domingo, 28 de julho de 2024

Idioma Onipresente

 Do pan japonês ao limonada búlgaro, o Português influencia mais línguas do que se pensa - muito por conta da expansão ultramarina portuguesa entre os séculos 15 e 17.


Há muitas palavras portuguesas circulando pelo mundo afora, mas não são tão originais no vocabulário quanto se imagina. A maioria dos vocábulos de origem culta - usados nas ciências, nos assuntos universitários mais diversos, nos jargões técnicos, na política, na religião e nas artes - é eruditismo, derivado de raízes e/ou afixos latinos ou gregos. Esse léxico entrou na península Ibérica na baixa Idade Média, provindo do italiano da época do Renascimento, da Língua Inglesa do decorrer dos dois últimos séculos e,  principalmente, do Francês, antes mesmo da fundação de Portugal. A capacidade criativa de Portugal no campo das palavras cultas é impressionantemente pequena - o que chega a ser decepcionante para os que se inebriam com um discurso patriótico ou nacionalista.

Quem trabalha com Etimologia, porém, logo se dá conta desse fato. Por outro lado, antes de essa enxurrada de eruditismos entrar no Português, ou seja, antes de a dinastia de Avis ascender ao trono português, no final do século 14 - portanto, antes do Leal Conselheiro de dom Duarte, antes de Fernão Lopes e de Camões -, havia uma língua medieval na qual foram compostos os cancioneiros. O belíssimo cancioneiro das Cantigas de Santa Maria, inexplicavelmente pouco mencionado nas aulas de Literatura Portuguesa, apresenta mais de 400 peças (algumas muito longas) de uma beleza ímpar. Todas redigidas em Português no segundo quartel do século 13 por muitos trovadores, embora conste apenas a assinatura de Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela (1221-1284).

Apesar de sua extensão, o vocabulário das antigas contém pouco mais de 20 mil palavras não-lematizadas, ou seja, um substantivo pode aparecer sob duas formas ("igreja", "igrejas"); um adjetivo, sob quatro ("branco", "branca", "brancos", "brancas"); e um verbo, sob algumas dezenas ("canto", "cantas", "canta", "cantava", "cantávamos", etc.). Sem falar que a mesma palavra é grafada de várias formas ("igreja", "jgreia", "ygreja", "ygreia", "eigreia", etc.). Pode-se supor, desse modo, que o número de palavras utilizado para compor todo o cancioneiro não chegue a 3 mil. Essa pobreza lexical é compensada, contudo, com uma maior polissemia, ainda presente no Português falado, que permite a leitura do mesmo verso de duas ou mais formas distintas.

Os léxicos extensos são, portanto, construtos artificiais, obtidos por meio de um somatório de contextos, experiências e jargões que, embora presentes na complexidade das sociedades modernas, não são ativos no discurso diário.


Sete Mares

Palavras portuguesas pertencem a campos específicos. "Piranha", por exemplo, está presente no vocabulário do Inglês, Francês, Alemão, Italiano, Holandês, Espanhol e Islandês, entre outros. De origem Tupi (originalmente "peixe com dente"), a palavra foi incorporada pelo Português e ganhou o mundo. A nomenclatura da fauna e da flora típicas de cada região, quando peculiares por sua beleza ou excentricidade, tem grande chance de importar vocábulos (vide "orangotango", "lhama", "panda", etc.). Muitas vezes, a sua origem repousa num total enigma, como ocorrer com "zebra", que também se internacionalizou.

Outras palavras portuguesas que têm chance de serem adotadas em diversos idiomas são aquelas ligadas a topônimos. Assim, "Bahia", grafia antiga de "baía", transformada de substantivo comum em substantivo próprio, viaja pelo planeta sem associação imediata com o bay do inglês, o baie do Francês, o bucht do Alemão. Também poucos associam de forma imediata a "Flórida" com seu termo original florida, do Espanhol, com o mesmo significado do homônimo Português (apenas com pronúncia inglesa proparoxítona). Também o termo "Cape Verde", que traduz o nome do país "Cabo Verde", que traduz o nome do país "Cabo Verde", tão evidente em Português por ser quase um nome comum, para o Inglês é totalmente opaco. Nenhum anglófono associará imediatamente "verde" a green, a menos que saiba Espanhol ou alguma outra língua românica. Inversamente, "Groelândia" é o aportuguesamento do termo dinamarquês que significa originalmente "terra verde". Nos topônimos, além disso, residem mistérios que talvez nunca estejam resolvidos, de línguas extintas há milênios.

Não são apenas os termos da Língua Portuguesa associados à Biologia ("caju", "maracujá") e à topografia os internacionalizáveis. Os que se referem à culinária também: "tapioca", por exemplo, ocorre em vários idiomas. Outros aspectos culturais constam dos dicionários: o antigo "auto-da-fé" aparece em muitas línguas, como triste lembrança de uma prática de intolerância. Na música, a "bossa nova" e o "samba" são termos que não têm normalmente tradução, mesmo nos idiomas mais puristas. Termos pejorativos também não faltam: o vocábulo "palavra", tão neutro em Português, aparece em Alemão, Turco, Romeno e Albanês com o significado de "tagarelice, mentira". Teria sido porque algum lusófono, tendo dado a sua palavras de honra, não a tenha cumprido? Mistérios que jamais se decifrarão se não dispusermos de provas documentais (muitas vezes inexistentes). O termo "viado" (com "i" mesmo) consta no dicionário Zingarelli como "travesti ou transexual de origem brasileira que se prostitui". Consultando o Google, observa-se que o termo em si é descritivamente neutro. Ele aparece até mesmo em manchetes de jornais sérios e não traz consigo nenhuma carga pejorativa intrínseca, como polemicamente pode sugerir-se em Português.

Enquanto Portugal foi dono dos oceanos, muitas línguas receberam palavras do Português. No Malaio, a palavra boneka tem o mesmo significado que na Língua Portuguesa. A transmissão da palavra só pode ter sido do nosso idioma para o Malaio e não o contrário, pois ela já existe no Português desde o século 14, portanto antes da chegada dos portugueses àquelas paragens. No reino do Ceilão, atual Sri Lanka, há muitos outros exemplos. No japonês, o termo zubon, que significa "calças", escrito num silabário especial para palavras estrangeiras, recorda o tempo em que os portugueses usavam "gibão". "Pão" é, até hoje, pan, de origem portuguesa (e não francesa nem espanhola, como se afirmou). Sendo a arte de fazer pão uma técnica desconhecida da antiga culinária japonesa, a palavra só podia ser estrangeira, e, de fato, circulou pela Ásia: em dialetos chineses o mesmo ocorre. A palavra "marmelada" foi adotada por muitas línguas, normalmente com o sentido genérico de "geleia" de marmelo (em Francês, marmelade; em Alemão, Marmelade). A palavra ibérica "limonada" chegou até o búlgaro com o sentido de "suco": nessa língua, uma genuína limonada se diz limonada na limon.

O legado português ultrapassou o domínio lexical, tendo construído, como o Francês e o Inglês, muitas novas línguas, chamadas de crioulas: o Papiamento falado nas Antilhas; o Guineense, na Guiné-Bissau; o Fa d'Ambu, na ilha de Ano Bom da Guiné Equatorial; o Macaense, na China; e o Papiá Kristang, na Malásia, - que ainda sobrevivem, mas muitíssimas outras línguas neoportuguesas estão extintas ou em franco perigo de extinção.

Pode ser verdade que o Português não tenha contribuído para a formação das palavras eruditas das línguas internacionais atuais, mas uma parte de seu vocabulário é, sim, conhecida delas. Está ali, escondida, em cantos quase invisíveis. Basta ter olhos e técnica para olhar.


Texto de Mário Eduardo Viaro, professor de Língua Portuguesa da USP. Retirado da revista Discutindo Língua Portuguesa (Edição Extra), Escala Educacional, São Paulo, 2008.

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