domingo, 29 de junho de 2025

Um Homem Público

Até que ponto terá sido compreensível para ele mesmo o seu próprio ato? Mal posso imaginar o seu desarvoramento solitário. Quando um ato irracional provoca monstruoso eco, o homem provavelmente se sente quase inocentado diante daquilo que seu grito provocou: de vibração em vibração, o desabar da avalanche. A verdade ele mesmo não sabe, talvez nunca saiba, pois já se afogou sob os pretextos. Ele foi "pessoal", o que é crime num homem público. O sacrifício de um líder ou de um santo ou de um artista - que chegaram àquilo que são exatamente por terem sido pessoais - é o de não o serem mais. A cruz de um homem é esquecer-se de sua própria dor. É nesse esquecer-se que acontece então o fato mais essencialmente humano, aquele que faz de um homem a humanidade: a dor própria adquire uma vastidão em que os outros todos cabem e onde se abrigam, são compreendidos; pelo que há de amor na renúncia da própria dor, os quase mortos se levantam. O verdadeiro sentido de Cristo seria a imitação de Cristo. O próprio Cristo foi a imitação de Cristo.

O Brasil inteiro poderia ter subido através do sofrimento daquele homem, através do que ele em si mesmo sabia sobre o medo, a ambição, e sobre a própria tendência ao desatino. Assim como a transcendência da vontade de matar está em, por se conhecer esse abismo, impedir que os outros matem. Mas aquele homem público se restringiu a si mesmo. Da grandeza dos defeitos humanos ele fez defeitos pequenos. Criminoso por pequenez. Era homem a ser ajudado, não a ajudar.


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2020.

Conversa com filho

- Sabe, eu tinha vontade, mamãe, de experimentar às vezes ficar doido.

- Mas pra quê? (Eu sei, eu sei o que você vai dizer, sei porque em mim o meu bisavô deve ter dito o mesmo, eu sei que é através de quinze gerações que uma só pessoa se forma, e que essa pessoa futura me usou para me atravessar como a uma ponte e está usando meu filho e usará o filho de meu filho, assim como um pássaro pousado numa seta que vagarosamente avança.)

- Pra me libertar, assim eu ficava livre...

(Mas haverá a liberdade sem a prévia permissão da loucura. Nós ainda não podemos: somos apenas os gradativos passos dela, dessa pessoa que vem.)


Crônica de Clarice Lispector retirada do livro Para Não Esquecer, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2020.

sábado, 28 de junho de 2025

Conclusão (6)

Podemos dizer, de modo geral e simples, que o isolamento é a falta de companhia dos outros e que na solidão o indivíduo adota a si mesmo como companhia (independentemente de já possuir ou não outra companhia).

Quando uma pessoa diz que ficou sozinha (no isolamento), está indicando uma vivência que pode ter sido prazerosa ou não. Mas, quando afirma: senti solidão, está sempre dizendo que passou por uma experiência que, sob algum aspecto pelo menos, lhe foi desagradável.

Como já foi dito, o que desagrada, na solidão, é este procedimento costumeiro, que tem a pessoa humana, de ficar escarafunchando a sua própria vida para se criticar. E, como isso é expressão de sua finitude, jamais terá um ponto final.

Consequentemente, é ilusório supor que em algum momento de sua vida o homem se encontrará num estado de alma paradisíaco em que não encontrará pelo menos alguns instantes de solidão. Neste caso, a solução do problema consiste em prevenir ou atenuar seu aguçamento e saber como conviver com ela nos momentos de crise.

Para alcançar este objetivo, o indivíduo pode se utilizar dos expedientes mais variados: fugir do ensimesmamento, dedicar-se a atividades úteis, procurar o diálogo com outras pessoas e com Deus etc. Entretanto, a solução que parece mais eficaz consiste no indivíduo realizar em si mesmo um trabalho de aperfeiçoamento pessoal, tornando-se mais coerente consigo. Crescendo, assim, em autenticidade, elevar-se-á inevitavelmente a sua autoestima. E gostando de si, tornará a sua companhia agradável e compensadora para si mesmo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

Sigamos a Paz (79)

 "Busque a paz e siga-a." - Pedro. (I PEDRO, 3:11.)


Há muita gente que busca a paz; raras pessoas, porém, tentam segui-la.

Companheiros existem que desejam a tranquilidade por todos os meios e suspiram por ela, situando-a em diversas posições da vida, contudo, expulsam-na de si mesmos, tão logo lhes confere o Senhor as dádivas solicitadas.

Esse pede a fortuna material, acreditando seja a portadora da paz ambicionada, todavia, com o aparecimento do dinheiro farto, tortura-se em mil problemas, por não saber distribuir, ajudar, administrar e gastar com simplicidade.

Outro roga a bênção do casamento, mas, quando o Céu lha concede, não sabe ser irmão da companheira que o Pai lhe confiou, perdendo-se através das exasperações de toda sorte.

Outro, ainda, reclama títulos especiais de confiança em expressivas tarefas de utilidade pública, mas, em se vendo honrado com a popularidade e com a expectativa de muitos, repele as bênçãos do trabalho e recua espavorido.

Paz não é indolência do corpo. É saúde e alegria do espírito.

Se é verdade que toda criatura a busca, a seu modo, é imperioso reconhecer, no entanto, que a paz legítima resulta do equilíbrio entre os nossos desejos e os propósitos do Senhor, na posição em que nos encontramos.

Recebido o trabalho que a Confiança Celeste nos permite efetuar, é imprescindível saibamos usar a oportunidade em favor de nossa elevação e aprimoramento.

Disse Pedro - "Busque a paz e siga-a."

Todavia, não existe tranquilidade real sem Cristo em nós, dentro de qualquer situação em que estejamos situados, e a fórmula de integração da nossa alma com Jesus é invariável: - "Negue cada um a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me." Sem essa adaptação do nosso esforço de aprendizes humanos ao impulso renovador do Mestre Divino, ao invés de paz, teremos sempre renovada guerra, dentro do coração.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

É para lá que eu vou

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.

À ponta do lápis o traço.

Onde expira um pensamento está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.

Na ponta dos pés o salto.

Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.

Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? Eu vos espero. É para lá que vou.

Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei onde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? Ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre  procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.

É para o meu pobre nome que vou.

E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? A do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.

À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? Que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.

Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.

Oh, cachorro, cadê tua alma? Está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.

Que estou a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos sós.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro Onde Estiveres de Noite, Livraria Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1997.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Para vencer a solidão (5)

Há diversas maneiras de se considerar este assunto. De modo passageiro, como o tempo desta conferência permite, irei fazer breves alusões a três aspectos que considero os mais importantes.

O recurso mais frequente que se costuma recomendar às pessoas para vencerem a solidão é o aproveitamento útil dos tempos ociosos.

De fato, quando existe um tempo de ociosidade que se prolonga, o indivíduo é naturalmente impelido a ocupá-lo de qualquer maneira. E, neste caso, uma tendência muito comum a qualquer pessoa é a de ficar pensando em si. Ora, pelo fato de ser improdutiva, a ociosidade gera sentimentos de vacuidade e frustração, que podem deprimir o indivíduo. Pensar em si mesmo, neste clima interior, é, então, seguir um caminho destrutivo, que acentua os aspectos negativos da pessoa, gerando uma autocrítica impiedosa

O fato do indivíduo se ocupar em alguma coisa útil já possui, em si mesmo, uma força profilática, que o faz sair de seu casulo e aplicar sua atenção em algo que está fora, libertando-o, assim, da preocupação obsessiva consigo mesmo. Entretanto, este modo de agir só é eficaz se não significar uma forma ansiosa do indivíduo fugir de si. Não se pode vencer a solidão pela fuga, mas sim, pelo enfrentamento. E para que não ocorra este perigo, de ser apenas uma fuga, convém que a atividade, à qual o indivíduo se dedica, seja realmente de interesse para ele, exigindo seus esforços mas trazendo-lhe alegria e satisfação. Desta forma, estará a serviço de seu enriquecimento pessoal, não sendo um simples instrumento para ele se esquecer de si.

Uma solução mais consistente para vencermos a solidão é podermos descobrir um trabalho, uma obra, um ideal ou uma missão que deem um novo sentido à nossa vida e que nos empolgue de modo mais integral. Tal atividade estaria destinada a fomentar a autoestima de qualquer um, pois o diálogo que neste caso o indivíduo estabelecesse consigo mesmo teria a inclinação de ser inspirado no próprio valor de sua produtividade e de sua realização pessoal.

Outra maneira de vencer a solidão é buscar o encontro com outras pessoas. Neste caso, o que se procura não é um simples relacionamento e nem mesmo uma simples companhia, mas, sim,  que o outro seja capaz de acolher e de entender o que se passa com quem o procura. E, como, sem dúvida, a aceitação e a compreensão formam os traços mais expressivos do amor verdadeiro, então podemos afirmar que para vencer a solidão, o que o indivíduo realmente procura é ser amado pelo outro. É como se ele dissesse: - Não acredito em mim. Por favor, mostre-me que eu tenho valor, gostando de mim. Para quebrar a solidão do indivíduo que a procura, o essencial não é a pessoa dizer ou fazer alguma coisa de extraordinário, mas, com sinceridade, mostrar simplesmente que a presença dele traz contentamento; acolhendo-o, portanto, com simpatia.

Existem pessoas que reclamam de não encontrarem esta acolhida afetiva dos outros, quando dela precisam. Isso me faz lembrar de uma passagem da Sagrada Escritura, que diz: "Quem semeia ventos, colhe tempestades." De fato, os outros só podem gostar de nós, se formos capazes de criar uma condição favorável para que isso aconteça. Se, ao contrário, tratamos os outros de um modo rígido e indelicado, se não respeitamos e nem consideramos as pessoas, se nos tornamos aversivos pela maneira de nos relacionarmos, vamos, então colocarmo-nos numa ilha de isolamento, cercada de antipatia por todos os lados. Como é possível, na hora da solidão, encontrarmos alguém que nos aceite e compreenda?

Eu quero dizer o seguinte: pode haver diversas razões que levam a não contarmos com o apoio do outro na hora em que necessitamos. Algumas delas surgem de circunstâncias que não dependem de nós. Mas, com frequência esta falta de apoio indica apenas uma reação à nossa maneira de tratarmos as pessoas. Par o homem religioso, o diálogo mais importante, como ajuda para vencer a solidão, é aquele que se estabelece com Deus através da oração. A fé ensina que Ele é a Força, o Poder e a Sabedoria, que dele o indivíduo recebe a vida, e que, por Ele, jamais é abandonado. Sabe, ainda, que nele pode confiar, porque a sua aceitação e a sua compreensão não têm limites: Deus é Amor.

Finalmente, o modo mais definitivo e eficaz para o indivíduo vencer a solidão é pela procura do seu próprio aperfeiçoamento, de ser mais coerente consigo mesmo, de ser, na realidade, aquilo que é; numa palavra, de ser autêntico. Quanto mais ele for assim, mais terá um relacionamento construtivo consigo mesmo, mais gostará de si de maneira apropriada, mais terá uma autoestima elevada e autônoma, que se tornará fonte generosa do sentimento pessoal de autorrealização e de produtividade para o mundo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Por que a solidão nos causa medo? (4)

Rollo May, em O homem à procura de si mesmo, faz esta afirmação: "Não há dúvida que em todas as épocas a solidão foi temida e as pessoas dela procuraram fugir." E acrescenta mais à frente: "A diferença é que em nossa época o medo da solidão é muito mais intenso e as defesas contra ele - diversões, atividades sociais e 'amizades' - são mais rígidas e compulsivas".

O que nos causa medo quando estamos na solidão?

Mais do que o sentimento de abandono e desvalia em que nos encontramos, parece que nos causa medo o fato de ficarmos entregues a nós mesmos. Quando isso acontece - ficarmos sozinhos conosco - podemos nos tornar uma companhia desagradável e amarga. Sem o controle sobre os nossos pensamentos e sentimentos, que a presença dos outros nos faz ter, podemos ser inclinados a várias atitudes negativas: ficarmos lembrando dos diversos aspectos de situação passadas que nos foram inconvenientes e dolorosas; tornamo-nos críticos e cruéis do que já sentimos e fizemos; cobrarmos de nós, de forma impiedosa e ameaçadora, o que deveríamos ter feito ou não ter feito etc. Podemos, ainda, reclamar, de modo obsessivo e renitente, de sermos vazios e ineptos, por não termos sido capazes de impor uma orientação mais segura à nossa vida, ou de não termos modificado em proveito próprio o mundo em que vivemos. E, assim, povoamos a nossa consciência - às vezes mais e outras menos intensamente - de problemas, acusações, culpas, remorsos, fracassos e frustrações.

É justamente este procedimento, de tratarmos nós mesmos com tal rigor, que é, no meu ponto de vista, a fonte de toda a solidão. Neste caso, sentimo-nos desamparados por nós mesmos e ansiamos por alguém que nos venha socorrer, dando-nos o apoio que não nos demos. Quando nos tratamos bem, aceitando-nos, não sentimos solidão (embora, neste instante, possamos chamar de solidão ao isolamento em que nos encontramos; mas este é, na verdade, outra coisa) ou, para dizer mais exatamente, encontramos apenas  momentos de leve solidão. Estes são inevitáveis, pois como o ser humano é limitado; ninguém pode estar sempre tão satisfeito consigo mesmo a tal ponto de nunca se condenar ou recriminar, mesmo de maneira despropositada.

O tratamento inadequado que o indivíduo dá a si, criando as condições que geram solidão, produz também uma ansiedade que afeta a sua autoestima. Para uma vida produtiva e satisfatória, todos nós precisamos da consideração dos outros e da nossa própria consideração. Ao destratarmo-nos, afetamos o nosso autoapreço. E Maslow diz que " satisfação da necessidade de autoapreço leva a sentimentos de autoconfiança, valia, força, capacidade e suficiência, de ser útil e necessário no mundo. Mas a frustração desta necessidade produz sentimentos de inferioridade, debilidade ou impotência, que, por sua vez, dão lugar a reações desanimadoras e, inclusive, compensatórias e neuróticas.

É sobretudo por isso que a solidão dá medo, ansiedade, pelas críticas despropositadas que podemos fazer a nós, atingindo, deste modo, a nossa autoestima, deteriorando em nós a "autoconfiança, valia, força, capacidade e suficiência", e alimentando aqueles "sentimentos de inferioridade, debilidade ou impotência" que corroem e arruínam a nossa personalidade. Assim, em última análise, o medo que temos da solidão é o de sermos destruídos psicologicamente por nós mesmos.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

sábado, 21 de junho de 2025

Enxertia Divina (78)

 "Se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar." - Paulo. (ROMANOS, 11:23)


Toda criatura, em verdade, é uma planta espiritual, objeto de minucioso cuidado por parte do Divino Semeador.

Cada homem, qual ocorre ao vegetal, apresenta diferenciados períodos na existência.

Sementeira, germinação, adubação, desenvolvimento, utilidade, florescência, frutificação, colheita...

Nas vésperas do fruto, desvela-se o pomicultor, com mais carinho, pelo aprimoramento da árvore.

É imprescindível haja fartura e proveito.

Na luta espiritual, em identidade de circunstâncias, o Senhor adota iguais normais para conosco.

Atingindo o conhecimento, a razão e a experiência, o Pomicultor Celeste nos confere preciosos recursos de enxertia espiritual, com vistas à nossa sublimação para a vida eterna.

A cada novo dia de tua experiência humana, recebes valioso concurso para que os resultados da presente encarnação te enriqueçam de luz divina pela felicidade que transmites aos outros. És, contudo, uma "árvore consciente", com independência para aceitar ou não os elementos renovadores, com liberdade para registrar a bênção ou desprezá-la.

Repara, atentamente, quantas vezes te convoca o Sublime Semeador ao engrandecimento de ti mesmo.

A enxertia do Alto procura-nos através de mil modos.

Hoje, é na palestra edificante de um companheiro.

Amanhã, será num livro amigo.

Depois, virá por intermédio de uma dádiva aparentemente insignificante da senda.

Se guardas, pois, o propósito de elevação, aproveita a contribuição do Céu, iluminando e santificando o templo íntimo. Mas, se a incredulidade por enquanto te isola a mente, enovelando-te as forças no carretel do egoísmo, o enxerto de sublimação te buscará debalde, porque ainda não produzes, nos recessos do espírito, a seiva que favorece a Vida Abundante.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Formas de sentir-se sozinho (3)

Foi dito que o sentir-se sozinho pode ser uma característica tanto da solidão quanto do isolamento. Entretanto, assume, num e noutro casos, significados diferentes.

No isolamento, o indivíduo pode ser sozinho e: (1º) não perceber que está, quando, por exemplo, se encontra absorto numa tarefa que está fazendo; (2º) perceber e gostar, como acontece, por exemplo, com o homem religioso que prazerosamente se afasta dos outros para fazer sua oração; (3º) perceber e não gostar, como se dá com alguém que, por exemplo, se vê rejeitado do convívio de outras pessoas. Já na solidão, a consciência de estar sozinho persegue insistentemente o indivíduo, e ele vivencia com sentimentos marcantes de insatisfação e desagrado.

O sentir-se sozinho do isolamento é um dado objetivo, isto é, constitui um fato de realidade capaz de ser percebido, pelo menos por um observador que esteja atento. Deste modo, é possível verificar se uma pessoa está isolada ou não, mesmo que ela nada queira dizer sobre o assunto. Já o sentir-se sozinho da solidão não é um dado objetivo mas um estado de alma, que só pode ser conhecido adequadamente se a pessoa solitária nos comunicar e à medida em que fizer isso.

Embora sendo diferentes, o sentir-se sozinho do isolamento e o da solidão podem estar juntos e confundirem-se na mesma pessoa. Com frequência, o primeiro gera o segundo. Mas pode-se encontrar alguém que esteja isolado sem estar solitário, ou que esteja solitário sem estar isolado.

Para quebrar o isolamento, basta, pelo menos em tese (mas na prática pode não ser tão simples), haver algum contato com alguém. O pensamento e o desejo de quem vive isolado pode ser enunciado, talvez, esquematicamente, da seguinte maneira: "Não quero mais ficar sozinho. Por isso, preciso ver gente e procurar alguém para conversar e conviver". Provavelmente, está é a lógica contida nos apelos feitos por obras assistenciais para que as pessoas visitem crianças (em orfanatos), idosos (em casas de repouso), doentes (em hospitais) etc., pois, mesmo que não lhes levem qualquer presente, o simples fato de manifestarem interesse e de conversarem com eles é suficiente para quebrar o isolamento em que vivem.

Mas, quanto à solidão, só a companhia de alguém não é suficiente para vencê-la. De fato, a experiência nos prova que uma pessoa pode estar em relacionamento constante com outras e, no entanto, sentir-se profundamente sozinha. Podemos imaginar, por exemplo, o caso hipotético de um marido e sua mulher que, juntos, sentam-se à mesa para as refeições, conversam muitas vezes durante o dia e até dormem na mesma cama etc. e, apesar disso, pode um deles (ou os dois) afirmar que vive em permanente solidão. Ou, também, o caso de um religioso, que permanece solitário, embora vivendo cercado pelos irmãos de sua comunidade. Ou, finalmente, todos já ouvimos falar da solidão na multidão, em que o indivíduo, embora vivendo cercado de gente numa grande cidade, sente-se, no entanto, profundamente solitário.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O isolamento e a solidão (2)

Proponho, como base inicial para as nossas discussões posteriores, que façamos uma diferença, pelo menos didática, entre a solidão entendida no sentido amplo e a que é considerada no sentido estrito.

No sentido amplo, solidão equivale a isolamento, e indica uma situação em que o indivíduo (ou grupo) se encontra separado de outras pessoas. Significa, portanto, simplesmente isso: que o processo de relacionamento se encontra prejudicado por causa do rompimento ou diminuição do contato humano com os outros. Para a reflexão que estamos fazendo, o aspecto mais importante do isolamento está no seu correspondente psicológico, isto é, na repercussão que produz dentro da pessoa que, percebendo-se isolada, é acometida pelo sentimento de estar sozinha.

Com relação ao próprio isolamento, convém fazer ainda outra distinção, dizendo que pode ser estrutural e funcional.

O isolamento estrutural é comum a todos os seres humanos. A pessoa o sente porque é um indivíduo diferente dos outros, possuindo a sua originalidade, suas características peculiares e uma existência específica e singular. Baseia-se, portanto, na própria natureza de cada um. Os seus pontos extremos se encontram no nascimento e na morte: nascemos sozinhos e sozinhos morremos. Podemos acreditar que, no útero materno, não tínhamos solidão porque estávamos intimamente unidos à nossa mãe. Começamos, porém, a senti-la na hora do parto, quando fomos separados e nascemos para o mundo. Não parece ser este um dos significados do chamado trauma do nascimento? Igualmente, na hora da morte, ficamos também sozinhos, ao sermos separados de tudo e de todos, que deixamos neste mundo. A morte é um momento de solidão absoluta, mesmo para os que creem em um novo retorno à vida ou para os que acreditam que a separação durante a morte é apenas passageira (porque iremos ao encontro de Deus e daqueles que já se foram antes de nós; com eles nos encontraremos na outra vida, para nunca mais ficarmos sozinhos).

Há também outra maneira, à vezes bem aguda, de sentirmos este tipo de solidão no sentido amplo, à qual estamos nos referindo com o nome de isolamento estrutural. É quando precisamos fazer escolhas e tomar decisões, sobretudo as que são mais relevantes para a nossa vida. Nesta ocasião, os outros podem estar conosco e ajudar-nos até certo ponto. Mas há o instante nevrálgico em que todos nos deixam e não podem mesmo ficar conosco. Sentimo-nos, então, sozinhos, porque, na verdade ninguém pode escolher e nem decidir em nosso lugar. E é exatamente por isso que somos livres e donos de nós mesmos, porque podemos escolher e decidir. Quando, para fugirmos à solidão, permitimos que, pelo menos em assuntos graves, os outros façam escolhas e tomem decisões por nós, perdemos nossa liberdade e, mesmo sem termos consciência disso, submetemo-nos indevidamente aos outros, tornando-nos seus escravos, sob algum aspecto, ao fazermos aquilo que eles querem que façamos.

Outra forma de solidão no sentido amplo é o isolamento funcional. Neste caso, são as características que determinam o seu aparecimento, e podem ser as mais variadas possíveis. Assim, podemos falar de solidão, por motivo espacial ou geográfico, de um responsável por um farol marítimo, que vive sozinho numa ilha distante; por motivo de usos e costumes, de uma pessoa idosa que vive num ambiente só de jovens; por motivo cultural, de um estrangeiro que acaba de chegar a uma terra alheia; por motivo de preconceito, de um negro que precisa viver numa comunidade de brancos racistas etc. O indivíduo também pode, por si mesmo, procurar o isolamento, a fim de refletir, estudar, meditar, orar, realizar certas tarefas, fazer planos de vida, revê-los etc. Pode, ainda, buscá-lo para devanear, para "curtir" alegrias ou tristezas, sucessos ou fracassos, melancolia, remorso, vingança, amor ou para expressar mágoa, ressentimento, para fugir de ambiente que considera aversivo ou hostil etc. São, pois, inumeráveis os motivos que colocam o indivíduo em solidão ou que o fazem procurá-la.

Quero lembrar, de passagem, que este isolamento funcional é sempre relativo para os seres humanos pelo menos no sentido de que somos impelidos pela própria natureza a procurar a convivência com nosso semelhantes; o que, na verdade, sempre fazemos. O termo não assume, portanto, conotações radicais de uma ausência plena e permanente de relacionamento, mas indica simplesmente que a interação foi reduzida, embora possa chegar, em certos casos, a grau infinito. Cortes absolutos de contato podem acontecer por motivos patológicos ou, eventualmente, em situações extraordinárias que se opõem à vontade do homem, como, por exemplo, a de uma pessoa perdida na floresta amazônica.

É bom, também, levar em consideração que a necessidade de relacionamento nos seres humanos, mesmo em casos normais, varia de uma pessoa para outra. Alguns sentem mais premência de buscar a companhia de seus semelhantes do que outros. Por isso, ninguém pode se transformar, para os outros, em padrão da quantidade ou qualidade de relacionamento dizendo, por exemplo: - Se eu fiquei sozinho nesta situação, e por tanto tempo, por que você também não pode ficar?

A solidão no sentido estrito não visa diretamente o relacionamento com outras pessoas, mas a experiência interior de abandono.

Para falarmos da solidão, no sentido amplo, encontramos um termo equivalente, um sinônimo, que foi isolamento. Agora, para nos referirmos à solidão no sentido estrito, só existe esta palavra mesma: solidão. Assim usaremos os dois termos num e noutro sentidos.

O que caracteriza a solidão é a consciência que o indivíduo tem de estar sozinho, mas acompanhado de um sentimento penoso de desamparo e de uma carência premente de alguém que lhe possa dar apoio. Portanto, a percepção de estar sozinho, o sentimento de desamparo e a necessidade de alguém formam os três elementos constitutivos da solidão, interpenetrando-se e misturando-se. A maneira de vivenciá-los depende de quem os experimenta e do momento em que os experimenta.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

O significado da solidão humana (Introdução 1)

Durante todo o tempo em que fui professor desta Faculdade, por mais de 15 anos, não me recordo de ter havido um seminário, um simpósio e nem mesmo uma simples palestra, que tivesse dado aos alunos o ensejo de discutirem o tema da solidão. E, no entanto, todos sabem que o assunto é de muita relevância e de grande atualidade.

O fenômeno da solidão é universal no tempo e no espaço, atingindo todos os povos de todos os tempo. Estudá-lo é, pois, um bom caminho para se obter alguma compreensão da personalidade humana. Além disso, torna-se cada vez mais corrente a ideia de que a solidão é uma das características que mais acentuadamente  definem o homem moderno. Procurar entendê-la - tanto para os profissionais da Psicologia, como para vocês, futuros psicólogos, - é uma forma adequada e produtiva de captar os sinais dos tempos em que vivemos, a fim de descobrirmos o modo mais eficaz de prestarmos ajuda aos que vêm até nós na busca de serem socorridos.

Estes e outros motivos - que irão aparecendo progressivamente durante a minha conferência - fizeram nascer em mim, assim que recebi o honroso convite para participar deste encontro, a ideia de lhes propor, embora de maneira sumária como a tempo desta conferência permite, o meu ponto de vista sobre a solidão humana, a fim de termos a oportunidade de, juntos, analisá-lo e discuti-lo.


Texto de Franz Victor Rúdio retirado do livro Compreensão Humana e Ajuda ao Outro, Editora Vozes, Petrópolis, 1991.

Conferência de abertura do II Encontro de Psicologia do Vale do Paraíba, realizado na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, São Paulo. 

terça-feira, 17 de junho de 2025

Uma Amizade Sincera

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto devia ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas a amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficava sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.

Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.

Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para o seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios dos conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito, de passagem, com vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A Legião Estrangeira, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2019.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Ruído de Passos

Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

- Quando é que passa?

- Passa o quê, minha senhora?

- A coisa.

- Que coisa?

- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.

- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.

Olhou-o espantada.

- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!

- Não importa, minha senhora. É até morrer.

- Mas isso é o inferno!

- É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?

- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...

O médico olhou-a com piedade.

- Não há remédio, minha senhora.

- E se eu pagasse?

- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.

- E... E se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?

- É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.

A morte.

Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A via crucis do corpo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

domingo, 15 de junho de 2025

Nunca é tarde, sempre é tarde

Conseguiu aprontar-se mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia. Secretária. Sou uma secretária, pensou, procurando conscientizar-se. Não devo ser, no trabalho, nem bonita, nem feia. Devo me pintar, vestir-me bem, mas sem exagero. Beleza mesmo é pra fim de semana. Nem bonita, nem feia, disse consigo mesma. Concluiu que não havia tempo nem para o café. Cruzou a sala e o hall em disparada, na direção da porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe envolvida pelos vapores da cozinha, eu como alguma coisa lá mesmo. Sempre tem alguém com alguma bolachinha disponível. Café nunca falta. A mãe reclamou mais uma vez. Você acaba doente, Su. Assim não pode. Assim, não. Su, enlouquecida pela pressa, nada ouviu. Poucas vezes ouvia o que a mãe lhe dizia. Louca de pressa, ia sair, avançou a mão para a maçaneta da porta e assustou-se. A campainha tocou naquele exato momento. Quem haveria de ser àquela hora? A campainha era insistente. Aquele dedo nervoso apertava-a sem tréguas. A campainha. Su acordou finalmente com o tilintar vibrante do despertador Westclox e se deu conta de que sequer havia-se levantado. Raios. Tudo por fazer. Mesmo que acordasse em tempo, tinha sempre que correr, correr. Tinha tudo cronometrado, desde o levantar-se até o retoque do batom e o perfumezinho final. Exploit da Atkinsons. Perfume quente. Mais ou menos quente. Esqueceu onde havia deixado o relógio de pulso. Perambulou nervosamente pela casa procurando-o. Atrasou-se alguns preciosos minutos. A mãe achou-o sobre a mesinha do telefone. Su colocou-o no pulso. Viu as horas. Havia conseguido aprontar-se, mas não teve tempo de guardar o material de maquiagem espalhado sobre a penteadeira. Olhou-se no espelho. Nem bonita, nem feia, pensou. Vou ficar bonita mesmo só no sábado. Não havia tempo nem para o café. Cruzou em disparada a sala e o hall, em direção à porta de saída, ao mesmo tempo em que gritava para a mãe, bolachinha disponível. Avançou a mão para a fechadura e assustou-se com o toque insistente da campainha. Algum dedo nervoso. O Westclox. Su acordou e deu-se conta mais uma vez da trágica e permanente verdade de que ainda não estava pronta. Levantou-se de um ímpeto. Correu ao banheiro, voltou do banheiro, vestiu-se com a roupa estrategicamente deixada sobre a cadeira na noite anterior. Ao sentar-se mais uma vez frente ao espelho, notou que, embora não tivesse ainda se pintado, o material de maquiagem já estava espalhado sobre a penteadeira. O batom aberto e usado, o Exploit desastradamente destampado, evaporando. O despertador tocou novamente. Ou tocou finalmente? E estava com toda corda, pois demorou a silenciar. Mesmo assim, Su andou pela casa toda, tentando desesperadamente acordar-se. Ocorreu afinal a ideia de pedir ajuda à mãe. Estava, envolvida pelos vapores da cozinha, mostrou-se compreensiva. Esta bém, Su. Espere só um instantinho que eu vou lá no quarto te acordar.


Conto de Silvio Fiorani retirado do livro Contos Brasileiros Contemporâneos, organização de Julieta de Godoy Ladeira, Editora Moderna, Coleção Travessias, São Paulo, 1997.

sábado, 14 de junho de 2025

Pai Nosso (77)

 "Pai nosso..." - Jesus. (MATEUS, 6:9.)


A grandeza da prece dominical nunca será devidamente compreendida por nós que lhe recebemos as lições divinas.

Cada palavra, dentro dela, tem a fulguração de sublime luz.

De início, o Mestre Divino lança-lhe os fundamentos em Deus, ensinando que o Supremo Doador da Vida deve constituir, para nós todos, o princípio e a finalidade de nossas tarefas.

É necessário começar e continuar em Deus, associando nossos impulsos ao plano divino, a fim de que nosso trabalho não se perca no movimento ruinoso ou inútil.

O Espírito Universal do Pai há de presidir-nos o mais humilde esforço, na ação de pensar e falar, ensinar e fazer.

Em seguida, com um simples pronome possessivo, o Mestre exalta a comunidade.

Depois de Deus, a Humanidade será o tema fundamental de nossas vidas.

Compreenderemos as necessidades e as aflições, os males e as lutas de todos os que nos cercam ou estaremos segregados no egoísmo primitivista.

Todos os triunfos e fracassos que iluminam e obscurecem a Terra pertencem-nos, de algum modo.

Os soluços de um hemisfério repercutem no outro.

A dor do vizinho é uma advertência para a nossa casa.

O erro de um irmão, examinando nos fundamentos, é igualmente nosso, porque somos componentes imperfeitos de uma sociedade menos perfeita, gerando causas perigosas e, por isso, tragédias e falhas dos outros afetam-nos por dentro.

Quando entendemos semelhante realidade, o "império do eu" passa a incorporar-se por célula bendita à vida santificante.

Sem amor a Deus e à Humanidade, não estamos suficientemente seguros na oração.

Pai nosso... - disse Jesus para começar.

Pai do Universo... Nosso mundo...

Sem nos associarmos aos propósitos do Pai, na pequenina tarefa que nos foi permitido executar, nossa prece será, muitas vezes, simples repetição do "eu quero", invariavelmente cheio de desejos, mas quase sempre vazio de sensatez e de amor.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sobre o corte no Candomblé (Anexo 3)

Para contribuir para o diálogo a respeito do corte no candomblé, reproduzo a íntegra de uma carta publicada resumidamente no Jornal de Piracicaba de 23 de janeiro de 2011:

Muito oportuno, lúcido e realmente dialógico o artigo "Liberdade religiosa e sacrifício de animais", de Ivan Gabriel França de Negri. Com relação ao tema, este é um dos poucos textos publicados na imprensa que não agridem aqueles que pensam de maneira diferente de seus autores.

Com muita tristeza acompanhei no ano de 2010 a tentativa de parte da sociedade civil e de legisladores municipais de proibir o corte nos terreiros de candomblé da cidade. Por trás da "defesa dos direitos dos animais", preconceito religioso, rancor, incompreensão, falta de argumentos lógicos. Articulistas de jornais exaltados mostravam grande desconhecimento dos fundamentos do candomblé, dos orixás, de entidades, por vezes empregando termos, além de raivosos, altamente preconceituosos.

Conforme afirmo em meu livro Xirê: orikais - canto de amor aos orixás (Piracicaba: Limão Doce, 2010), "nos anos 90 li uma matéria num jornal de grande circulação nacional que tratava de tema polêmico, por vezes tabu: a não utilização de animais em rituais de candomblé. Isso à época me chamou muito a atenção, mas o tema foi deixado de lado. Não me recordo com precisão das referências da matéria, contudo tenho encontrado outras, esparsas, sobre Agenor Miranda e Mestre Didi apresentando ideias semelhantes". Anos depois, encontrei Iya Senzaruban e me iniciei no candomblé vegetariano, organizado por ela paulatinamente há quase 20 de seus mais de 45 anos de candomblé. Em sua casa (Ilê Iya Tunde), fui confirmado e saí ogã de Oxum.

Por nunca ter praticado ou vivenciado o corte, acredito ter imparcialidade suficiente para aqui deixar meu depoimento a favor dos  irmãos que veem suas práticas erroneamente condenadas , uma vez que aqueles que os desrespeitam não compreendem a função do corte no culto e na alimentação da própria comunidade dos terreiros e seu entorno. Se existe abuso e crueldade, que haja fiscalização legítima e democrática para coibir tais práticas. Sobre o tema, vale a pena ler em meu livro a respeito do cuidado com que os animais são geralmente criados nos terreiros, ao contrário do que acontece na maioria dos criadouros. Muitos dos rituais citados pelos detratores do candomblé, em Piracicaba, jamais aconteceram em qualquer ilê deste país. Infelizmente, no libelo contra os candomblecistas da cidade, palavras de Iya Senzaruban foram utilizadas descontextualizadas, transcritas de entrevistas.

O candomblé vegetariano não faz proselitismo. Conforme repito sempre, trata-se de "uma prática que respeita os fundamentos de outras tradições e amorosamente também exige respeito". Infelizmente somos discriminados por nossa opção de culto mais pelos próprios irmãos de candomblé do que por aqueles que comumente criticam o candomblé, mas jamais faríamos isso. Nossa forma de culto difere, mas nossa identidade é a mesma. O vegetarianismo no culto, assim como na alimentação, é uma opção pessoal/coletiva que não pode ser violentamente imposta a ninguém.

Neste início de ano, convido os irmãos a dialogarem com aqueles que cultuam orixás, sejam do candomblé, da umbanda (à qual pertenço hoje e que, em seus fundamentos, ao contrário do que se afirma ao léu e a despeito de algumas casas, não pratica o corte), de outras religiões, simpatizantes dos cultos e outros. Até mesmo para criticar é preciso conhecer. Ou se está fadado a dizer besteiras. Um célebre provérbio dos terreiros afirma "Enu eja pa eja". Em tradução livre do iorubá, "O peixe morre pela boca".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Como nascem os deuses (Anexo 2)

A seguir, apresenta-se um texto bastante elucidativo da pesquisadora e terapeuta Mirella Faur (2007), o qual pode tranquilamente aplicar-se aos orixás.

O panteão das tradições antigas resultou na interação dos dois princípios cósmicos universais: o masculino, representado pelo Pai Céu, e o feminino, personificado pela Mãe Terra. O casamento sagrado desses polos gerou formas energéticas secundárias, polarizadas pela influência das forças telúricas, cósmicas, planetárias e dos fenômenos da Natureza. Quando modeladas pela egrégora mental de um conjunto racial, tribal ou grupal, essas energias se manifestam como arquétipos divinos, imbuídos de características e atributos específicos e com apresentações e nomes que variam conforme o lugar de origem.

A existência e a sobrevivência dos arquétipos de determinado panteão dependem da intensidade com que são cultuados e da duração desse culto. Sem essa conexão e nutrição recíproca, as matrizes etéreas enfraquecem-se e acabam desaparecendo com o passar do tempo.

Apesar de as divindades dependerem da egrégora humana, elas não são mero furto de nossa imaginação: são expressões reais de poderosos campos energéticos e vórtices de energia cósmica. Elas existem em uma realidade diferente do mundo tridimensional, chamada pelos xamãs de nagual ou "realidade incomum" (ou extrafísica), e têm o poder de existir e agir independentemente da vontade humana.

Esses centros de energia cósmica, sutis e inteligentes, denominados divindades (sejam elas deuses, vibrações originais, devas ou orixás), supervisionam o livre-arbítrio coletivo e auxiliam nas decisões tomadas pelos indivíduos, dentro dos limites, valores e regras do ambiente ao qual pertencem. Isso significa que elas não interferem no livre-arbítrio, nem agem contra os interesses do agrupamento humano que as "criam" e que continua "alimentando-as" por meio de invocações, oferendas, cultos e rituais. Existe uma necessidade de intercâmbio energético permanente entre a origem e o resultado da criação, entre o criador e a criatura.

Uma divindade deixará de existir apenas quando não tiver mais nenhum ser humano que invoque sua presença ou acredite em sua existência. Quando isso ocorrer, o campo energético por ela  representado não se extingue no espaço, mas se desloca ou volta à sua origem, podendo servir como substrato para a criação de um novo arquétipo, em lugar ou tempo diferente.

Os deuses e as deusas não são arquétipos estáticos, eles evoluem e se modificam de acordo com o progresso cultural e tecnológico e a trajetória espiritual humana. As mudanças na percepção e interpretação de suas manifestações e a compreensão expandida de seus atributos e funções levam à readaptação dos mitos e a sua adaptação às novas necessidades mentais, psicológicas e sociais da comunidade à qual pertencem. São as projeções e as formas mentais humanas que determinam a "metamorfose" das divindades, que acompanham, de maneira simbiótica, o desenvolvimento de seu povo e o surgimento de novos valores e hábitos comportamentais, morais e sociais. Compreende-se, assim, o porquê das diferenças nos mitos de um mesmo deus ou deusa e os variados nomes a eles atribuídos.


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

sábado, 7 de junho de 2025

Orixás na Umbanda (Anexo 1)

De modo geral, a Umbanda não considera os orixás que descem ao terreiro energias e/ou forças supremas desprovidas de inteligência e individualidade. Na verdade (e os africanos assim já o consideravam), os orixás são ancestrais divinizados, que incorporam conforme a ancestralidade, as afinidades e a coroa de cada médium. No Brasil, teriam sido confundidos com os chamados imolês, isto é, divindades criadoras, acima das quais aparece um único deus: Olorum (Olodumaré ou Zâmbi). Na linguagem e na concepção umbandistas, portanto, quem incorpora numa gira de umbanda não são os orixás propriamente ditos, mas seus falangeiros. Tal concepção está de acordo com o conceito de ancestral (espírito) divinizado (e/ou evoluído) vivenciado pelos africanos que para cá foram trazidos como escravos. Mesmo que essa visão não seja consensual (há quem defenda que tais ancestrais já encarnaram, enquanto outros segmentos umbandistas rejeitam esse conceito), ao menos se admite no meio umbandista que o orixá que incorpora possui um grau adequado de adaptação à energia dos encarnados, o que seria incompatível para os orixás hierarquicamente superiores.

Na pesquisa feita por Miriam de Oxalá a respeito da ancestralidade e da divinização de ancestrais, aparece, dentre outras fontes, a célebre pesquisadora Olga Guidolle Cacciatore (1997), para quem os orixás são intermediários entre Olorum, ou melhor, entre seu representante (e filho) Oxalá e os homens. Muitos deles são antigos reis, rainhas ou heróis divinizados, os quais representam as vibrações das forças elementares da natureza - raios, trovões, ventos, tempestades, água, fenômenos naturais como o arco-íris, atividades econômicas primordiais do homem primitivo - caça, agricultura - ou minerais, como o ferro que tanto serviu a essas atividades de sobrevivência, assim como às de extermínio na guerra.

Entretanto, e como o tema está sempre aberto ao diálogo, à pesquisa, ao registro de impressões, conforme observa o médium umbandista e escritor Norberto Peixoto, é possível incorporar a forma-pensamento de um orixá, a qual é plasmada e mantida pelas mentes dos encarnados. Nas palavras do médium,

Era dia de sessão de preto-velho, estávamos na abertura dos trabalhos, na hora da defumação. O congá "repentinamente" ficou vibrado com o orixá Nanã, que é considerado a mãe maior dos orixás e o seu axé (força) é um dos sustentadores da egrégora da casa desde a sua fundação, formando par com Oxóssi. Faltavam poucos dias para o amaci (ritual de lavagem da cabeça com ervas maceradas), que tem por finalidade fortalecer a ligação dos médiuns com os orixás regentes e guias espirituais. Pedi um ponto cantado de Nanã Buruquê, antes dos cânticos habituais. Fiquei envolvido com uma energia lenta, mas firme. Fui transportado mentalmente para a beira de um lago lindíssimo e o orixá Nanã me "ocupou", como se entrasse em meu corpo astral ou se interpenetrasse com ele, havendo uma incorporação total.

(...)

Vou explicar com sinceridade e sem nenhuma comparação, como tanto vemos por aí, como se a manifestação de um ou outro (dos espíritos na umbanda versus dos orixás em outros cultos) fosse mais ou menos superior, conforme o pertencimento de quem os compara a uma ou outra religião. A "entidade" parecia um "robô", um autômato sem pensamento contínuo, levado pelo som e pelos gestos. Sem dúvida, houve uma intensa movimentação de energia benfeitora, mas durante a manifestação do orixá minha cabeça ficou mentalmente vazia, como se nenhuma outra mente ocupasse o corpo energético do orixá que dançava, o que acabei sabendo depois tratar-se de uma forma-pensamento plasmada e mantida "viva" pelas mentes dos encarnados.

No cotidiano dos terreiros, por vezes o vocábulo orixá é utilizado também para guias e entidades. Nessas casas, por exemplo, é comum ouvir alguém dizer antes de uma gira de pretos-velhos: "Precisamos preparar mais banquinhos, pois hoje temos muitos médiuns e, portanto, aumentará o número de orixás em terra".


Retirado do livro Para Conhecer o Candomblé, de Ademir Barbosa Júnior, Universo dos Livros, São Paulo, 2013.

Fermento Espiritual (76)

 "Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?" - Paulo. (I CORÍNTIOS, 5:6.)


O fermento é uma substância que excita outras substâncias, e nossa vida é sempre um fermento espiritual com que influenciamos as existências alheias.

Ninguém vive só.

Temos conosco milhares de expressões do pensamento dos outros e milhares de outras pessoas nos guardam a atuação mental, inevitavelmente.

Os raios de nossa influência entrosam-se com as emissões de quantos nos conhecem direta ou indiretamente, e pesam na balança do mundo para o bem ou para o mal.

Nossas palavras determinam palavras em quem nos ouve, e, toda vez que não formos sinceros, é provável que o interlocutor seja igualmente desleal.

Nossos modos e costumes geram modos e costumes da mesma natureza, em torno de nossos passos, mormente naqueles que se situam em posição inferior à nossa, nos círculos da experiência e do conhecimento.

Nossas atitudes e atos criam atitudes e atos do mesmo teor, em quantos nos rodeiam, porquanto aquilo que fazemos atinge o domínio da observação alheia, interferindo no centro de elaboração das forças mentais de nossos semelhantes.

O único processo, portanto, de reformar edificando é aceitar as sugestões do bem e praticá-las intensivamente, por intermédio de nossas ações.

Nas origens de nossas determinações, porém, reside a ideia.

A mente, em razão disso, é a sede de nossa atuação pessoal, onde estivermos.

Pensamento é fermentação espiritual. Em primeiro lugar estabelece atitudes, em segundo gera hábitos e, depois, governa expressões e palavras, através das quais a individualidade influencia na vida e no mundo. Regenerado, pois, o pensamento de um homem, o caminho que o conduz ao Senhor se lhe revela reto e limpo.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

A hora de partir

Mamãe Lua sabia que as pessoas não queriam morrer. Elas desejavam viver para sempre, como ela: nascendo, crescendo, minguando e reaparecendo toda-poderosa e cheia no céu. Então, em uma bela noite, mamãe Lua chamou um lagarto e pediu que ele fosse à Terra e dissesse para todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que a partir daquele dia todos acordariam e viveriam até o final dos tempos.

- Pode deixar, mamãe Lua! Vou avisar todo mundo - disse o lagarto, deixando-a tranquila, pois sua mensagem chegaria para as pessoas rapidamente.

E o lagarto foi caminhando, todo bonito e faceiro, sempre parando para olhar alguma coisa ou conversar com alguém, em vez de se concentrar em sua missão. Quando estava no meio do caminho, encontrou uma árvore carregada de frutas bem madurinhas. Subiu na árvore e comeu, comeu, até ficar com a barriga bem cheia. "Acho que vou descansar um pouquinho antes de continuar a minha viagem", pensou o lagarto. E ali mesmo, debaixo da árvore, dormiu.

A centopeia, que cuida para que a morte chegue no tempo certo a cada um, soube da mensagem que mamãe Lua havia enviado para a Terra. Preocupada, ela chamou um mongoose, um pequeno animal de pelo curto, muito ágil e esperto, e pediu:

- Corra até a Terra e diga a todos, homens, mulheres, meninos e meninas, que quando morrerem jamais voltarão a viver. Eles devem morrer para sempre!

O mongoose chegou rapidamente à Terra e avisou todas as pessoas que elas morreriam para sempre. Tempos depois, chegou o lagarto trazendo a mensagem da mamãe Lua. Mas já era tarde demais. As pessoas estavam muito tristes.

Mamãe Lua soube da situação e ficou muito brava com o lagarto:

- Onde já se viu?

E foi ela mesma falar com as pessoas.

- Eu não posso mudar a situação - lamentou. - A mensagem da centopeia chegou primeiro. Mas digo que, mais do que nunca, vocês devem viver intensamente cada momento, com muito amor e respeito à vida que existe em cada pessoa, bicho, planta, em cada grão de terra, em todo o universo. Porque todos nós somos um. Estamos ligados pela grande força da vida.

Mamãe Lua abriu um grande sorriso e continuou:

- E quando chegar o dia de vocês partirem para a Terra dos Espíritos dos seus antepassados vocês viverão para sempre por meio das coisas que realizarem aqui, do amor que alimentarem e da vida que continuará nascendo, crescendo e morrendo neste planeta.

Uma paz imensa encheu o coração de toda a gente. E todos foram dormir porque o dia seguinte sempre será um novo dia.


Conto de Denise Carreira retirado do livro Lendas Africanas (E a força dos tambores cruzou o mar), Editora Salesiana, São Paulo, 2008.

sábado, 31 de maio de 2025

Administração (75)

 "Dá conta de tua administração." - Jesus. (LUCAS, 16:2)


Na essência, cada homem é servidor pelo trabalho que realiza na obra do Supremo Pai, e, simultaneamente, é administrador, porquanto cada criatura humana detém possibilidades enormes no plano em que moureja

Mordomo do mundo não é somente aquele que encanece os cabelos, à frente dos interesses coletivos, nas empresas públicas ou particulares, combatendo tricas mil, a fim de cumprir a missão a que se dedica.

Cada inteligência da Terra dará conta dos recursos que lhe forem confiados.

A fortuna e a autoridade não são valores únicos de que devemos dar conta hoje e amanhã.

O corpo é um templo sagrado.

A saúde física é um tesouro.

A oportunidade de trabalhar é uma bênção.

A possibilidade de servir é um obséquio divino.

O ensejo de aprender é uma porta libertadora.

O tempo é um patrimônio inestimável.

O lar é uma dádiva do Céu.

O amigo é um benfeitor.

A experiência benéfica é uma grande conquista.

A ocasião de viver em harmonia com o Senhor, com os semelhantes e com a Natureza é uma glória comum a todos.

A hora de ajudar os menos favorecidos de recursos ou entendimento é valiosa.

O chão para semear, a ignorância para se instruída e a dor para se consolada são apelos que o Céu envia sem palavras ao mundo inteiro.

Que fazes, portanto, dos talentos preciosos que repousam em teu coração, em tuas mãos e no teu caminho? Vela por tua própria tarefa no bem, diante do Eterno, porque chegará o momento em que o Poder Divino te pedirá: - "Dá conta de tua administração."


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

O estranho procedimento de dona Dolores

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo - pai, mãe, filho e filha - e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:

- Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.

O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.

- O que é isso, Dolores?

- Tá doida, mãe?

Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.

- Acho que a mamãe pirou de vez.

- Brincadeira dela...

A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.

- Adivinhem o que tem de sobremesa?

Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.

- Acertaram! - exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. - Gelatina Quero Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.

O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentados à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:

- Bote essa alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!

Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.

- A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isto, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.

- Dolores...

Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.

- Eles vão gostar.

O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.

- Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe tudo.

- Pare com isso, Dolores.

Mas dona Dolores não ouvia.

Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente da casa, mostrando para uma plateia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.

- Ela está nervosa, é isso.

- Claro. É uma fase. Passa logo.

- É melhor nem chamar a atenção dela.

- Isso. É nervos.

Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:

- Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.

Ou:

- Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.

Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.

- Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?

- O quê?

- Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.

- Dolores...

Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:

- Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da ciência à Natureza. Experimente!

Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.

- Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?

- Mãe, eu...

- Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.

O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na frente do toucador e falando para uma câmera que só ela via, enquanto passava creme no rosto.

- Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o fresco que o tempo levou, e que parecia perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.

Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmera, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmera.

- Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora, tudo pode acontecer...

Dona Dolores abraçou o marido. Que olhou para todos os lados antes de abraçá-la também. No dia seguinte certamente levaria a mulher a um médico. Por enquanto, pretendia aproveitar. Fazia tanto tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma câmera por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro A Velhinha de Taubaté, 9ª Edição, L&PM Editores, Porto Alegre, 1986.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando há Luz (74)

 "O amor do Cristo nos constrange." - Paulo. (II CORÍNTIOS, 5:14.)


Quando Jesus encontra santuário no coração de um homem, modifica-se-lhe a marcha inteiramente.

Não há mais lugar dentro dele para a adoração improdutiva, para a crença sem obras, para a fé inoperante.

Algo de indefinível na terrestre linguagem transtorna-lhe o espírito.

Categoriza-o a massa comum por desajustado, entretanto, o aprendiz do Evangelho, chegando a essa condição, sabe que o Trabalhador Divino como que lhe ocupa as profundidades do ser.

Renova-se-lhe toda a conceituação da existência.

O que ontem era prazer, hoje é ídolo quebrado.

O que  representava meta a atingir, é roteiro errado que ele deixa ao abandono.

Torna-se criatura fácil de contentar, mas muito difícil de agradar.

A voz do Mestre, persuasiva e doce, exorta-o a servir sem descanso.

Converte-se-lhe a alma num estuário maravilhoso, onde os padecimentos vão ter, buscando arrimo, e por isso sofre a constante pressão das dores alheias.

A própria vida física afigura-se-lhe um madeiro, em que o Mestre se aflige. É-lhe o corpo a cruz viva em que o Senhor se agita crucificado.

O único refúgio em que repousa é o trabalho perseverante no bem geral.

Insatisfeito, embora resignado; firme na fé, não obstante angustiado; servindo a todos, mas sozinho em si mesmo, segue, estrada a fora, impelido por ocultos e indescritíveis aguilhões...

Esse é o tipo de aprendiz que o amor do Cristo constrange, na feliz expressão de Paulo. Vergasta-o a luz celeste por dentro até que abandone as zonas inferiores em definitivo.

Para o mundo, será inadaptado e louco.

Para Jesus, é o vaso das bênçãos.

A flor é uma linda promessa, onde se encontre.

O fruto maduro, porém, é alimento para Hoje.

Felizes daqueles que espalham a esperança, mas bem-aventurados sejam os seguidores do Cristo que suam e padecem, dia a dia, para que seus irmãos se reconfortem e se alimentem no Senhor!


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O Recital

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação rigidamente formal - digamos, um recital de quarteto de cordas - e depois começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um recital de quarteto de cordas.

O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia. São três homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola. Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino, outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum detalhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar importante mais tarde, no conto. Ou não.

Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expectativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossidas da plateia. O primeiro violinista consulta seus pares com um olhar discreto. Estão todos prontos. O violinista coloca o instrumento sob o queixo e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...

Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco, por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da plateia pula das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisada e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-se firme em seu lugar até o último zebu - são profissionais e, mesmo, aquilo não pode estar acontecendo - começa a tocar. Nenhuma explicação é perdida ou oferecida. Segue o Mozart.

Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da confusão, uma pequena incongruência. Algo que crie apenas um mal-estar, de início e chegue lentamente, em etapas sucessivas, ao caos. Um morcego que pousa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.

Há um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelo. O primeiro violinista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:

- Por favor...

- O quê? - diz o homem da tuba, já na defensiva. - Vai dizer que eu não posso ficar aqui?

- O que o senhor quer?

- Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho.

Alguns risos da plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em seguida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:

- Retire-se, por favor.

- Por quê? Quero tocar também.

O primeiro violinista olha nervosamente para a plateia.

Nunca em toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo parecido. Um vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de Vivaldi. Mas nunca uma tuba.

- Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar Mozart. Não tem nenhuma parte para a tuba.

- Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.

Mais risos da plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aquele homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas versões veste uma camiseta do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos lábios e ameaça:

- Se alguém se aproximar de mim eu toco pof!

A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.

- Está bem - diz o primeiro violinista. - Vamos conversar. Você, obviamente, entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.

-Mozart não sabe o que está perdendo - diz o tocador de tuba, rindo para a plateia e tentando conquistar a sua simpatia.

Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom. Torna-se ameaçador:

- Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mozart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão interrogados. Um a um, pá-pá.

Torna-se suplicante:

- Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou humilde. Não pude estudar instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba, de um Volkswagen velho. Deixa...

Num tom sedutor, para a violista:

- Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua imaginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico, é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você quer ser violada por mim num alegro assai, confessa...

Finalmente, desafiador, para o violoncelista:

- Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que eu usava em 1968. Devolve!

O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros do quarteto entram na briga. A plateia agora grita e pula. É o caos! Simbolizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início com o Iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou, ainda, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o tocador de tuba para de morder a perna do segundo violinista, abre os braços e grita: "Mamãe!"

Nisso, entra no palco uma manada de zebus.


Texto de Luís Fernando Veríssimo retirado do livro O Analista de Bagé, L&PM Editora, 55ª Edição, Porto Alegre, 1982.