Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer tudo
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d'água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez, à noite
Quase palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra
Música de Chico Buarque, do CD Uma Palavra, lançado em 1995.
domingo, 26 de julho de 2020
sábado, 25 de julho de 2020
Camaleão Vaidoso
Camaleão vaidoso
No meio das foia parada
Não podia ser visto
Nem quando o vento soprava
Pois carregava na pele
A sina da vida camuflada
Beleza, que não é vista, não serve
Não tem valor pra nada
Usava suas cores
De um modo particular
Mas o que parecia é que as foia
É quem se fazia mudar
Mudava e escondia o bicho
Mas era por admirar
O seu jeito esquisito de ser, de viver e de amar
Triste por não ser visto
Nem no olho do araçá
Sua beleza morria com as horas
Por não poder se mostrar
Do alto mirou o abismo
Fazendo pose de voar
Como uma ordem divina do céu, saltou para cantar
No meio das foia parada
Não podia ser visto
Nem quando o vento soprava
Pois carregava na pele
A sina da vida camuflada
Beleza, que não é vista, não serve
Não tem valor pra nada
Usava suas cores
De um modo particular
Mas o que parecia é que as foia
É quem se fazia mudar
Mudava e escondia o bicho
Mas era por admirar
O seu jeito esquisito de ser, de viver e de amar
Triste por não ser visto
Nem no olho do araçá
Sua beleza morria com as horas
Por não poder se mostrar
Do alto mirou o abismo
Fazendo pose de voar
Como uma ordem divina do céu, saltou para cantar
Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.
Kirimurê*
Espelho virado ao céu
Espelho do mar de mim
Iara índia de mel
Deitada nas ondas brancas
Rendeira da beira da terra
Com a espume da esperança
Kirimurê linda varanda
De águas salgadas mansas
De águas salgadas mansas
Que mergulham dentro de mim
Meu Deus deixou de lembrança
Nas conchas dos sambaquis
Na fome da minha gente
E nos traços que guardo em mim
Minha voz é flecha ardente
Nos Catimbós que vivem aqui
Eira e beira
Onde era mata hoje é Bonfim
De onde meu povo espreitava baleias
É um farol que desnorteia a mim
Eira e beira
Um caboclo não é Serafim
Salvem as folhas brasileiras
Oh! Salvem as folhas pra mim
Se me derem a folha certa
E eu cantar como aprendi
Vou livrar a terra inteira
De tudo que é ruim
Eu sou o Dono da Terra
Eu sou o Caboclo daqui
Espelho do mar de mim
Iara índia de mel
Deitada nas ondas brancas
Rendeira da beira da terra
Com a espume da esperança
Kirimurê linda varanda
De águas salgadas mansas
De águas salgadas mansas
Que mergulham dentro de mim
Meu Deus deixou de lembrança
Nas conchas dos sambaquis
Na fome da minha gente
E nos traços que guardo em mim
Minha voz é flecha ardente
Nos Catimbós que vivem aqui
Eira e beira
Onde era mata hoje é Bonfim
De onde meu povo espreitava baleias
É um farol que desnorteia a mim
Eira e beira
Um caboclo não é Serafim
Salvem as folhas brasileiras
Oh! Salvem as folhas pra mim
Se me derem a folha certa
E eu cantar como aprendi
Vou livrar a terra inteira
De tudo que é ruim
Eu sou o Dono da Terra
Eu sou o Caboclo daqui
Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.
* Kirimurê, termo que significa, na língua dos tupinambás, "mar interior".
* Kirimurê, termo que significa, na língua dos tupinambás, "mar interior".
Jorge e o Dragão
Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão
O dragão perambula na cidade
Suas garras negras cravam na alma a dor
Labaredas saem das ventas da crueldade
Queimando as palhas da crença no amor
Sua cauda deixa rastros de tempestades
Inveja, mágoa, e aflição na fé
Espalha o cheiro podre do terror e da vaidade
É o dono das trevas que não quer a paz de pé
Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão
Das nuvens desce o santo guerreiro
Ogun, Oxossi, chamam o rei como quiser
A sua flecha tem a direção correta
A maldade abre o peito e tem vontade de morrer
Prosperidade, vitórias e amor
Não escolhe casa, credo nem calcula a fé
É a luz de Deus cavalgando aqui na Terra
Pra que o bem vença, acabe a tristeza, haja o que houver
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão
O dragão perambula na cidade
Suas garras negras cravam na alma a dor
Labaredas saem das ventas da crueldade
Queimando as palhas da crença no amor
Sua cauda deixa rastros de tempestades
Inveja, mágoa, e aflição na fé
Espalha o cheiro podre do terror e da vaidade
É o dono das trevas que não quer a paz de pé
Bate o atabaque
Bate o coração
Na hora do combate
De São Jorge com o dragão
Das nuvens desce o santo guerreiro
Ogun, Oxossi, chamam o rei como quiser
A sua flecha tem a direção correta
A maldade abre o peito e tem vontade de morrer
Prosperidade, vitórias e amor
Não escolhe casa, credo nem calcula a fé
É a luz de Deus cavalgando aqui na Terra
Pra que o bem vença, acabe a tristeza, haja o que houver
Música de J. Veloso e Jorge Mautner retirada do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.
Santo Antônio
Que seria de mim, meu Deus
Sem a fé em Antônio
A luz desceu do céu
Clareando o encanto
Da espada espelhada em Deus
Viva, viva o meu Santo
Saúde que foge
Volta por outro caminho
Amor que se perde
Nasce outro no ninho
Maldade que vem, vai
Vira flor da alegria
Trezena de junho
É tempo sagrado na minha Bahia
Antônio querido
Preciso do seu carinho
Se ando perdido
Mostre novo caminho
Nas suas pegadas, claras,
Trilho o meu destino
Estou nos seus braços
Como se fosse o Deus Menino
Sem a fé em Antônio
A luz desceu do céu
Clareando o encanto
Da espada espelhada em Deus
Viva, viva o meu Santo
Saúde que foge
Volta por outro caminho
Amor que se perde
Nasce outro no ninho
Maldade que vem, vai
Vira flor da alegria
Trezena de junho
É tempo sagrado na minha Bahia
Antônio querido
Preciso do seu carinho
Se ando perdido
Mostre novo caminho
Nas suas pegadas, claras,
Trilho o meu destino
Estou nos seus braços
Como se fosse o Deus Menino
Poema de J. Veloso retirado do livro Santo Antônio e outros cantos... Produção Editorial, 2010.
sexta-feira, 24 de julho de 2020
Educação Integral
A importância da educação transcende ao que lhe tem sido atribuído, em face do imediatismo dos objetivos que os métodos aplicados perseguem.
A falta de estrutura moral do educador - isto é, do equilíbrio psicológico e afetivo, das noções de responsabilidade e dever, da abnegação em favor do aprendiz, da paciência para repetir a lição até impregnar o ouvinte, sem irritação nem reprimenda, e do amor - constitui fator adverso ao êxito do empreendimento que é base de vida na construção do homem integral.
Quando se educa, são canalizados os valores latentes no indivíduo para o seu progresso, fornecendo os recursos que facultam a germinação dessas potências que dormem no cerne do ser.
Educar é libertar com responsabilidade e consciência de atitudes em relação ao educando, a si mesmo, ao próximo e à Humanidade.
Quando se reprimem e se impõem condicionamentos pela violência, uma reação em cadeia provoca a irrupção da revolta, que explode em atos de agressividade que asselvaja.
A tarefa da educação é, sobretudo, de iluminação de consciência, mediante a informação e vivência do conhecimento que se transmitem.
Quem educa evita a manifestação da delinquência e do desequilíbrio social, estabelecendo metas de promoção da vida.
A punição significa falência na área educativa.
A repressão representa insegurança educacional.
A reprovação demonstra fracasso metodológico.
O educando é material maleável, que aguarda modelagem própria para fixar os caracteres que conduzem à perfeição.
O educador cria hábitos, estimula atitudes, desenvolve aptidões, conduz. É o guia, hábil e gentil, ensinando sempre pela palavra e pelo exemplo, não se cansando nunca do ministério que abraça.
A escola é o prosseguimento do lar, e este é a escola abençoada na qual se fixam os valores condizentes com a dignidade e o engrandecimento ético-moral do ser.
A educação é fenômeno presente em todas as épocas. O pajé que ensina, o guru que orienta, o mestre que transmite lições são educadores diversos através dos tempos.
A verdadeira educação ocorre no íntimo do indivíduo, sendo um processo verdadeiramente transformador.
Qual semente que sai do fruto e, semelhante à vida que esplende saindo da semente, quando os fatores são-lhe propícios, a educação é mecanismo semelhante da vida a serviço da Vida.
É certo que o homem se apresenta imperfeito, por enquanto, todavia é, potencialmente, perfeito; e, à educação compete o papel de desenvolvê-lo.
A divina semente que nele jaz, a educação põe-se a germinar.
Sempre se educa e se sai educado, quando se está atento e predisposto ao ensino e à aprendizagem.
Todos somos educadores e educandos, conscientemente ou não.
A educação, porém, há que ser integral, do homem total.
Jesus, o Educador por Excelência, prossegue, paciente, amando-nos e educando-nos, havendo aceitado apenas o título de Mestre, porque, em verdade, O é.
Texto de Divaldo Franco, pelo espírito Joanna de Ângelis. Do livro Momentos de Meditação. Livraria Espírita Alvorada Editora, 3ª Edição, 2014.
quinta-feira, 23 de julho de 2020
Ser Ou Não Ser Don Juan
No próprio mito de Don Juan, sedutor contumaz, já se detectou o fenômeno da inflação fálica, com um componente peculiar: a constante mudança de parceiras seria, na verdade, um gesto de inflação fálica para afirmar a si mesmo uma virilidade ameaçada por pulsões homossexuais. Para o ensaísta e historiador espanhol Gregório Marañón, o dom-juanismo parece ser um fenômeno ligado à adolescência tanto física quanto psicológica. Esse mesmo traço juvenil é que comprova a frágil virilidade de Don Juan, "pois a adolescência é precisamente a idade da indeterminação, da vacilação normal do sexo" - e isso faria parte do fascínio que ele exerce nas mulheres. Segundo Marañón, muitos continuam sendo Don Juan até o fim da vida exatamente porque mantêm para sempre os traços dessa indeterminação juvenil. O fenômeno faz sentido, pois remete diretamente às idiossincrasias do puer aeternus. Mas há também o exibicionismo, que Marañón considera como "a reação psicológica que corresponde a uma deficiência específica" - não só de sua masculinidade mas também de sua paternidade, como no caso de outro mulherengo famoso, Giacomo Casanova de Seingalt, que não deixou descendência por ser supostamente estéril. Afinal, a boa mercadoria não precisa de propaganda, observa Marañón, citando um ditado espanhol. Além de trombetear suas façanhas, como se precisasse reafirmar publicamente uma virilidade insegura, Don Juan evita qualquer compromisso, ostentando outro claro traço de dubiedade: para realizar suas façanhas, ele está sempre viajando de cidade em cidade, quase em fuga. Enquadrando-se, portanto, naquele exemplar do macho mítico que vagueia sem rumo certo, sempre em busca da identidade masculina periclitante - que o filão do western americano tão bem captou. Daí porque não existiria Don Juan sem o cavalo veloz, com o qual ele foge e parte para a próxima conquista feminina. Em última análise, Don Juan ama as mulheres, mas não a mulher. Seu segredo é outro: o "sexo equívoco", nas palavras de Marañón. Para ele, a "virilidade equívoca" de Don Juan parece ser confirmada pelo físico de "indecisa varonilidade" daqueles que podem ser considerados, historicamente, exemplos clássicos de dom-juanismo. Assim, um dos possíveis personagens reais que inspiraram o primeiro Don Juan literário, no romance de Tirso de Molina, seria o sevilhano Don Miguel de Mañara, cujo retrato feito pelo conhecido pintor espanhol Murillo mostra um jovem com traços de linda donzela. Do mesmo modo, o único retrato autêntico que se conhece de Giacomo Casanova mostra-nos um homem de traços femininos perfeitos e delicados. "O modelo não parece um homem mas uma bela mulher, talvez porque Casanova se desejasse assim, em seu subconsciente", comenta Marañón. Observação semelhante pode ser feita sobre todos os Don Juan históricos conhecidos: são figuras muito distantes do protótipo grosseiro e enérgico do varão. Ao contrário, a apurada maneira de se vestir e os cuidados com a apresentação física borram ainda mais as fronteiras com o estereótipo de virilidade. Entre outros personagens históricos que inspiraram a figura literária de Don Juan, há um exemplo ainda mais eloquente: um certo Don Juan de Tassis, conde de Villamediana, que viveu em Madri no início do século XVII (contemporâneo, portanto, do escritor Tirso de Molina). Famoso por sua extraordinária beleza, elegância e capacidade de sedução, ele era também um valente toureiro e um sonetista pródigo. o que só vinha aumentar seus encantos. Teve um número lendário de amantes, a mais famosa das quais teria sido a própria rainha Isabel de Bourbón. Quando o conde Villamediana foi assassinado, o rei Felipe IV levou a cabo investigações que conduziram à surpreendente descoberta de uma verdadeira confraria de homossexuais, incluindo-se aí desde criados e bufões até senhores da aristocracia. Ao final de um processo judicial, os mais humildes foram condenados à morte e executados, conforme exigência da lei, enquanto os aristocratas partiram para o exílio. Ora, documentos secretos, que só neste século foram descobertos pelo historiador Alonso Cortés, indicam que Villamediana estava não só implicado no mesmo processo por "pecado nefando" (prática homossexual), mas era o próprio chefe do grupo. Entre esses documentos cuidadosamente guardados, constava inclusive uma ordem do próprio rei, exigindo que "por estar o conde já morto, guarde-se segredo do que existe contra ele, para não conspurcar sua memória". Graças a esse segredo que durou três séculos, segundo narra Marañón, criou-se a lenda de que Villamediana teria sido morto por vingança do rei, irritado com suas bravatas heterossexuais.
Quanto a Casanova, consta que teria sido fascinado por mulheres travestidas de homens - fato nada incomum em Veneza, sua cidade natal, onde as prostitutas de fato costumavam vestir-se de homens para atrair mais clientes. Isso pode nos fazer crer que "talvez as mulheres nunca tenham sido os verdadeiros objetos do seu desejo", na conclusão de Peter Trachtenberg. Como se daria esse processo tortuoso? O típico Don Juan vivenciaria a necessidade neurótica de possuir a mãe e destituir o pai, através de "um nascisismo em que se alternam grandiosidade, insegurança e estados psíquicos primitivos", como megalomania e paranóia. Ora, a interpretação freudiana dos homens afetiva e sexualmente insatisfeitos baseia-se na sua impossibilidade de superar a mãe como objeto sexual paterno: a procura obsessiva e posse nunca satisfatória de centenas de diferentes mulheres ocorre porque para eles nenhuma mulher consegue equivaler ao objeto de desejo do pai. Na busca da mãe, há portanto uma busca de definição do pai, do masculino. Ou seja, a obsessão em possuir a mãe remete diretamente ao desejo de desvendar através dela a identidade do pai para, assim, identificar-se com seu significante masculino, seu falo penetrador. Ao analisar o longo poema Don Juan de Byron (escrito em meio a aventuras dom-juanescas bissexuais), o psicanalista austríaco Otto Rank observa que aí a identificação de Don Juan com o pai "encontra sua expressão poética na primeira aventura amorosa do herói (...) com uma pessoa que simboliza nitidamente a mãe infiel". Portanto, a fixação dom-juanesca na figura da mãe seria, no fundo, uma fixação no pai, tentativa de apossar-se da mãe enquanto elemento por excelência que define e garante a virilidade paterna. Em outras palavras, a tentativa reiterada de possuir o objeto de desejo do pai é o mesmo que buscar a posse do seu falo. Nessa busca de identificação, Don Juan se considera narcisicamente o único objeto de amor possível: trai os maridos porque não pode, por sua própria natureza, ter um rival no amor, segundo Rank. Para voltar a Casanova, nas mulheres ele procura a figura do homem primeiro: seu verdadeiro objeto de desejo, por detrás das mulheres, seria o pai como sua primeira referência masculina, meta impossível de uma busca fálica obcecada e tortuosa. Nesse contexto, convém lembrar que, em suas memórias, Casanova mostra uma "absoluta secura sentimental" com as crianças. E isso talvez venha reforçar sua fantasia de ser o objeto erótico exclusivo perante o pai.
A psicanalista Melanie Klein acrescenta outros dados, na sua interpretação. A endêmica infidelidade do homem dom-juanesco não seria apenas a tentativa (frustrada) de reviver inconscientemente a mãe (seu objeto de amor inicial) em cada amante. Mais ainda: ele mudaria constantemente de parceira para evitar a dependência e assim defender-se do medo de uma nova perda da mãe - fato que já lhe trouxe tanta dor. O corolário kleiniano óbvio é que todo grande garanhão esconde um menino assustado. Mas parecem demasiado frágeis essas tentativas de reencontrar a mãe, ao mesmo tempo em que o macho afirma (ou tenta recuperar) seu falo. Ainda que constantemente buscada, uma tal "solução" à crise do masculino resulta inevitavelmente falsa e ineficaz, podendo levar à problematização e até dissolução de muitas uniões heterossexuais. Mesmo que encontre uma mulher no casamento, a tendência é o homem continuar buscando indefinidamente sua identidade, ao contrário da segurança conjugal que possa aparentar. Evidencia-se aqui também como o masculino tende a manter-se em permanente estado de crise e busca fálica.
É interessante apontar algumas encarnações do mito de Don Juan, com todos os seus paradoxos, nos dias atuais. Basta pensar nos grandes playboys internacionais ou em conquistadores notórios como o ex-presidente americano John Kennedy - que não poupava sequer o sexo masculino, como a imprensa tem revelado. Mas há exemplos sobretudo no cinema e na TV dos grandes estúdios, com seus astros exclusivos que foram tornados verdadeiros Don Juan, numa profusão que mascarava certa ausência. Do ator americano Marlon Brando corre a fama de que sua atividade de sedução exercia-se até mesmo nos camarins, durante intervalos das peças que representava. Só tardiamente seus biógrafos (assim chamados não-autorizados) revelaram inúmeros casos, às vezes tempestuosos, com homens. Entre nós, há igualmente uma vigilância sistemática mas dúbia, que às vezes permite lapsos freudianos, como no caso de Jece Valadão, machão brasileiro oficial e assumido. Numa entrevista tipo pingue-pongue, em 1990, ele teceu brilhantemente seu ideário. Depois de mencionar que nunca levou porrada na vida, mas sempre deu a primeira, elencou as coisas de que não gostava: "Jiló, mulher feia, mau-caratismo e homem banana. Sem falar em bicha." Perguntado sobre o que já fez de ilegal na vida, respondeu: "Se ilegal é tirar a virgindade, eu tirei 12. Sem contar os cinco casamentos, pois nenhuma delas era virgem." Quanto ao seu maior vício, confessa: É mulher. Continua sendo o meu único vício." No final, o jornalista lhe pergunta: "Se fosse uma mulher, qual a primeira coisa que faria?" A resposta de Jece Valadão foi curta e grossa: "Daria para todo mundo." A ambiguidade aí contida certamente deixa emergir a fantasia desejante mais secreta, e por isso mais poderosa, que o Don Juan acalenta no seu coração de conquistador.
Capítulo 7 do livro Seis Balas Num Buraco Só - a crise do masculino, de João Silvério Trevisan. Editora Record. 1998.
Quanto a Casanova, consta que teria sido fascinado por mulheres travestidas de homens - fato nada incomum em Veneza, sua cidade natal, onde as prostitutas de fato costumavam vestir-se de homens para atrair mais clientes. Isso pode nos fazer crer que "talvez as mulheres nunca tenham sido os verdadeiros objetos do seu desejo", na conclusão de Peter Trachtenberg. Como se daria esse processo tortuoso? O típico Don Juan vivenciaria a necessidade neurótica de possuir a mãe e destituir o pai, através de "um nascisismo em que se alternam grandiosidade, insegurança e estados psíquicos primitivos", como megalomania e paranóia. Ora, a interpretação freudiana dos homens afetiva e sexualmente insatisfeitos baseia-se na sua impossibilidade de superar a mãe como objeto sexual paterno: a procura obsessiva e posse nunca satisfatória de centenas de diferentes mulheres ocorre porque para eles nenhuma mulher consegue equivaler ao objeto de desejo do pai. Na busca da mãe, há portanto uma busca de definição do pai, do masculino. Ou seja, a obsessão em possuir a mãe remete diretamente ao desejo de desvendar através dela a identidade do pai para, assim, identificar-se com seu significante masculino, seu falo penetrador. Ao analisar o longo poema Don Juan de Byron (escrito em meio a aventuras dom-juanescas bissexuais), o psicanalista austríaco Otto Rank observa que aí a identificação de Don Juan com o pai "encontra sua expressão poética na primeira aventura amorosa do herói (...) com uma pessoa que simboliza nitidamente a mãe infiel". Portanto, a fixação dom-juanesca na figura da mãe seria, no fundo, uma fixação no pai, tentativa de apossar-se da mãe enquanto elemento por excelência que define e garante a virilidade paterna. Em outras palavras, a tentativa reiterada de possuir o objeto de desejo do pai é o mesmo que buscar a posse do seu falo. Nessa busca de identificação, Don Juan se considera narcisicamente o único objeto de amor possível: trai os maridos porque não pode, por sua própria natureza, ter um rival no amor, segundo Rank. Para voltar a Casanova, nas mulheres ele procura a figura do homem primeiro: seu verdadeiro objeto de desejo, por detrás das mulheres, seria o pai como sua primeira referência masculina, meta impossível de uma busca fálica obcecada e tortuosa. Nesse contexto, convém lembrar que, em suas memórias, Casanova mostra uma "absoluta secura sentimental" com as crianças. E isso talvez venha reforçar sua fantasia de ser o objeto erótico exclusivo perante o pai.
A psicanalista Melanie Klein acrescenta outros dados, na sua interpretação. A endêmica infidelidade do homem dom-juanesco não seria apenas a tentativa (frustrada) de reviver inconscientemente a mãe (seu objeto de amor inicial) em cada amante. Mais ainda: ele mudaria constantemente de parceira para evitar a dependência e assim defender-se do medo de uma nova perda da mãe - fato que já lhe trouxe tanta dor. O corolário kleiniano óbvio é que todo grande garanhão esconde um menino assustado. Mas parecem demasiado frágeis essas tentativas de reencontrar a mãe, ao mesmo tempo em que o macho afirma (ou tenta recuperar) seu falo. Ainda que constantemente buscada, uma tal "solução" à crise do masculino resulta inevitavelmente falsa e ineficaz, podendo levar à problematização e até dissolução de muitas uniões heterossexuais. Mesmo que encontre uma mulher no casamento, a tendência é o homem continuar buscando indefinidamente sua identidade, ao contrário da segurança conjugal que possa aparentar. Evidencia-se aqui também como o masculino tende a manter-se em permanente estado de crise e busca fálica.
É interessante apontar algumas encarnações do mito de Don Juan, com todos os seus paradoxos, nos dias atuais. Basta pensar nos grandes playboys internacionais ou em conquistadores notórios como o ex-presidente americano John Kennedy - que não poupava sequer o sexo masculino, como a imprensa tem revelado. Mas há exemplos sobretudo no cinema e na TV dos grandes estúdios, com seus astros exclusivos que foram tornados verdadeiros Don Juan, numa profusão que mascarava certa ausência. Do ator americano Marlon Brando corre a fama de que sua atividade de sedução exercia-se até mesmo nos camarins, durante intervalos das peças que representava. Só tardiamente seus biógrafos (assim chamados não-autorizados) revelaram inúmeros casos, às vezes tempestuosos, com homens. Entre nós, há igualmente uma vigilância sistemática mas dúbia, que às vezes permite lapsos freudianos, como no caso de Jece Valadão, machão brasileiro oficial e assumido. Numa entrevista tipo pingue-pongue, em 1990, ele teceu brilhantemente seu ideário. Depois de mencionar que nunca levou porrada na vida, mas sempre deu a primeira, elencou as coisas de que não gostava: "Jiló, mulher feia, mau-caratismo e homem banana. Sem falar em bicha." Perguntado sobre o que já fez de ilegal na vida, respondeu: "Se ilegal é tirar a virgindade, eu tirei 12. Sem contar os cinco casamentos, pois nenhuma delas era virgem." Quanto ao seu maior vício, confessa: É mulher. Continua sendo o meu único vício." No final, o jornalista lhe pergunta: "Se fosse uma mulher, qual a primeira coisa que faria?" A resposta de Jece Valadão foi curta e grossa: "Daria para todo mundo." A ambiguidade aí contida certamente deixa emergir a fantasia desejante mais secreta, e por isso mais poderosa, que o Don Juan acalenta no seu coração de conquistador.
Capítulo 7 do livro Seis Balas Num Buraco Só - a crise do masculino, de João Silvério Trevisan. Editora Record. 1998.
quarta-feira, 22 de julho de 2020
Resposta a Vinícius de Moraes
Não sou um diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamante, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.
Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.
O Artista Inconfessável
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.
Catar Feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
Poema de João Cabral de Mello Neto retirado da coletânea Os Melhores Poemas, Global Editora, 2ª Edição, 1989. Seleção de Antônio Carlos Secchin.
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