quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Capítulo 13 - Em Resumo

Toda revolução social é precedida por, ou traz consigo, uma mudança na percepção do mundo e/ou uma mudança na percepção do possível. Como não podia deixar de ser, essas novas maneiras de ver são, a princípio, consideradas como um contra-senso ridículo, ou coisa pior do que isso, pelo senso comum coletivo da época.

A revolução de Copérnico é, sem dúvida, o principal exemplo. Pensar que a Terra não era o centro do universo, que girava em torno do Sol e era parte de uma vasta galáxia, não era apenas absurdo, era uma heresia que solapava a religião e a civilização. Há também exemplos menos importantes. Era enorme absurdo pensar que organismos invisíveis, que ninguém podia ver, pudessem ser causa de doenças. A crença de que escravos não eram objetos para serem comprados e vendidos como gado, mas sim pessoas com plenos direitos humanos, não era somente um pensamento nocivo, contrário à História e à Bíblia: era também economicamente perturbador e perigoso. A noção revelada por uma fórmula matemática obscura de que a menor porção da matéria, o átomo, uma vez rompido, poderia libertar uma força incalculável, era evidentemente apenas um excêntrico rebento da ficção científica.

Entretanto, todas essas "ridículas" mudanças perceptuais alteraram a face e a natureza de nosso mundo. Foi o "senso comum" que passou a ser gradualmente ridículo.

Vejamos um exemplo corriqueiro da maneira pela qual esta mudança acontece. Era um fato perfeitamente óbvio para todos - e além disso apoiado pelas Sagradas Escrituras - que a Terra era plana, e aqueles que sugeriram que ela era esférica eram hereges perigosos. Mas, quando Colombo navegou para o Novo Mundo, sem com isso cair da extremidade da Terra, essa experiência real, essa evidência de que a concepção anteriormente aceita era um erro, forçou uma mudança no modo de se perceber a Terra. E essa mudança


terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Ego: a dimensão consciente da personalidade

Embora suas bases sejam em si mesmas relativamente desconhecidas e inconscientes, o ego é, por excelência, um fator consciente. É inclusive adquirido, em termos empíricos, ao longo da vida. Parece surgir, em primeiro lugar, da colisão entre o fator somático e o meio ambiente, e, depois de estabelecido como sujeito, prossegue desenvolvendo-se a partir de outras colisões com o mundo exterior e interior.

Apesar da ilimitada extensão de suas bases, o ego nunca é mais e nunca é menos que a consciência como um todo. Como fator consciente, o ego poderia ser, pelo menos no plano teórico, descrito de forma completa. Isso porém nunca chega a ser mais do que uma imagem da personalidade consciente; todos os aspectos desconhecidos ou inconscientes para o sujeito estarão ausentes. A imagem completa teria que incluí-los. Mas uma descrição total da personalidade, mesmo teórica, é absolutamente impossível porque a porção inconsciente que a compõe não pode ser apreendida pelos recursos cognitivos. Essa porção inconsciente, como a experiência o tem generosamente comprovado, não é de maneira alguma destituída de importância. Pelo contrário, as qualidades mais decisivas de uma pessoa são em geral inconscientes e podem ser percebidas apenas pelos outros, ou têm que ser laboriosamente descobertas com ajuda externa.

Está claro, então, que a personalidade como um fenômeno total não coincide com o ego, quer dizer, com a personalidade consciente, mas forma uma entidade que precisa ser distinguida do ego. Sem dúvida, a necessidade dessa distinção só recai sobre uma psicologia que admite o fator do inconsciente e, para ela, essa distinção é da mais lapidar importância.

Sugeri que se chamasse a personalidade total que, embora presente, não pode ser plenamente conhecida, de Self (si-mesmo). Por definição, o ego está subordinado ao Self e mantém com ele uma relação de parte para o todo. Dentro do campo da consciência, como dissemos, ele tem livre-arbítrio. Com isso não estou querendo dizer nada de filosófico, apenas me refiro ao bem conhecido fato psicológico de se ter "liberdade de escolha" - ou melhor, o sentimento subjetivo de liberdade. Mas, da mesma forma como nosso livre-arbítrio choca-se com as necessidades que vêm do mundo externo, também no mundo interior subjetivo essa função encontra seus limites fora do campo da consciência, ao entrar em conflito com os fatos do Self. E, assim como as circunstâncias e eventos externos "acontecem" conosco e limitam nossa liberdade, também o Self atua sobre o ego como uma ocorrência objetiva diante da qual o livre-arbítrio pode fazer muito pouco. Na realidade, é bem sabido que o ego não só nada pode fazer contra o Self, como é às vezes realmente assimilado por componentes inconscientes da personalidade em seu processo de desenvolvimento, sendo por eles profundamente alterado.

Diante da natureza dessa função, é impossível oferecer uma descrição geral do ego, exceto em termos formais. Qualquer outro modo de observação teria que admitir a individualidade que aliás se constitui em uma de suas principais características. Embora os numerosos elementos que compõem este complexo fator sejam em si os mesmos em toda parte, são infinitamente variados em sua clareza, tonalidade emocional e abrangência. O resultado de sua combinação - o ego - é, portanto, e até onde é possível julgar, individual e único, conservando até certo ponto sua identidade. Sua estabilidade é relativa porque às vezes podem se dar mudanças extensas na personalidade. Essas alterações não são necessariamente sempre patológicas, podem ser decorrentes do próprio processo de desenvolvimento e, nessa medida, pertencer à variação normal.

Sendo o ponto de referência do campo da consciência, o ego é o sujeito de todas as bem-sucedidas tentativas de adaptação passíveis de serem alcançadas pela vontade. Portanto, o ego desempenha uma parte significativa dentro da economia psíquica. É tão importante a sua posição nesse sentido que há bons motivos para se alimentar a falsa noção de que o ego é o centro da personalidade e que o campo da consciência é a psique em si. Afora as alusões encontradas em Leibniz, Kant, Schelling e Schopenhauer, e os esboços filosóficos de Carus e von Hartmann, é somente a partir do final do século XIX que a moderna psicologia com seu método indutivo descobriu os fundamentos da consciência e comprovou empiricamente a existência de uma psique fora do campo consciente. Com essa descoberta, a posição do ego até então absoluta tornou-se relativa, o que quer dizer que, embora conserve seu atributo de centro do campo da consciência, é discutível se funciona ou não como centro da personalidade. O ego é parte da personalidade, não a personalidade inteira. Como já disse, é simplesmente impossível estimar se sua parcela de participação é grande ou pequena, e até onde é livre ou depende das qualidades da psique "extraconsciente". Podemos dizer apenas que sua liberdade é limitada e sua dependência comprovada de maneira muitas vezes decisiva.


Texto de Carl Gustav Jung retirado do livro Espelhos do Self - As imagens arquetípicas que moldam a sua vida, vários autores, organização de Christine Downing, Editora Cultrix, São Paulo, 1998.

O texto integral desse ensaio encontra-se no livro Aion: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, C.G. Jung, Editora Vozes, RJ, 1982, Obras Completas.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Ser Homem

"Quando eu era pequeno - engraçado - eu me sentia mais próximo da minha mãe que do meu pai, ela era mais afetuosa, mas eu sabia que era a opinião do meu pai sobre mim que contava, era a sua aprovação que eu realmente queria. Por quê? Não sei. Mas eu ainda sou assim, num certo sentido: amo muito minha esposa, nós somos felizes juntos, mas para me sentir realmente feliz eu preciso, acima de tudo, fazer parte do mundo dos homens e ser reconhecido pelos outros homens como um homem bem-sucedido."

Num sentido concreto, o que "conta" para os homens numa sociedade patriarcal são as relações entre eles próprios - muito mais do que as relações entre homens e mulheres. Os homens procuram nos outros aprovação, aceitação, legitimação e respeito. Os homens veem os outros homens como árbitros do que é real, como guardiães da sabedoria e detentores e controladores do poder.

Mas é possível para os homens sentirem-se próximos de outros homens na nossa sociedade? Compartilhar sentimentos? Como é que eles são educados em nossa sociedade? O que significa ser um homem? O que é que eles aprendem de seus pais a respeito do que significa ser homem? E eles se sentem próximos de seus pais na infância? Como se sentem a respeito de suas amizades com outros homens? Como é que as relações com outros homens se comparam com as relações com mulheres? Que padrões de comportamento e aprovação os homens estabelecem uns para os outros? Como foi que o papel tradicional afetou a capacidade dos homens de se sentirem próximos uns dos outros?

Paradoxalmente, embora os homens se vejam uns aos outros como "aquele que é importante", a maioria tem medo de se aproximar demais. "Sentimentos" por outros homens devem ser expressos apenas de forma casual, e não devem ultrapassar a admiração e o respeito. Assim, as relações entre homens costumam se basear numa aceitação mútua de papéis e posições, numa integração no grupo, ao invés de numa discussão pessoal e íntima sobre suas vidas e sentimentos. Como disse um homem, "nós somos mais colegas do que amigos". Nossa cultura glorifica e ao mesmo tempo limita severamente as relações entre homens, mesmo aquelas entre pais e filhos. Ainda assim, alguns homens afirmaram ter um sentimento profundo de afinidade e companheirismo para com outros homens.

Como são as amizades íntimas entre os homens? Como se sentem os homens sobre isso? O que elas significam dentro de suas vidas? Como os homens gostam de passar o tempo juntos? O que é que eles veem de mais importante nos outros homens? Como se relacionavam quando meninos - incluindo as relações físicas? Como se sentem ao demonstrar seus sentimentos ou afeição para com outros homens?


Trecho inicial do livro O Relatório Hite sobre a sexualidade masculina, Shere Hite, Difel - Difusão Editorial S.A., São Paulo, 1981/1982.

domingo, 12 de outubro de 2025

Escrevendo

Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor. - Ele se levantou todo ao mesmo tempo, emergindo mais aqui do que ali. Eu interrompia uma frase no capítulo 10, digamos, para escrever o que era o capítulo 2, por sua vez interrompido durante meses porque escrevia o capítulo 18. Esta paciência eu tive, e com ela aprendia: a de suportar, sem nenhuma promessa, o grande incômodo da desordem. Mas também é verdade que a ordem constrange. - Como sempre, a dificuldade maior era a da espera. (Estou me sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo, responderia a mulher. A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos se saber que aquilo é espera. Às vezes, ao que nasce morto, sabe-se que se esperava.) - Além da espera difícil, a paciência de recompor paulatinamente a visão que foi instantânea. E como se isso não bastasse, infelizmente não sei "redigir", não consigo "relatar" uma ideia, não sei "vestir uma ideia com palavras". O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe. - Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

sábado, 11 de outubro de 2025

Demonstrações do Céu (92)

 "Disseram-lhe, pois: que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti? - (JOÃO, 6:30.)


Em todos os tempos, quando alguém na Terra se refere às coisas do Céu, verdadeira multidão de indagadores se adianta pedindo demonstrações objetivas das verdades anunciadas.

Assim é que os médiuns modernos são constantemente assediados pelas exigências de quantos se colocam à procura da vida espiritual.

Esse [e vidente e deve dar provas daquilo que identifica.

Aquele escreve em condições supranormais e é constrangido a fornecer testemunho das fontes de sua inspiração.

Aquele outro materializa os desencarnados e, por isso, é convocado ao teste público.

Todavia, muita gente se esquece de que todas as criaturas do Senhor exteriorizam os sinais que lhes dizem respeito.

O mineral é reconhecido pela utilidade.

A árvore é selecionada pelos frutos.

O firmamento espalha mensagens de luz.

A água dá notícias do seu trabalho incessante.

O ar esparge informações, sem palavras, do seu poder na manutenção da vida.

E entre os homens prevalecem os mesmos imperativos.

Cada irmão de luta é examinado pelas suas características.

O tolo dá-se a conhecer pelas puerilidades.

O entendido revela mostras de prudência.

O melhor demonstra as virtudes que lhe são peculiares.

Desse modo, o aprendiz do Evangelho, ao solicitar revelações do Céu para a jornada da Terra, não deve olvidar as necessidades de revelar-se firmemente disposto a caminhar para o Céu.

Houve dia em que a turba vulgar dirigiu-se ao próprio Salvador que a beneficiava, perguntando: - "que sinal fazes tu para que o vejamos, e creiamos em ti?"

Imagina, pois, que se ao Senhor da Vida foi dirigida semelhante interrogativa, que indagação não se fará do Alto a nós mesmos, toda vez que rogarmos sinais do Céu, a fim de atendermos ao nosso simples dever?


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Donas do nosso lar

Empregadas domésticas são figuras folclóricas em qualquer lar. Imagina numa casa de bibas. Normalmente conservadoras, elas chegam desconfiadas. "Dois homens e uma cama! Há algo de esquisito nessa casa!" Para logo depois virarem grandes aliadas no espetáculo de vaudeville que, muitas vezes, se transforma o dia-a-dia de dois gays vivendo sob o mesmo teto.

O primeiro contato com essas rainhas dos nossos lares é o mais difícil. Como dizer para aquela senhora, com saia até o joelho, coque no cabelo, a maior pinta de evangélica radical, que ali moram você e seu namorado? Mais fácil contar pra mãe, né? Ela, ao menos, a gente conhece. Mas não adianta esconder, porque um dia os dois acabam pegos juntos no chuveiro. E aí a empregada vai embora revoltada e fazendo fofoca com o porteiro.

Só não passa por essa dificuldade quem faz a linha Act up e diz logo de cara: "Antônia, aqui também mora o Pedro e nós somos bichas. Você entendeu?" Assim mesmo, com esse vocabulário, porque se sofisticar com somos gays, homossexuais, transviados, pederastas... Ela vai perguntar em seguida: "São o quê, patrão?" Então, você terá que explicar de qualquer maneira: "Bichas, Antônia! Nós somos bichas. Entendeu agora?"

A alternativa pra não enfrentar a conversa é ter a sorte de contratar uma empregada enrustida, como a Dulce. Ela trabalha para duas bibas empresários faz 17 anos. Eles são muito gays e completamente assumidos. Mas não há santo que faça Dulce reconhecer isso. Quando tem festa no apartamento da dupla, a empregada enrustida vira atração, pobrezinha:

- Dulce, preciso lhe contar. Marcelo e Sérgio estão juntos todos esses anos. Casados, feito homem e mulher, fazem sexo e tudo. Só você ainda não sabe.

- Não levanta esse falso, seu Henrique.

- Verdade, você não vê? Eles dormem até na mesma cama.

- Imagina, seu Marcelo e seu Sérgio, que não podem ver mulher de saia.

Inexplicavelmente, ela duvida. E ainda testemunha contra a calúnia, mesmo sendo a única mulher a dormir naquela casa.

Outro estilo clássico de empregada de gays é a de fachada. Ela dá a maior força, mas não aprova que os patrões deem muita pinta. Acha necessário disfarçar e sempre dá um jeito de falar de noitadas com mulheres com as visitas, que naturalmente pensam que ela é louca. A Francisca, por exemplo, chega ao requinte de mentir ao telefone, sempre que pega uma ligação dos pais do seu patrão biba. "Deixa eu vê se ele já saiu do quarto. Você conhece o danado do seu filho. Chegou com uma mulher e tá trancado na maior safadeza."

Pouco importa pra elas que você não esconda sua homossexualidade. Generosas como mães zelosas, querem nos proteger a todo custo. Mas, às vezes, atrapalham. Vera Lúcia, por exemplo, sempre deixa de saia justa os paqueras de uma biba dom Juan. Bem-sucedido com homens, na cama dele não faltam belos jovens. Mas Vera Lúcia, muito simpática, num esforço de memória, sempre chama o rapaz pelo nome do visitante de outra noite qualquer. "Olha, seu Eduardo, fiz vitamina de abacate como o senhor gosta." A biba que já alertou mil vezes - "Vera Lúcia quando você vir homem aqui não abra a boca, sua anta!" - quase morre de vergonha, ou de medo de ser tomado por promíscuo, e fala desolado para a lesada: "Fofa, esse é o Marcos." Quem, no entanto, consegue manter empregada despachada de boca calada? "Gente, nem reconheci. E o seu Marcos gosta de quê mesmo no café?"

Para os enrustidos, ter empregada aliada é gênero de primeira necessidade. Um conhecido, filho de família rica e tradicional do Rio Grande do Sul, tem uma ótima para os seus propósitos. Esperta passista do Salgueiro, Cleonice é treinada para sumir com tudo gay do apartamento em 23 minutos. Basta um parente qualquer ligar, mesmo do aeroporto, já no Rio de Janeiro, dizendo que vai pra lá e ela dispara feito um raio. Em tempo cronometrado, escamoteia porta-retratos, livros, revistas, bilhetes, deixa calcinha lavada esquecida no box, até o quadro do Vitor Arruda desaparece da parede. Cleonice é tão pós-graduada nas paranoias do patrão que, em época de visita, troca invariavelmente os nomes das bibas que ligam pra ele. Nem a gente escapou dessa.

- Seu Patrick, dona Nelsa da Revista Playboy lá no telefone.

Foi indisfarçável o espanto dos parentes diante de nome tão improvável. Restou à biba esforçada um sorriso amarelo e a saída de emergência.

- Família excêntrica, a da gatinha.


Editorial de Nelson Feitosa para a hoje extinta revista Sui Generis, ano 3, número 24, SG Press Editora, Rio de Janeiro, 1997.

sábado, 4 de outubro de 2025

Problemas do Amor (91)

"... que vosso amor cresça cada vez mais no pleno conhecimento e em todo discernimento." - Paulo (FILIPENSES. 1:9.)


O amor é a força divina do Universo.

É imprescindível, porém, muita vigilância para que não a desviemos na justa aplicação.

Quando um homem se devota, de maneira absoluta, aos seus cofres perecíveis, essa energia, no coração dele, denomina-se "avareza"; quando se atormenta, de modo exclusivo, pela defesa do que possui, julgando-se o centro da vida, no lugar em que se encontra, essa mesma força converte-se nele em "egoísmo"; quando só vê motivos para louvar o que representa, o que sente e o que faz, com manifesto desrespeito pelos valores alheios, o sentimento que predomina em sua órbita chama-se "inveja".

Paulo, escrevendo a amorosa comunidade filipense, formula indicação de elevado alcance. Assegura que "o amor deve crescer, cada vez mais, no conhecimento e no discernimento, a fim de que o aprendiz possa aprovar as coisas que são excelente".

Instruamo-nos, pois, para conhecer.

Eduquemo-nos para discernir.

Cultura intelectual e aprimoramento moral são imperativos da vida, possibilitando-nos a manifestação do amor, no império da sublimação que nos aproxima de Deus.

Atendamos ao conselho apostólico e cresçamos em valores espirituais para a eternidade, porque muitas vezes, o nosso amor é simplesmente querer e tão-somente com o "querer" é possível desfigurar, impensadamente, os mais belos quadros da vida.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 28 de setembro de 2025

O último lírico Mário Quintana

Esta nova antologia de Mário Quintana, como as anteriores, não pretende substituir-se à sua obra ou dela extrair o melhor, o suco, a nata. Muito menos o essencial de sua poesia. Pela própria natureza de sua obra, qualquer antologia que dele se faça resulta em duas antologias: a do que foi incluído e a do que não foi incluído. Não intentei sequer estabelecer uma ordem de preferência, uma direção de leitura. O próprio poeta, na antologia de 1981, eliminou a cronologia dos poemas. Preocupei-me em escolher para um leitor de primeira viagem, sempre pensando na obra de Mário Quintana como um lado indivisível.

Essa obra é bastante peculiar por sua estreita unidade, cada poema é um fragmento do poema geral que Mário Quintana vem compondo ao longo de toda a sua vida. Dos sonetos de A Rua dos Cataventos, passando pela prosa lírica do Caderno H, até os livros mais recentes, como A Vaca e o Hipogrifo e Esconderijos do Tempo, sua obra mantém uma qualidade, marca, timbre, ressonância ou maneira que só posso definir como quintanidade. Muitos dos pequenos poemas em prosa ou verso de Quintana, isolados, pouco significam além de uma distração lúdica, um jogo sutil de percepção das coisas e dos seres. Mas dentro de sua obra, lado a lado com outras páginas, eles se iluminam repentinamente - o borrifo irisado da cachoeira vai juntar-se às águas profundas que correm para o estuário de sua poesia, sob cuja aparente amenidade às vezes se oculta um Estige assustador.

Uma antologia de Mário Quintana dificilmente podia deixar de fora todos ou quase todos os sonetos de seu memorável livro de estreia, A Rua dos Cataventos, ao qual ele ficou devendo sua instantânea popularidade. O tempo se encarregou de provar que esses sonetos, longe de refletirem um retardo na adoção de novos postulados estéticos, mostravam um tratamento novo dessa forma fixa, tornando-a mais fluida, mais dúctil, mais aberta. O soneto deixava de ser a forma, era um poema liberto das varas rituais.

Outro livro cuja inclusão in totum seria quase obrigatória é o pequenino Aprendiz de Feiticeiro, pouco mais que uma plaquete. Não posso negar minha especial admiração, diria até minha paixão, por esse livrinho, que passou um tanto quanto despercebido da crítica quando de seu lançamento em 1950 (hoje é uma raridade da qual ninguém se desfaz nem a peso de ouro). Essa admiração eu a partilhava com o saudoso Augusto Meyer, a quem tanto devo para a melhor compreensão da grandeza de Quintana, ele próprio, Augusto, um excelente poeta. Lembro-me de nossas infindáveis conversas a respeito do lírico de Alegrete, cidade que ele colocou no mapa literário brasileiro. Havia entre nós uma espécie de cumplicidade afetiva. Hoje me dou conta de que, para Augusto Meyer, a princípio deve ter parecido estranho que um jovem crítico nordestino se interessasse tão obsessivamente por dois poetas gaúchos bem gaúchos, que na melhor das hipóteses a crítica oficial considerava menores, e as novas gerações, na sua faina epigônica, deixavam de observar mais detidamente: o até hoje injustiçado Felipe d'Oliveira e Mário Quintana. Para alguns de meus companheiros de geração literária foi um verdadeiro choque meu artigo "Assassinemos o poeta", no qual confessei minha admiração pelo poeta do Aprendiz, contraposta ao cansaço, ao tédio pelas glórias convencionais de nossa poesia.

Um terceiro livro de Mário Quintana que considero indispensável a quem deseje penetrar no mundo fascinante de sua obra é o das Canções, publicado em 1946. Até hoje ainda me surpreende o fato de que, no meio de nossos milhares de exegetas universitários recém-formados, poucos se deram ao trabalho de mergulhar as mãos nessa verdadeira arca de preciosidades poéticas. Criou-se entre nós a mística de que só se deve estudar os autores difíceis, constituindo dificuldade, para esse critério, o hermetismo da linguagem, o inusitado do vocabulário e da sintaxe, que de fato permitem elocubrações e interpretações no mais das vezes gratuitas. Não só Mário Quintana, outros poetas e alguns romancistas brasileiros têm pago por parecerem demasiado fáceis para a sede decifratória de nossos escoliastas.

A verdade é que, sob o campo visual da poesia de Mário Quintana, se esconde uma teia infinita de raízes, um entrançado de sentidos, duplos sentidos, alusões. elipses, subentendidos, um código vivencial de cuja tradução o poeta é o único a possuir a chave. E sua aparente simplicidade formal, aos olhos de leitores mais atentos, encobre uma extraordinária riqueza de recursos poéticos, de sutilezas verbais, de soluções rímicas e rítmicas; revela-se também o conhecimento, por parte do poeta, das grandes fontes da poesia universal.

Os quintanólogos (são poucos, mas conhecem a matéria a fundo) estudam com particular atenção um quarto livro do poeta, que é o Sapato Florido (1948). É absolutamente essencial à compreensão do quintanismo. Por ser fragmentário e quase todo em prosa, sempre ocupa lugar menor nas antologias. Quintana cultiva um tipo de prosa poética que às vezes se confunde com o poema em prosa ou com o pequeno conto lírico. Não poucas vezes, tudo se resume a uma frase, uma linha: "As folhas enchem de ff as vogais do vento", um fragmento de verso: "... o dia exato alinha os seus cubos de vidro", uma alusão: "Sua vida era um tango argentino", que pode exigir do leitor algumas leituras: "Acabo de ver um negrinho comendo um ovo. Hein, Lin Yutang?". Pode conter uma sugestão retomada ou expandida em verso ou poema de outro livro.

Também Espelho Mágico (1951), conjunto de 111 quadras ou quartetos em que à filosofia da vida e da arte se mesclam notas de humor e cepticismo, é pobremente representada nas antologias de Quintana, inclusive nesta. Várias dessas páginas, sobretudo as mais amargas e as mais pitorescas - inevitável predileção do público! - correm hoje o Brasil anonimamente, o que é uma forma de incorporação à alma e à sabedoria popular.

Esses cinco primeiros livros foram reunidos pela Editora Globo em 1962 no volume Poesias. Este e a Antologia Poética que Rubem Braga organizou em 1966 foram decisivos para que Mário Quintana atingisse uma audiência nacional. Deixou de se o "poeta de Porto Alegre" para se transformar num dos grandes nomes da poesia brasileira, reconhecimento algo tardio mas sempre válido.

A Antologia Poética apresentou mais um importante aspecto: a inclusão dos Novos Poemas. Em 1976, o poeta voltaria a incluir esses poemas na coletânea Apontamentos de História Sobrenatural, dando assim organicidade à sua obra (afinal, antologia é antologia).

Em 1973 havia saído um volume de seu lendário Caderno H (título de sua seção no Correio do Povo), quase totalmente de prosa variada, vale dizer, sem a preocupação intrinsecamente poética do Sapato Florido. Uma dessas páginas, a Carta a um jovem poeta, que reproduzo na antologia, corresponde a um depoimento sobre a formação e a arte poética do escritor.

Mais recentes são os Quintanares (1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977) e Esconderijos do Tempo (1980). Em 1981 aparecia a Nova Antologia Poética, seleção dos livros anteriores.

Essa antologia tem uma particularidade. O poeta virtualmente remanejou sua obra, deixando de lado o tradicional critério de livro por livro. O resultado foi surpreendente. Revelou a extraordinária unidade da poesia de Mário Quintana, sua atualidade (no sentido de que um bom poema deve atravessar o tempo sem ficar datado) e a multiplicidade de sua inspiração. Assim, a imagem do poeta sai extremamente enriquecida, pode-se mesmo aventar a sugestão de que a Nova Antologia Poética é um novo livro de Mário Quintana. A sensação de novidade impregna até o leitor antigo, algo como uma peça musical com novo arranjo, novo acompanhamento ou transcrita para instrumentos novos. Alguns poemas como que florescem.

Louvei-me na lição do próprio poeta para não obedecer, também, à ordem cronológica dos poemas, misturando os livros. Meu pensamento inicial era dividir a antologia segundo uma subjetiva ordem temática: o poeta fala da poesia, o poeta fala do amor e da morte, o poeta lembra a infância, o poeta vê a paisagem, o poeta sorri, o poeta canta... Diluí a intenção original para evitar o artificialismo numa alheia, ou pior, o didatismo. Procurei, no entanto, exemplificar o elegíaco, o lírico, o descritivo, a prosa, o chiste, a recordação, a saudade. Tudo em Quintana é tão bom, que o leitor pode lê-lo em qualquer sentido, indiferente à numeração das páginas.

O Brasil, ao contrário do que muitos imaginam, tem produzido pouquíssimos poetas líricos. Talvez o último lírico puro que tivemos foi ainda Casimiro de Abreu. No correr dos séculos, poetas que podiam ter sido excelentes líricos, deixaram-se iludir pelo som cavernoso da tuba épica, escrevendo longos poemas que só nos enchem de tédio. Outros enveredaram pela poesia dramática, pela poesia patriótica, pelos hinos e pelas odes ("Nobre animal, o poeta"), sem que muita coisa restasse de tanto esforço bem intencionado. Mesmo as elegias, que já foram moda, só resistem quando um pouco mais que o talento as legitima.

Apesar da poesia lírica ser a que apresenta maior resistência à passagem do tempo, apurando-se e quintessenciando-se com esta (em mais de um sentido, a grande lírica do Ocidente foi produzida pelos trovadores medievais), os tratados de estética e os manuais de arte poética insistem na velha superstição dos gêneros maiores e menores, como se Homero, Virgílio, Dante e Camões houvessem deixado prole à altura. Os conteúdos da lírica, seu inato individualismo, sua aderência às emoções e seu imediatismo afetivo levam os teóricos à presunção de que o lírico seja um eterno disponível, um improvisador bem dotado, vivendo de inspirações momentâneas; ou, em linguagem mais moderna, um receptivo e não um produtor de mensagens, um recriador e não um criador. A verdade é bem outra: além do talento, do gênio, que marcam os grandes líricos, eles devem possuir rigoroso domínio da forma e ter uma agilidade criadora que lhes permita passar de um estado a outro, de uma inspiração a outra, sem afundar nos lugares-comuns que só fazem engrossar o lixo poético.

Um lirismo quase puro como o de Mário Quintana é raro em nossa poesia moderna. Ele soube manter-se fiel ao seu gênio poético, à sua vocação lírica, quando tantos em torno dele se esgotavam em caminhos equivocados. Autêntico, elaborado e musical, ele tornou-se o que é, não um dos maiores poetas brasileiros, como também um dos grandes líricos contemporâneos - irmão inteiros dessa família que se faz compreender em qualquer tempo e em qualquer Língua.


Texto de Fausto Cunha retirado do prefácio do livro Os Melhores Poemas de Mário Quintana, Global Editora, 3ª Edição, São Paulo, 1987.

domingo, 21 de setembro de 2025

É preciso romper a regra do silêncio

A questão da homossexualidade na nossa sociedade está mergulhada na hipocrisia. Em uma falsidade sofisticada, que faz mal para todo mundo e tanto mata quanto engorda. Ela sobrevive regulamentada por uma lei silenciosa, objetiva e eficaz, cujo texto diz apenas "não seja gay, se for, não fale". A regra condena gays e lésbicas a uma existência velada. Ou a uma não-existência. E, o pior, a gente aceita. Ninguém tem o poder de não ser gay, mas todos respeitam a segunda imposição, vivendo sua homossexualidade em silêncio, como um crime.

Nesses dois anos como editor da Sui Generis, pude ter a medida do alcance dessa norma, que nos obriga a ficar enrustidos às portas do século XXI. Repetida à exaustão, ela vale até nos veículos de comunicação. O Jornal do Brasil deu um bom exemplo. Na capa de 9 de maio, publicou foto da cantora Leila Pinheiro abraçada à atriz Cláudia Jimenez. O texto dizia que comemoravam a premiação de Guinga, vencedor de um Prêmio Sharp. Mas, por que estamparam elas ali tão íntimas se não ganharam prêmio algum? Na verdade, Jimenez vinha dando entrevistas sobre o fim de sua relação amorosa. O jornal completou a história, que nem sequer fora contada às claras, insinuando por meio da foto um reatamento. Essa era a mensagem consciente. Mais grave era a outra informação, silenciosa, que chegou e chega ao inconsciente do público sempre que o tema é tratado desta forma: homossexualismo é tão vergonhoso que não deve ser encarado abertamente.

Uma semana depois, a revista Super TV do JB entrevistou a atriz. O máximo de sinceridade obtido: "Eu não sou, eu estou", disse Jimenez. Mas, meu Deus! Não é o quê? Está o quê? Por que lésbica, gay, homossexual são palavras graves ao ponto de nem serem pronunciadas? O cantor Orlando Morais, marido de Glória Pires, disse-nos em entrevista: "Acho uma cretinice o repórter perguntar ao entrevistado se ele é homossexual." Por quê? Leviano, vil, antiético, covarde é um homossexual - anônimo ou famoso - aceitar a humilhação de viver escondido. Cretino, um sinônimo pouco inteligente, é achar mais seguro ficar calado, quando romper com a regra do silêncio significa tirar a sociedade desse ciclo hipócrita.

Revelar-se gay traduz um ato político no sentido maior. Difere do exibicionismo de expor a vida privada gratuitamente. Assumir-se é pensar no coletivo. Ajudar milhões de pessoas que, contaminadas pela ignorância, são impedidas de viver plenamente. Quando um gay anônimo respeitado se assume, coloca em choque preconceitos cultivados na família, vizinhança e trabalho. Quando uma pessoa famosa se assume, o efeito é multiplicador pelo tamanho da sua audiência. Se todos os gays e lésbicas agissem assim, daríamos fim a esse estranhamento.

Mas raros indivíduos se assumem. Comigo ocorreu o mesmo. Minha família fazia de conta que não sabia, eu fingia que não sabia que ela fingia que não sabia. A troco de quê fingíamos todos? Há quatro anos, quando eu e o meu atual namorado decidimos morar juntos, abri o jogo com meus pais, duas irmãs e um irmão. Alcancei a liberdade ao encerrar o ciclo de mentiras em que me envolvera desde a adolescente. Para eles, parece ter sido um alívio também. Hoje continuamos muito próximos, o que seria impossível se prosseguíssemos naquela hipocrisia.

A anulação do estranhamento funciona num curso simples. O estereótipo de marginal, sujo, frágil, vergonhoso não encaixava com o que minha família conhecia de mim. Dizer que eu era gay os levou a pensar nos próprios preconceitos. Logo concluíram que havia algo de errado com seus tabus, não comigo. Com meu irmão isso ficou mais claro. Professor e campeão de jiu-jítsu, envolvido desde os 11 anos nesse meio que preza a hipermasculinidade, ele é hoje, aos 21, um jovem hétero "desencanado. Não duvido que sua postura seria outra se algo não colocasse em choque o que sempre lhe disseram sobre bichas e viados (termos que, a propósito, nunca mais o ouvi usar para ofender alguém).

Os grandes resultados, entretanto, surgem de atitudes como a de Renato Russo, que influenciou gerações com sua postura assumida. É bem provável que fãs de Russo, que namoravam ao som de suas músicas, reconheçam mais facilmente a homossexualidade como algo moralmente válido do que seus pais, que cresceram tendo gays e lésbicas como uma abstração pecaminosa.


Texto de Nelson Feitosa publicado na Revista IstoÉ número 1447 de 25.06.1997, Editora Três, São Paulo.

sábado, 20 de setembro de 2025

Nem Uma Vírgula

Aquela sexta-feira 18 de agosto de 1967 foi especialmente tensa na redação do Caderno B. Pesava sobre nós uma dupla responsabilidade, inaugurar na manhã seguinte a presença do suplemento aos sábados e apresentar Clarice Lispector como cronista.

Ela disse logo a que vinha. Rompendo a tradição da crônica corrida, ocupou seu espaço na segunda página com vários textos curtos, uma verdadeira amostra daqueles que seriam seus temas centrais ao longo dos próximos seis anos: a relação mãe-filho, a revolta contra a resignação, a busca do eu, os desvãos do pensamento e a transformação do fato cotidiano em pura metafísica.

Desde o princípio Clarice me foi entregue. O editor do Caderno parecia ter medo dela, mas era uma reverência que se confundia com falta de jeito. Achou mais tranquilo me incumbir de recebê-la quando viesse eventualmente ao jornal, de fazer-lhe as comunicações necessárias, de atender o telefone quando ela ligava.

E, sobretudo, de receber seus textos e responsabilizar-me por eles.

Feliz fiquei com esse encargo. Desde a adolescência a admirava, e agora, textos semelhantes àqueles que eu havia lido na sua seção "Children's Corner" na revista Senhor, eram entregues em minhas mãos.

Não creio que Clarice tenha se lembrado que já nos conhecíamos, ou melhor, que eu já a conhecia. Era ainda novata no Jornal do Brasil, no dia em que nosso amigo comum, o jornalista Yllen Kerr, me disse que ia visitá-la, e perguntou se eu queria ir junto. Fomos. A empregada abriu a porta, sentamos na sala em penumbra. Clarice demorou justo o tempo para ser desejada. E veio.

Talvez por eu estar sentada, pareceu-me ainda mais alta do que era. Tinha presença imponente. E estava consciente do impacto provocado por sua estranha beleza. Nada nela era casual, tudo havia sido escolhido com cuidado - nos anos seguintes, jamais a veria sem maquiagem. A conversa aconteceu só entre ela e Yllen, uma conversa cheia de pausas, tateante, como se os dois estivessem andando sobre um fio. Ela fazia pausas que ele não se atrevia a interromper ou que interrompia exatamente quando ela retomava o discurso, então os dois paravam por instantes esperando o próximo passo. Eu, muda, a observava, acompanhando os gestos das mãos, reparando na escolha das pulseiras sem brilho, como se antigas ou rústicas, na roupa escura que se fundia na sala escura, só um abajur aceso.. Não foi uma visita longa nem íntima, mas inesquecível para mim.

E porque Alberto Dines, editor-chefe do Jornal do Brasil, a havia convidado a colaborar no Caderno B, eis que aquela escritora estupenda me pedia para ter cuidado com seus textos. Como se o contrário fosse possível.

No princípio da sua colaboração, veio à redação algumas vezes. Depois, nunca mais. Mandava os textos por uma funcionária, em um envelope grande de papel pardo, sempre igual, subscritado com aquela letra difícil, a única letra permitida pelo incêndio que havia lhe abocanhado a mão direita.

E cada vez, ao estender-me o envelope, a funcionária repetia a recomendação feita por Clarice, que eu tivesse cuidado com seus textos, porque precisava deles e não tinha cópia. Mas não era a voz da funcionária que eu ouvia, era a dela, que tantas vezes ao telefone havia me dito, com aquele seu modo de moer os "erres" na garganta, da sua impossibilidade de usar papel-carbono, porque "o carbono frrranze". Eu repetia o "frrranze" na cabeça e redobrava os cuidados.

Determinamos que uma caixa separada junto à mesa da editoria receberia só a colaboração semanal de Clarice. E levei a funcionária até aquela espécie de ninho, para que transmitisse a Clarice o carinho especial com que seu trabalho era tratado.

Assim mesmo, a funcionária continuou repetindo o mantra, que mais servia para tranquilizar a própria Clarice do que para nos pôr em alerta.

Anos depois, encontrando alguns daqueles textos de que havia sido íntima transferidos para o contexto de um ou outro romance, entendi ainda mais fundamente por que o fato de não ter cópia deixava Clarice tão ameaçada. Qualquer frase podia tornar-se insubstituível no futuro, nenhuma podia se perder.

Como secretária de texto do Caderno B, cabia-me o privilégio de ler Clarice antes que o texto fosse baixado para a oficina. Fazia mínimas correções dos erros de datilografia, não mais do que isso. Nem teria sido necessário. Entretanto, outro dos seus pedidos constantes era que recomendássemos aos revisores para não mexer em suas vírgulas. "Minha pontuação", disse ela mais de uma vez, "é a minha respiração". E durante todos os anos que durou sua presença no Caderno B, Clarice pôde respirar tranquila, nem uma vírgula foi tirada do lugar.


Texto (Prefácio) de Marina Colasanti retirado do livro Todas as Crônicas, de Clarice Lispector, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

Varonilmente (90)

 "Vigiai, estai firmes na fé, portai-vos varonilmente, sede fortes." - Paulo. (I CORÍNTIOS, 16:13.)


Vigiai na luta comum.

Permanecei firmes na fé, ante a tempestade.

Portai-vos varonilmente em todos os lances difíceis.

Sede fortes na dor, para guardar-lhe a lição de luz.

Reveste-se o conselho de Paulo aos coríntios, ainda hoje, de surpreendente oportunidade.

Para conquistarmos os valores substanciais da redenção, é imprescindível conservar a fortaleza de ânimo de quem confia no Senhor e em si mesmo.

Não vale a chuva de lágrimas despropositadas, ante a falta cometida.

Arrependermo-nos de qualquer gesto maligno é dever, mas pranteá-lo indefinidamente é roubar tempo ao serviço de retificação.

Certo, o mal deliberado é um crime, todavia, o erro impensado é ensinamento valioso, sempre que o homem se inclina aos desígnios do Senhor.

Sem resistência moral, no turbilhão de conflitos purificadores, o coração mais nobre se despedaça.

Não nos cabe, portanto, repousar no serviço de elevação.

É natural que venhamos a tropeçar muitas vezes.

É compreensível que nos firamos frequentemente nos espinhos da senda.

Lastimável, contudo, será a nossa situação toda vez que exigirmos rede macia de consolações indébitas, interrompendo a marcha para o Alto.

O cristão não é aprendiz de repouso falso. Discípulo de um Mestre que serviu sem acepção de pessoas até a cruz, compete-lhe trabalhar na sementeira e na seara do Infinito Bem, vigiando, ajudando e agindo varonilmente.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 14 de setembro de 2025

Em Nossa Marcha (89)

 "Perguntou-lhe Jesus: - Que queres que eu faça?" - (MARCOS, 10:51.)

Cada aprendiz em sua lição.

Cada trabalhador na tarefa que lhe foi cometida.

Cada vaso em sua utilidade.

Cada lutador com a prova necessária.

Assim, cada um de nós tem o testemunho individual no caminho da vida.

Por vezes, falhamos aos compromissos assumidos e nos endividamos infinitamente. No serviço reparador, todavia, clamamos pela misericórdia do Senhor, rogando-lhe compaixão e socorro.

A pergunta endereçada pelo Mestre ao cego de Jericó é, porém, bastante expressiva.

"Que queres que eu faça?"

A indagação deixa perceber que a posição melindrosa do interessado se ajustava aos imperativos da Lei.

Nada ocorre à revelia dos Divinos Desígnios.

Bartimeu, o cego, soube responder, solicitando visão. Entretanto, quanta gente roga acesso à presença do Salvador e, quando por ele interpelada, responde em prejuízo próprio?

Lembremo-nos de que, por vezes, perdemos a casa terrestre a fim de aprendermos o caminho da casa celeste; em muitas ocasiões, somos abandonados pelos mais agradáveis laços humanos, de maneira a retornarmos aos vínculos divinos; há épocas em que as feridas do corpo são chamadas a curar as chagas da alma, e situações em que a paralisia ensina a preciosidade do movimento

É natural peçamos o auxílio do Mestre em nossas dificuldades e dissabores; entrementes, não nos esqueçamos de trabalhar pelo bem, nas mais aflitivas passagens da retificação e da ascensão, convictos de que nos encontramos invariavelmente na mais justa e proveitosa oportunidade de trabalho que merecemos, e que talvez não saibamos, de pronto, escolher outra melhor.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 7 de setembro de 2025

Os Cavaleiros de Cristo

 Como uma ordem criada para proteger peregrinos se tornou a mais rica e próspera de toda Idade Média


O ano é 1118. Não existem muitas atrações turísticas na Europa. Alguns castelos, campos, fazendas, mas nada de muito espetacular. O que está na moda é a Terra Santa. Esse sim é o grande fascínio do século 12. Para lá confluem judeus e cristãos atrás dos grandes santuários e paisagens bíblicas. As viagens não são muito confortáveis. São dias, semanas e até meses para chegar da Europa Ocidental até Jerusalém. E o pior, você ainda corre o risco de ser esfaqueado por bandidos ou fanáticos islâmicos. A solução? Simples, criar uma ordem de guarda-costas para levar os fiéis em segurança até a região.

É esse o embrião da famosa Ordem dos Cavaleiros Templários: proteger e escoltar peregrinos. Evidentemente seus membros não eram modelos de santidade ou benevolência. Pertenciam à nobreza de espadachins, mas muitos historiadores os comparam a mercenários obcecados por dinheiro e aventuras.

Não demorou para que ganhassem fama e dinheiro. Além de respeitados pelas monarquias e aristocracias europeias, retornavam do Oriente cada vez mais ricos. Com o passar do tempo, muito deles se tornaram banqueiros de reis e papas, manobreiros de tesouros reais ou árbitros de conflitos internacionais. Seus métodos durante a escolta, porém, não eram muito nobres. Apossavam-se dos despojos dos infiéis e passaram a investir contra a vida dos que não eram cristãos.

Na cidade de Jerusalém também eram bem quistos. Os Templários foram acolhidos por Balduino II, rei de Jerusalém, e receberam as honras de cavaleiros de Cristo.

Diz a lenda que os Templários encontraram a arca perdida no templo de Salomão e passaram a proteger esse segredo com a própria vida.


AMBIÇÕES MEDIEVAIS

Claro que tamanha prosperidade acabaria por acender os olhos de monarcas mais ambiciosos, como o rei da França, Felipe IV. Conhecido como Felipe, o Belo, o rei é sempre lembrado nos livros de história como um ser humano de enorme vaidade e ambição. Filho de Isabel de Aragão, uma das mulheres mais belas de seu tempo, Felipe herdou um físico escultural e rosto de belas feições, daí então o gentílico de "o belo".

Mas para sua infelicidade, sua sorte era proporcionalmente contrária a sua ambição. O rei se meteu em guerras, atacou os domínios de conde Guido Dampierre e perdeu. Investiu contra Eduardo II, da Inglaterra, e perdeu. Tentou deter a emancipação de Flandres, e perdeu novamente. Para sustentar essa série de derrotas, Felipe IV praticamente derreteu todo o tesouro real. Seu povo foi reduzido à miséria. Fome, doenças e revoltas tomaram a França.

Acuado por essa situação limite, Felipe IV encontrou nos tesouros do Templários a salvação. Primeiramente, mandou um enviado a Roma propondo ao papa Bonifácio VIII (Bento Caetano) que dividissem os tesouros templários entre eles. Obviamente, o papa não aceitou. Não contente, o rei francês mandou outro mensageiro, dessa vez equipado da mesma proposta e mais uma série de ameaças. Mais uma vez o papa manteve a negativa. Além disso, ameaçou promover sansões católicas à corte francesa caso as chantagens do monarca continuassem. Não houve terceiro enviado.

Felipe IV mandou prender Bonifácio VIII, que morreu pouco tempo depois. Foi convocado então novo conclave para a eleição de um novo papa. O monarca então empregou todas as suas forças para que a eleição recaísse sobre um cardeal de sua confiança, o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, que depois de eleito adotou o título de Clemente V. Não contente com a eleição de um pontífice de sua confiança, Felipe IV mudou o endereço do papa de Roma para Avinhão, território francês.


O FIM ESTAVA PRÓXIMO

Feito tudo isso ficou fácil se apoderar dos tesouros dos Templários. Os membros do grupo foram considerados criminosos pelo novo papa e perseguido por toda Europa. A maioria de seus membros foi presa em uma operação secreta desencadeada numa sexta-feira 13 (data histórica que de tão famosa originou a lenda de mal presságio).

Jacques De Molay, o Grão Mestre da Ordem, havia sido chamado a Paris para uma comemoração. Sem saber que se tratava de uma armadilha, o mestre dos Templários foi recebido com pompa e honrarias e acabou sendo preso no segundo dia.

Ao mesmo tempo foram enviadas cartas por toda Europa com a ordem expressa de só serem abertas no dia 13 de setembro de 1307. Na carta, os Templários eram acusados de serem criminosos e os monarcas tinham ordens expressas de aprisionar e queimar todos os cavaleiros que encontrassem. Cerca de 15 mil homens foram presos e acusados de traição. A maioria morreu na fogueira.

Entre os mártires, estava De Molay, que ficou preso por sete anos em uma cela suja e úmida. Foi torturado durante todo esse tempo a fim de entregar líderes de outras ordens e documentos secretos. Mesmo sob forte sofrimento, morreu sem revelar nada. Alguns dizem que graças a esse ato de coragem, alguns Templários conseguiram fugir ilesos para Portugal, onde restauraram a Ordem, que manteve-se viva por mais centenas de anos

De Molay foi queimado em praça pública no dia 18 de março de 1314, em uma pequena Ilha do rio Sena. Morreu com 70 anos. Alguns relatos históricos dizem que antes de morrer, De Molay teria proferido uma praga em voz alta, dizendo que Felipe IV e o papa Clemente V não teriam mais do que um ano de vida antes de se depararem com o julgamento divino. Suas palavras foram: "Nekan, Adonai! Papa Clemente... Cavaleiro Guillaume de Nogaret... Rei Felipe... Intimo-os a comparecer perante o Tribunal de Juiz de todos nós dentro de um ano para receberdes o seu julgamento e o justo castigo. Malditos! Malditos! Todos malditos até a décima terceira geração de suas raças!"

Quarenta dias depois Felipe IV recebe uma mensagem: "O Papa Clemente V morrera em Roquemaure na madrugada de 19 para 20 de abril, por causa de uma infecção intestinal". Algum tempo depois o rei Felipe IV, o Belo, faleceu em 29 de novembro de 1314, com 46 anos de idade; caiu de um cavalo durante uma caçada em Fountainebleau.


INFLUÊNCIA

Após a morte de Felipe, a sua dinastia, que governava a França a mais de três séculos, perdeu força e prestígio. Junto a isso, veio a Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos, a qual tirou a dinastia dos Capetos do poder de uma vez por todas, passando para a dinastia dos Valois.

A acusação formal contra os Templários era a de que eles tinham se transformado em idólatras, hereges e até mesmo homossexuais. Mas nada pode ser comprovado, pois a maioria das acusações veio por meio de torturas e falsos testemunhos.

Os cavaleiros que conseguiram se exilar em Portugal criaram a "Ordem de Cristo", basicamente a mesma Ordem, mas com nome diferente. Durante muito tempo, os Templários tiveram forte influência na região da Península Ibérica, principalmente em Portugal. Uma das curiosidades que poucas pessoas sabem é que a famosa Cruz de Malta que decorou as caravelas do descobrimento era na verdade a Cruz Templária com outro nome.


TEMPLÁRIOS: TODOS OS MISTÉRIOS DA IDADE MÉDIA

Non Nobis, Domine Non Nobis, Sed Nomini Tuo Da Gloriam

A Ordem dos Cavaleiros Templários tinha a seguinte frase como lema: "Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao Vosso nome dai a glória". A partir de tal propósito e condutas sagradas, a Ordem se tornou, nos séculos seguintes, uma instituição de enorme poder político, militar e econômico.


Insígnia de Pobreza

O símbolo da Ordem era representado por dois cavaleiros montando o mesmo cavalo, simbolizando o voto de pobreza dos Cavaleiros Templários.


Santo Graal

No final do filme "Indiana Jones e a Última Cruzada", o personagem interpretado por Harrison Ford encontra um cavaleiro templário que bebeu no Santo Graal, ganhando o dom da vida eterna. Trata-se de uma referência à lenda de que os Cavaleiros Templários teriam encontrado em Jerusalém o cálice que teria sido utilizado tanto por Jesus Cristo na Última Ceia, quanto para coletar seu sangue após a crucificação.


Arquivos dos processos contra os Templários.

Em outubro de 2007, o Vaticano apresentou o livro "Processus Contra Templários", um terceiro volume da série Exemplaria Praetiosa. A obra foi elaborada a partir dos arquivos secretos do Vaticano e apresenta fac-símiles dos documentos originais, as atas do processo contra os Templários. A edição apresentada possuía apenas 799 exemplares, sendo amplamente requisitada por colecionadores, peritos, especialistas e bibliotecas de todas as partes do mundo.


Ordem de Cristo em Portugal

Em Portugal foi criada, em 1319, a Ordem de Cristo que teve como seu primeiro mestre o ex-mestre templário do País. Ou seja, manteve-se praticamente a mesma estrutura material e hierárquica da Ordem anterior, porém, agora, sob controle real. Os portugueses tinham boas relações com os Templários, principalmente pela ajuda recebida nas guerras de Reconquista que expulsaram os mouros da Península Ibérica.

Assim, a Ordem de Cristo emprestava seus recursos para a Coroa Portuguesa financiar seus progressos marítimos e transmitir seus conhecimentos técnicos conquistados nas navegações para a Escola de Sagres. Esse forte elo explica porque o símbolo das caravelas portuguesas foram pintados com a cruz templária.


Retirado do livro Sociedades Secretas, sem identificação de autoria de todos os textos, Editora Escala, Série Livros Escala, São Paulo, 2009.

sábado, 6 de setembro de 2025

Caindo em Si (88)

 "Caindo, porém, em si..." - (LUCAS, 15:17)

Este pequeno trecho da parábola do filho pródigo desperta valiosas considerações em torno da vida.

Judas sonhou com o domínio político do Evangelho, interessado na transformação compulsória das criaturas; contudo, quando caiu em si, era demasiado tarde, porque o Divino Amigo fora entregue a juízes cruéis.

Outras personagens da Boa Nova, porém, tornaram a si, a tempo de realizarem salvadora retificação.

Maria de Magdala pusera a vida íntima nas mãos de gênios perversos, todavia, caindo em si sob a influência do Cristo, observa o tempo perdido e conquista a mais elevada dignidade espiritual, por intermédio da humildade e da renunciação.

Pedro, intimidado ante as ameaças de perseguição e sofrimento, nega o Mestre Divino; entretanto, caindo em si, ao se lhe deparar o olhar compassivo de Jesus, chora amargamente e avança, resoluto, para a sua reabilitação no apostolado.

Paulo confia-se a desvairada paixão contra o Cristianismo e persegue, furioso, todas as manifestações do Evangelho nascente; no entanto, caindo em si, perante o chamado sublime do Senhor, penitencia-se dos seus erros e converte-se num dos mais brilhantes colaboradores do triunfo cristão.

Há grande massa de crentes de todos os matizes, nas mais diversas linhas de fé, todavia, reinam entre eles a perturbação e a dúvida, porque vivem mergulhados nas interpretações puramente verbalistas da revelação celeste, em gozos fantasistas, em mentiras da hora carnal ou imantados à casca da vida a que se prendem desavisados. Para eles, a alegria é o interesse imediatista satisfeito e a paz é a sensação passageira de bem-estar do corpo de carne, sem dor alguma, a fim de que possam comer e beber sem impedimento.

Cai, contudo, em ti mesmo, sob a bênção de Jesus e, transferindo-te, então, da inércia para o trabalho incessante pela tua redenção, observarás, surpreendido, como a vida é diferente.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

Os Segredos dos Mestres

 Como um sindicato de pedreiros da Idade Média se tornou a sociedade secreta mais influente de todos os tempos


Um rapaz vendado está prestes a passar pelo ritual de iniciação. Ele caminha sozinho, por um corredor escuro, até ser interceptado por outro homem com uma espada desembainhada. O ser misterioso solicita que ele tire seu casaco, a gravata e a seguir pede que despoje todo dinheiro e objetos de metal em uma caixa. Feito isso, ele diz em um tom ritualístico: "Caso encontre um companheiro maçom em situação aflitiva, lembre-se que foi recebido na ordem pobre, sem nenhum tostão e aja com a compaixão apropriada".

A perna esquerda

sábado, 30 de agosto de 2025

Os Disfarces de Eros

Trajetória paradoxal a daqueles que buscam explicar o fenômeno erótico. "O enigma do amor permanece", diria Reich ao fim de um ensaio destinado à compreensão científica do fenômeno. O erotismo é "uma imensa aleluia perdia num silêncio sem fim", confessaria Bataille em sua tentativa de verbalizar a experiência erótica. Silêncio, afasia, misticismo ou perplexidade parece ser o fim a que estão fadados aqueles que buscam rastrear os caminhos de Eros.

No entanto, são inúmeros os aventureiros que enveredaram por esta trilha. Nos campos da Filosofia e da Literatura a busca se estende desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias. A Psicanálise e a Medicina viriam, mais tarde, tentar atribuir um estatuto científico "ao grandioso criador". E embora para todos eles o enigma do amor permaneça insolúvel, há certos pontos em comum a que estudiosos chegaram que, se não levam à compreensão última de Eros, lançam ao menos algumas luzes em torno do fenômeno. A descoberta das articulações entre a repressão sexual e a dominação política, a que chegaram Reich e Marcuse, o discurso erótico como forma de "prazer e poder", analisado por Foucault e as relações entre erotismo e misticismo, estudadas por Bataille, funcionam como exemplo desta compulsão irrefreável na tentativa de entender Eros.

Parece-me que existe ao menos um ponto comum e essencial a que os estudiosos chegaram. Trata-se das relações entre continuidade e descontinuidade que estariam na base da experiência erótica e que implicariam a dialética de morte e vida em torno da qual o erotismo se articula. A tese platônica da divisão dos seres em duas partes e da trajetória de uma das metades em busca do seu correspondente desemboca na definição de eros como o unificador, o restaurador da "antiga perfeição". Essa ideia encontra ecos no pensamento de Rollo May, "Eros é o desejo, a ânsia e a eterna busca de expansão", de Freud, "desejo de união (ser um) com objetos no mundo", de D.H. Lawrence, "No amor, todas as coisas se misturam numa unidade de alegria e prazer" e de Bataille: "Nós somos seres descontínuos, indivíduos morrendo isoladamente numa aventura ininteligível, mas nós temos a nostalgia da continuidade perdida (...) A reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas ela envolve sua continuidade."

É, portanto, em torno desses impulsos antagônicos de morte e vida que o erotismo se articula. Ele nos dirige à morte, exatamente quando o que buscamos é perpetuar a vida, permanecer, continuar, prolongar indefinidamente o instante fugaz do gozo. Por isso a trajetória erótica é sempre absurda e obscura: ao tentar desafiar os limites da condição humana, Eros deve sucumbir, pois só na morte reside essa possibilidade remota de permanência, de continuidade. Ao sucumbir, Eros está dando origem a um novo tipo de vida, como o óvulo que, fecundado, dá origem a um novo ser. As novas formas de vida serão sempre incompletas, descontínuas e permanecerão nessa busca impossível que, fatalmente, as levará ao fim.

Estudar as manifestações do erotismo na literatura é, portanto, estudar também as relações dialéticas entre vida e morte que se desenvolvem nas trajetórias das personagens e que servem, muitas vezes, como ocorre na literatura realista, para encobrir, escamotear o fenômeno, numa época em que o decoro, a austeridade e o pudor literário não nos permitiam abrir as cortinas das alcovas.

O erotismo deve ser compreendido, pois, como fenômeno cultural, impulso consciente em que nos lançamos na tentativa de transcender os limites da existência. Não deve ser, por isso, confundido com qualquer atividade sexual, que só será erótica "quando não for simplesmente animal." Essa distinção é fundamental quando se pretende estudar o erotismo na literatura, pois aí os conceitos de erótico e pornográfico muitas vezes se confundem, já que esbarram em problema de ordem moral, religiosa e até política, variando de acordo com a cultura e com as necessidades dos diversos momentos históricos. Considerem-se as estratégias de controle da pornografia literária na era vitoriana nos Estados Unidos. A proibição da entrada das obras de Joyce no país, e das traduções de Boccacio e Casanova, nos dias de hoje compreendidos talvez como escritores de uma literatura de caráter erótico, mas nunca pornográfico, como se foram considerados na época, serve como exemplo da relatividade dessas noções.

As tentativas de conceituação do termo "pornografia", obedecem, evidentemente, a padrões de ordem moral (e o padrão estético, nesses casos, termina por confundir-se com o moral), dando origem, na maioria das vezes, a conceitos abstratos e arbitrários, impossíveis de detectar, como os da justiça inglesa da época: "Textos escritos com o único propósito de corromper a moral dos jovens, e com um teor capaz de chocar os sentimentos de decência de qualquer mente equilibrada." Igualmente absurdas eram as definições da justiça americana, que chegou a considerar como pornográficos quaisquer assuntos ou coisas que exibissem ou representassem visualmente pessoas ou animais mantendo relações sexuais. A maior parte desses argumentos esbarra em problemas de impossível resolução, como a penetração nas intenções de um autor ao escrever uma obra e é evidente que, em casos como esse, a última palavra seria dada a partir da maior ou menor flexibilidade dos critérios morais do juiz, vinculados, é claro, aos interesses da época.

Parece-me que as tentativas de delimitação de fronteiras entre erotismo e pornografia, em última análise, se misturam com as definições do artístico e do não artístico , não menos problemáticas. Obras que realizam a exploração do sexo com fim em si próprio, sem preocupações de caráter estético, são, em geral, consideradas como pornográficas, subliteratura. Obras que, a partir do sexo, abordam outros motivos e, por fim, transcendem o caráter exclusivamente sexual, são consideradas eróticas, literárias. Isso nos remete mais uma vez a Georges Bataille com sua definição da experiência erótica como a transcendência da experiência sexual rudimentar, animal.

Para o estudo do erotismo em dado período literário é, pois essencial que se adote uma perspectiva também histórica. O Realismo burguês pode ser compreendido, com Lúcia Miguel-Pereira, como o estilo que engloba os diversos movimentos do período Realista: O Realismo propriamente dito, o Naturalismo e o Regionalismo, que têm como unidade a tentativa de "fugir ao idealismo obedecendo em geral mais às ideias de seu tempo do que ao seu  temperamento". No estudo dos discursos eróticos dessa época estendi-me também ao Parnasianismo, por se tratar da manifestação do pensamento realista na poesia, e ao Simbolismo, com suas nuances de Decadentismo, já que esse estilo, contemporâneo dos demais, estrutura-se enquanto discurso do outro, enquanto reação ao pensamento positivista da época. Esses movimentos, apesar de obedecerem a uma "frouxa unidade essencial", como afirma a autora, desenvolvem-se através de uma "grande pluralidade de caminhos, de pontos de vista, de modos de escrever e de sentir", e é nessa diferença, nessa pluralidade, que se detectam as diversas falas de Eros.

O estudo do erotismo no Realismo burguês implica, portanto, a análise de diferentes discursos eróticos, produtos de uma época em que imperava uma burguesia cada vez mais poderosa, portadora de uma ideologia moralizadora, que buscava confiscar a sexualidade através da família conjugal: "No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se: o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos." Vinculando a existência de Eros à finalidade única da procriação, estavam garantidas a tranquilidade da família e a segurança do Estado. O sexo regulamentado mantinha, no canto escuro do quarto dos pais, equilíbrio e harmonia de toda uma sociedade. Numa época em que o pensamento burguês atinge o seu ápice, em que o trabalho e a mão-de-obra são cada vez mais requisitados em vista de uma industrialização crescente, seria de se esperar que os mecanismos de poder tentassem sufocar o erotismo, regulamentar a sexualidade, varrer da literatura os corpos nus, vestindo-os com palavras de bom tom e figurinos de bom gosto. As pesquisas de sexualidade sob uma perspectiva política já demonstraram que trabalho e erotismo se opõem, que "renúncia e dilação da satisfação constituem pré-requisitos do progresso."

No entanto, num estudo cuidadoso do Realismo burguês brasileiro, percebe-se que também aí o erotismo não está ausente. Subliminar, talvez, em alguma poesia parnasiana, canalizado para diferentes situações no romance e teatro realistas, mas nunca ausente. Evidente (e muitas vezes esvaziado por uma verbalização excessiva) na poesia simbolista, subvertendo a ordem nas obras de caráter decadente, e regulamentado, analisado, classificado e controlado através da scientis sexualis naturalista. Disfarçado, na maioria das vezes, mas nunca ausente.

Afinal, mesmo em tempos em que o decoro controlava os discursos o erotismo não poderia optar por desaparecer, já que ele existe na base de qualquer trabalho de arte, como existe na base da vida. Araripe Júnior, crítico da época, já havia pressentido isso, quando afirmou ser o "amor, ou melhor, a função genésica o elemento propulsor e inconsciente de toda e qualquer manifestação artística", e o eco de suas palavras pode ser ouvido em diversos perseguidores de Eros, como Bataille: "a poesia leva ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão de objetos distintos. Ela nos leva à eternidade, nos leva à morte, e, através da morte, à continuidade: a poesia é a eternidade".

O que pretendo, ao trilhar os caminhos de Eros nos diversos movimentos do Realismo burguês brasileiro, vai, portanto, um pouco além da simples constatação de sua existência nesse período. Estende-se à análise de seus discursos, à pesquisa de seus disfarces, ao desvendar de suas máscaras, numa época em que as máscaras eram necessárias para que Eros pudesse falar.


Texto de Lúcia Castello Branco retirado do livro Eros Travestido - um estudo do erotismo no realismo burguês brasileiro, Editora UFMG, Belo Horizonte, 1985.

Recebeste a Luz? (87)

 "Recebestes o Espírito Santo quando crestes?" - (ATOS, 19:2.)

O católico recolhe o sacramento do batismo e ganha um selo para identificação pessoal na estatística da Igreja a que pertence.

O reformista das letras evangélicas entra no mesmo cerimonial e conquista um número de  cadastro religioso do templo a que se filia.

O espiritista incorpora-se a essa ou àquela entidade consagrada à nossa Doutrina Consoladora e participa verbalmente do trabalho renovador.

Todos esses aprendizes da escola cristã se reconfortam e se rejubilam.

Uns partilham o contentamento da mesa eucarística que lhes aviva a esperança no Céu; outros cantam, em conjunto, exaltando a Divina Bondade, aliciando largo material de estímulo na jornada santificante; outros, ainda, se reúnem, ao redor da prece ardente, e recebem mensagens luminosas e reveladoras de emissários celestiais, que lhe consolidam a convicção na imortalidade, além...

Todas essas posições, contudo, são de proveito, consolação e vantagem.

É imperioso reconhecer, porém, que se a semente à auxiliada pela adubação, pela água e pelo sol, é obrigada a trabalhar, dentro de si mesma, a fim de produzir.

Medita, pois, na sublimidade da indagação apostólica: - "Recebeste o Espírito Santo quando creste?"

Vale-te da revelação com que a fé te beneficia e santifica o teu caminho, espalhando o bem.

Tua vida pode converter-se num manancial de bênçãos para os outros e para tua alma, se te aplicares, em verdade, ao Mestre do Amor. Lembra-te de que não és quem espera pela Divina Luz. É a Divina Luz, força do Céu ao teu lado, que permanece esperando por ti.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

domingo, 24 de agosto de 2025

Introdução do Livro "1808"

O Brasil foi descoberto em 1500, mas, de verdade, só foi inventado como país em 1808. Foi quando a família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro fugindo das tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte. Até então, o Brasil ainda não existia.

Pelo menos, não como é hoje: um país integrado, de dimensões continentais, fronteiras bem definidas e habitantes que se identificam como brasileiros. Até 1807, era apenas uma grande fazenda, de onde Portugal tirava produtos que levava embora. Ou seja, uma colônia extrativista, sem qualquer noção de identidade nacional.

As diferentes províncias eram relativamente autônomas. Não havia comércio nem estradas, meios de comunicação, nem, praticamente, contato entre elas. Tinham como único ponto de referência em comum o Governo Português, que ficava lá em Lisboa, do outro lado do Atlântico.

A vinda da Corte transformaria radicalmente esse cenário. Uma semana depois do seu desembarque em Salvador, o regente D. João (que ainda não era João VI) anunciou a abertura dos portos. Além disso - uma medida muito importante -, na chegada ao Rio de Janeiro, liberou o comércio e a indústria manufatureira, o que, na prática, era o fim do sistema colonial.

Antes disso, o Brasil não podia comerciar com nenhuma nação, a não ser com Portugal. E não podia fabricar nada por aqui - livros, sapatos, louça de casa, tecidos; tudo era comprado de Portugal ou por intermédio de Portugal. Eram três séculos de monopólio português que terminavam. Finalmente, o Brasil integrava-se ao sistema internacional de produção e comércio.

Foi o começo das grandes mudanças. Em apenas treze anos, entre a chegada e a partida da Corte, o Brasil deixou de ser uma colônia atrasada, proibida e ignorante, para se tornar uma nação independente. Nenhum outro período da história brasileira testemunhou mudanças tão profundas, tão decisivas, em tão pouco tempo.

Foi também um evento sem precedentes na história da humanidade. Nunca antes uma Corte europeia havia cruzado um oceano para viver e governar do outro lado do mundo. D. João foi o único soberano europeu a colocar os pés em terras americanas em mais de quatro séculos de dominação.

O propósito de 1808 - na sua edição original, lançada no Brasil em setembro de 2007 e em Portugal em fevereiro de 2008, e agora também nesta versão juvenil - é contribuir para que esse acontecimento, tão importante na história de ambos os países, se torne cada vez mais conhecido pelos leitores brasileiros e portugueses. Nesta nova versão, o texto de 1808 foi editado pela jornalista Denise Ortiz. As informações foram condensadas e, sempre que necessário, reordenadas para facilitar a compreensão. Nesse trabalho, feito com a orientação do autor, Denise teve o cuidado de preservar todos os detalhes fundamentais que compõem a história da Corte no Brasil, excluindo apenas alguns personagens e situações considerados acessórios. Os capítulos são ilustrados com cenas e personagens da época reproduzidos em aquarelas pela artista plástica Rita Bromberg Brugger. Gaúcha de Porto Alegre, Rita mora em Caxias do Sul e produz ilustrações com base em rigorosa pesquisa histórica.

Do mesmo modo, o texto de 1808, nas suas duas versões, é todo fundamentado em referências bibliográficas. O resultado pretende ser, ao mesmo tempo, atraente e educativo para os interessados em conhecer um pouco mais sobre a grande aventura da fuga da corte de D. João para o Brasil.


Introdução feito pelo autor do livro 1808, Laurentino Gomes (São Paulo, março de 2008); Edição Juvenil Ilustrada, Editora Planeta Jovem, São Paulo, 2015. O título do livro é 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.

sábado, 23 de agosto de 2025

Prefácio do livro A Tolice da Inteligência Brasileira

A realidade social não é visível a olho nu, o que significa que o mundo social não é transparente aos nossos olhos. Afinal, não são apenas os músculos dos olhos que nos permitem ver, existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, "selecionam" e "distorcem" o que os olhos veem, e "escondem" o que não deve ser visto. O leitor pode se perguntar: mas por que alguém faria isso? Por que existiria o interesse em esconder, distorcer ou, como dizemos na vida cotidiana, o interesse em "mentir" sobre como o mundo social realmente é? Ora, como diria o insuspeitado Max Weber, os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm "direito" à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio - mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança - necessita ser "legitimado", ou seja, aceito mesmo por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios.

Nas sociedades do passado o privilégio era aberto e religiosamente motivado: alguns tinham "sangue azul" por decisão supostamente divina, o que os legitimava terem acesso a todos os bens e recursos escassos. A sociedade moderna, no entanto, diz de si mesma que superou todos os privilégios injustos. Isso significa que os privilégios injustos de hoje não podem "aparecer" como privilégio, mas sim como, por exemplo, "mérito pessoal" de indivíduos mais capazes, sendo, portanto, supostamente justificável e merecido.

É isso que faz com que o mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando dependem do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do "convencimento", e não da "violência". Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma "violência simbólica" (Esta é uma noção do sociólogo francês Pierre Bourdieu para se diferenciar da noção de "ideologia" em Marx e enfatizar o trabalho da dominação social como tendo seu núcleo na tentativa de fazer o dominado aceitar por "convencimento" as razões da própria dominação.), perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da "violência física". é por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro, renda da terra ou aluguel.

A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere em grande medida para o bolso do 1% mais rico. Este livro é uma reflexão acerca do que torna possível desigualdade tão abissal e concentração de renda tão grotesca em um país formalmente democrático como o Brasil de hoje.

A tese central deste livro é que tamanha "violência simbólica" só é possível pelo sequestro da "inteligência brasileira" para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da "corrupção apenas do Estado".

E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado - concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro -, como o reino da virtude e da eficiência. E em um contexto no qual não existe fortuna de brasileiro que não tenha sido construída à sombra de financiamentos e privilégios estatais nem corrupção estatal sistemática sem conivência e estímulo do mercado. E também em um cenário em que as classes sociais que mais apoiam essa bandeira como se fosse sua - os extratos conservadores da classe média tradicional e setores ascendentes da nova classe trabalhadora - são precisamente as classes que mais sofrem com os bens e serviços superfaturados e de qualidade duvidosa que o 1% mais rico vende a elas. (Os serviços de telefonia celular no Brasil é um excelente exemplo que pode ser multiplicado para vários setores. Ramo privatizado no governo FHC em nome da "eficiência do mercado", apresenta uma das taxas de preço mais altas do mundo para um serviço de péssima qualidade e campeão de reclamações do PROCOM - em 2013, era um total de 172.000 reclamações. O mesmo acontece com o mercado automotivo: o preço que o brasileiro paga pelo automóvel chega a ser três vezes maior que nos outros países)

Não basta aos endinheirados controlar todos os grandes jornais e redes de TV para legitimar seus próprios interesses. Hoje em dia esses interesses precisam ser "justificados" de modo que pareçam "razoáveis" a fim de "convencer" os que são feitos de tolos por essas falsas justificações. Os endinheirados e poderosos têm que ser inteligentes o bastante para criar uma "ciência para seus interesses", como de fato construíram no Brasil, o que, espero, demonstraremos neste livro para além de qualquer dúvida. Afinal, a "ciência" - e os cientistas especialistas que a incorporam - é atualmente, quem herda o "prestígio" das grandes religiões do passado e diz o que é certo e o que é errado. Não existe notícia em jornal ou TV que não necessite do "aval" de um especialista.

É por isso que este livro parte da crítica da ciência social conservadora até hoje no Brasil como o fundamento último da dominação material e efetiva - que a grotesca divisão do PIB, ou seja, da riqueza social entre as pessoas, mostra tão bem - das classes do privilégio entre nós. A dominação social material e concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se "justificar" e convencer. E produzir "convencimento" é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado.

A ação combinada do "culturalismo conservador" com o "economicismo", os dois pilares da "inteligência brasileira" que criticaremos neste livro, leva a um extremo empobrecimento do debate político nacional. É preciso sempre levar em conta que, na sociedade contemporânea, a legitimação da dominação social é realizada pela "ciência" de modo semelhante à maneira como as grandes religiões do passado faziam nas sociedades tradicionais. São sempre ideias de intelectuais e especialistas que estão na base de programas de partido político, de planejamento do Estado, do que se ensina em salas de aula, do que se decide em tribunais e daquilo que se publica em jornais. Como a genealogia das ideias dominantes não é realizada ou explicitada, temos a impressão de que as ideias "brotam" espontaneamente. Isso não é verdade. São ideias-força de intelectuais e especialistas que se conectam a "interesses poderosos" e logram se "institucionalizar" como leitura dominante de toda uma sociedade sobre si mesma.

Este livro é uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização. Na verdade, tanto o culturalismo, com sua generalização da corrupção apenas do Estado como contraposta a um mercado supostamente virtuoso, quanto o economicismo, com sua leitura superficial e simplificadora da realidade, levam a um mesmo resultado. Essas duas leituras dominantes e complementares acarretam uma confusão das hierarquias a respeito das questões mais importantes da sociedade brasileira e uma superficialidade e fragmentação da própria percepção da realidade social.

Retira-se dos indivíduos a possibilidade de compreender a totalidade da sociedade e suas reais contradições e conflitos, os quais são substituídos por falsas questões. A fragmentação do conhecimento serve aos interesses dos que estão ganhando na sociedade, já que evitam sua mudança possível. A ação da mudança, a capacidade moral e política de escolher caminhos alternativos pela vontade de intervir no mundo, pressupõe "conhecimento do mundo" para não ser "escolha cega". É isso que faz com que todo conhecimento fragmentário e superficial seja necessariamente conservador. Ele ajuda a manter e justificar o que já existe. Mostraremos neste livro como essa justificação dos privilégios injustos se faz possível no Brasil pela continuação do culturalismo e do economicismo como leituras dominantes fragmentárias e superficiais de nossa realidade.

A "crítica das ideias" dominantes é a primeira trincheira de luta contra os "interesses dominantes" que se perpetuam por se travestirem de supostos interesses de todos. Esse é precisamente o nosso objetivo neste livro: apelar para a inteligência viva daqueles que foram feitos de tolos, ou seja, todos nós, vítimas de uma violência simbólica bem perpetrada. Nosso compromisso e desafio é fazê-lo de tal modo que qualquer leitor de boa vontade - que ama a verdade e percebe o esforço que sua conquista envolve - possa compreendê-lo. Ainda que a desconstrução do senso comum seja um desafio não só cognitivo, mas também emotivo - afinal, são visões de mundo que nos acostumamos a perceber como "nossas" -, nosso empenho foi eliminar do texto todo e qualquer vocabulário "técnico" dispensável. Normalmente a linguagem técnica dos especialistas só serve para criar um abismo entre estes e leigos, para proteger e "distinguir" o  especialista dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do conhecimento como mero "fetiche" do mesmo modo que se utilize o dinheiro na vida social: para "comprar" reconhecimento e legitimar privilégios.

Nosso esforço, ao contrário, foi utilizar o conhecimento como "arma de combate", para rearmar o cidadão que foi destituído das precondições para entender seu cotidiano e as lutas sociais, nas quais se encontra inserido sem o saber, para torná-lo sujeito de seu destino. O pressuposto é que as pessoas que foram feitas de "tolas" podem ser tão inteligentes na política quanto o são nas outras esferas da vida cotidiana e estão aptas a recuperar o que lhes foi tomado: a capacidade de refletir e julgar com autonomia e independência.


Prefácio de Jessé de Souza para o seu livro A Tolice da Inteligência Brasileira (ou como o país de deixa manipular pela elite), Leya Editora, São Paulo, 2015.