, como os aldeões russos da Idade Média tinham de fugir para floresta em tempos de guerra, a aldeia era para eles o próprio mundo, ao menos enquanto houvesse paz.

Competição

Na África, um dos continentes com o maior número de línguas ameaçadas, 80% delas não apresentam registros escritos. Mas mesmo que uma língua tenha sido totalmente documentada, tudo o que resta depois que ela se extingue é um esqueleto fossilizado. E estudar fósseis nunca é a mesma coisa que estudar espécies vivas.

As principais causas para a extinção das línguas são a dominação econômica e cultural e a  explosão demográfica. Isso leva os falantes de uma língua a ter dúvidas sobre a sua utilidade. Muitos - até as crianças - consideram sua própria língua inferior à língua dominante e param de usá-la. Do mesmo modo como os idiomas oficiais europeus sufocaram progressivamente os dialetos locais a partir de fins do século 19, o mesmo fenômeno se verifica hoje em escala global, com as grandes línguas de cultura (inglês, espanhol, russo, árabe, mandarim, etc.) suplantando os falares regionais e tradicionais.

No entanto, as próprias línguas de cultura também competem entre si: assim como o latim, hegemônico na Idade Média, foi aos poucos dando lugar ao francês como idioma da ciência e da erudição, este também viu seu declínio diante do inglês na passagem do século 19 para o 20 especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Especialistas antecipam que o próprio inglês possa perder terreno, nas próximas décadas, para línguas de nações emergentes, como o hindi e o mandarim.

Por outro lado, uma esperança de reverter a tendência à extinção em massa de línguas é a forte migração para os grandes centros urbanos. O contato entre duas ou mais populações no mesmo espaço territorial acaba conduzindo a miscelâneas linguísticas, como ocorreu no passado com o michif (misto de francês com a língua indígena canadense cree) e o mednyi (mistura de russo e aleúte, língua do Alasca). Atualmente, a presença de imigrantes africanos e asiáticos nas grandes cidades europeias já sinaliza o surgimento de novos dialetos.

Mudança de forma

Tudo isso significa que talvez a diversidade linguística não se reduza tão drasticamente, mas sobretudo mude de forma. De qualquer maneira, a extinção é para sempre: uma língua desaparecida sem documentação jamais voltará a ser falada. Com isso, muitas informações preciosas sobre modos de vida e relacionamento com a natureza se perderão definitivamente.

Apesar de tudo, muitos esforços estão sendo feitos, por governos, universidades e ONGs, para reverter esse quadro, em alguns casos com sucesso. Línguas que se encontravam em risco iminente de desaparecimento voltaram a ser faladas depois de introduzidas na escola, o que fez surgir novas gerações de falantes. Algumas dessas línguas hoje demonstram novamente grande vitalidade. Sendo a humanidade tão numerosa hoje (mais de 7 bilhões de indivíduos), nem mesmo toda a tecnologia da comunicação pode fazer com que todos venhamos um dia a falar uma única língua - o que seria o sonho dos capitalistas e o pesadelo dos linguistas.


Texto de Aldo Bizzocchi retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 116, Junho de 2015, Editora Segmento, São Paulo.

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