sábado, 9 de outubro de 2021

Realização Interior

Enquanto o homem não se convencer de que lhe é necessário conquistar as paisagens íntimas, suas realizações externas deixá-lo-ão em desencanto, sob frustrações que se sucederão, tantas vezes quantas sejam as glórias alcançadas no mundo de fora.

À semelhança de uma semente, na qual dormem incontáveis recursos, que surgem a partir da germinação, cabe ao ser humano desatar os valores que lhe dormem inatos, facultando-se as condições de desenvolvimento, graças às quais logrará sua plenitude.

Muitas vezes, as dificuldades que o desafiam são fatores propiciatórios para o desabrochar dos elementos adormecidos, e para que sua destinação gloriosa seja alcançada.

O homem de bem, que reúne os valores expressivos da honra e da ação edificante, faz-se caracterizar pelo esforço, pelo empenho que desenvolve, realizando o programa essencial da vida que é sua iluminação íntima.

Somente essa identificação com o si profundo facultar-lhe-á a tranquilidade, meta próxima a ser conseguida. Partindo dela, novas etapas surgirão, convidativas, ensejando o crescimento moral e intelectual proporcionador da felicidade real.

Todas as conquistas externas - moedas, projeção social, objetos raros, moradia, eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos - não obstantes úteis para a comodidade, a automação e sintonia com o mundo, bem como a sociedades, não podem acompanhar o ser, quando lhe ocorre a fatalidade biológica da morte.

Cada qual desencarna com os recursos morais e intelectivos que amealhou, liberando-se ou não dos grilhões emocionais que o prendem às quinquilharias a que atribui valor.

Na luta pela aquisição das coisas, as batalhas se tornam renhidas, graças à competição às angustiantes expectativas das disputas, nas quais o crime assume papel preponderante, com resultados quase sempre funestos.

Na grande transição, tudo aquilo que constitui motivo de luta insana perde o significado, passando a afligir mais do que antes...

Não te descures da autoiluminação.

Se buscas a consolidação da estrutura socioeconômica pessoal e familiar, vai mais longe, e intenta a conquista dos tesouros íntimos.

Exercita as virtudes que possuis em germe, dando-lhes oportunidade de se agigantarem, arrastando outros corações.

Recorda-te, a cada instante, da brevidade do corpo físico e reivindica o treino para a morte, mantendo-te em serenidade, reflexão e ação iluminativa.

Vida interior é conquista possível, e está ao teu alcance. Logra-a, quanto antes, e sentirás a imensa alegria da plenificação.


Texto retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2015, 2ª Edição.

domingo, 3 de outubro de 2021

Um sorriso nos lábios

Vidro moído ou areia no café da manhã

E um sorriso nos lábios

Ensopadinho de pedra no almoço e jantar

E um sorriso nos lábios

O sangue, o roubo, a morte, um negro em cada jornal

E um sorriso nos lábios

Noventa e cinco sorrisos suando na condução

E um sorriso nos lábios


Mas sonha que passa

Ou toma cachaça

Aguenta firme, irmão

Na oração Deus tudo vê e Deus dará

Ou então acha graça

É tão pouca a desgraça

Mas no fim do mês

Lembra de pagar a prestação

Desse sorriso nos lábios

É...

Desse sorriso nos lábios

Pois é...

(Desse sorriso nos lábios)


O jogo, a nega, a loteca e o futebol

E um sorriso nos lábios

A taça, a vida, a dureza, viva a beleza do sol

E um sorriso nos lábios

Os olhos fundos sem sono, os corpos como lençol

E um sorriso nos lábios

O cerco, a vida, o circo, o silêncio, um medo anormal

E um sorriso nos lábios


Mas sonha que passa...


Pois o Rio de Janeiro continua lindo!

Põe um sorriso nos lábios

São Paulo, ah, São Paulo continua lindo

Põe um sorriso nos lábios

Sorria, sorria

Põe um sorriso nos lábios...

Põe um sorriso!

Olha o sol, olha o céu, olha o mar, olha a vida...

Põe um sorriso nos lábios

Põe um sorriso nos lábios

Sorria, sorria!

Põe um sorriso nos lábios


Música de Gonzaguinha gravada em compacto lançado em 1973 pela Odeon. Verônica Ferriani fez uma bonita regravação em seu CD de estreia de 2008. A faixa abre o disco dela...

sábado, 2 de outubro de 2021

Conduta de Misericórdia

 Este cavalheiro insolente, agressivo, que parece dominador, e que tomando o caminho, investe contra os teus direitos, encontra-se gravemente enfermo, não tendo dimensão do mal que o consome.

Aquela dama, frívola e irreverente, que parece desejar submeter o mundo aos seus pés, assinalada pelo excesso de joias e tecidos caros, tem o coração dilacerado por terríveis frustrações, que não consegue superar.

Esse jovem rebelde, que desdenha as leis e assoma na tua senda com o cinismo afivelado à face, padece conflitos íntimos que o vergastam e dos quais não pode fugir.

Estoutro senhor, de cenho carrancudo e aspecto amargo, que não logra dissimular a arrogância de que se vê objeto, tem medo de ser conhecido pelas fraquezas morais que carrega interiormente.

Esta moça, quase despida, que exibe o corpo e a alma ao comércio da luxúria, invejada por uns e por outros malsinada, vive ralada pela carência de um amor verdadeiro que a dulcifique e felicite.

O rapaz que expõe o corpo para o jogo exaustivo dos prazeres fáceis, símbolo e modelo de beleza, vive aturdido na timidez que o neurotiza, obrigado a uma exteriorização que o aniquila a pouco e pouco.

No festival dos sorrisos humanos, no banquete dos triunfos sociais e na passarela da fama as criaturas não são o que demonstram, mas, sim, um simulacro do que não conseguem tornar-se.

É certo que há exceções, como não poderia deixar de ser, o que mais afirma a regra geral.

A pobreza andrajosa, a polidez da face de bom comportamento, a voz melíflua, suave, certamente não significam personalidades humildes e resignadas, a um passo do triunfo sobre as vicissitudes.

Muitas provêm de incontida revolta, de sentimentos desesperados, de vidas em estiolamento pela mágoa e pela rebeldia.

Por isso, não julgues ninguém pela aparência, ou melhor, não te arvores a julgamento algum com desconhecimento da causa real.

Torna-te tolerante, embora sem conivir.

O problema de cada um, a cada qual pertencer.

Sê um momento de esperança para quem te busque, ou uma oportunidade de renovação para quem te perturbe ou desafie, mantendo-te em paz contigo mesmo em qualquer situação.

Da mesma forma que o teu exterior não te reflete a realidade interna, os passantes pelo teu caminho igualmente vivem essa  dicotomia de comportamento.

Jesus, que identificava a causa das aflições humanas e penetrava o âmago dos corações, por isso mesmo não julgava, não condenava, não desconsiderava ninguém.

Seguindo-Lhe o exemplo e exercendo misericórdia para com o teu próximo, quando, por tua vez, necessites de apoio, não te faltará o socorro da compreensão e da amizade que alguém te dispensará.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Trecho 184

 Antes  que o estio cesse e chegue o outono, no cálido intervalo em que o ar pesa e as cores abrandam, as tardes costumam usar um traje sensível de gloríola falsa. São comparáveis àqueles artifícios da imaginação em que as saudades são de nada, e se prolongam indefinidas como rastos de navios formando a mesma cobra sucessiva.

Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior que o tédio mas a que não compete outro nome senão tédio - um sentimento de desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus complacente, que a Sustância de tudo morreu. E o universo sensível é para mim um cadáver que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nuvens coloridas.

O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos poros do corpo e o inunda a ele também.

É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios.

Contudo que saudade do futuro, se deixo os olhos vulgares receber a saudação morta do dia iluminado que finda! Que grande enterro da esperança vai pela calada dourada ainda dos céus inertes, que cortejo de vácuos e nadas se espalha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do espaço alvar!

Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os pensamentos com que ordinariamente se conhece que estamos querendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim.

Ah, e a luz alta e maior destas noites plácidas, mornas de angústia e desassossego! A paz sinistra da beleza celeste, ironia fria do ar quente, azul negro enevoado de luar e tímido de estrelas.


Trecho de Fernando Pessoa retirado do Livro do Desassossego, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 4ª Edição, 2001.

Canção da Esperança

A esperança tece a linha do horizonte

Traz tanta paz em reluzente e doce olhar

Que nos conforta quando o mar não é tão manso

Quando o que resta é só o frio sem luar.


E nasce leve, devagar

Em uma canção de ninar

Que nos acolhe pra dizer

O amor jamais deixou você


Ó esperança, és para sempre, sempre viva

Te ofereço a minha casa pra morar

Nos meus sentidos quero ter os teus conselhos

Na minha voz eu quero sempre ir te encontrar


Se alguma coisa eu temer

Estou contando com você

Pra me dizer ao me acalmar

Que o amor jamais me deixará


Música de Flávia Wenceslau gravada no CD Quase Primavera de 2007 lançado pela Pindorama Discos. Em 2018, Renata Finotti a regravou em seu CD de estreia intitulado Tesouros em Produção Independente.

domingo, 26 de setembro de 2021

Fruto do Suor

 A terra nova era um paraíso

O milho alto e os rios puros

Dormia o ouro, a cobiça ausente

Era o índio senhor do continente

Foram chegando os conquistadores

Os africanos e os aventureiros

O índio altivo se mesclou ao escravo

Nascia um novo tipo americano


O interesse fabricou garimpos

O ódio à toa levantou paredes

A baioneta desenhou fronteiras

A estupidez nos separou em bandeiras


Tenho um filho nessa terra

Foi um amor sem passaporte

Se o gestar foi brasileiro

Não me chames de estrangeiro

Cada pedra, cada rua

Tem um toque de imigrantes

Levantaram com seus sonhos

Um país que não tem donos


O suor fecunda o solo

E a semente não pergunta:

Brasileiro ou estrangeiro?

Só o fruto é importante

Não me sintas forasteiro

Não me invente geografias

Sou tua raça, sou teu povo

Sou teu irmão no dia a dia


Música de Enrique Bergen e Tony Osanah gravado pelo grupo Raíces de América em 1982.

sábado, 25 de setembro de 2021

Retribuir com o bem

 Os desregramentos, sejam de que ordem for, conduzem à enfermidade, ao enfraquecimento dos valores espirituais, à morte.

Aqueles de natureza moral, mais graves, estiolam os sentimentos e insculpem matrizes que perturbam o Espírito nas etapas sucessivas pelas quais deverá deambular no futuro.

Entre outros, o ódio assume, qual ocorre com a perversão do sexo nos dias atuais, proporção calamitosa, envenenando multidões, que se apresentam desesperadas, engalfinhando-se em lutas desgastantes e destrutivas.

O ódio entorpece o discernimento e fixa-se a fogo nos painéis da alma, ardendo sem cessar. Mesmo quando a vingança insana se consuma, prossegue, insaciável, devorando aquele que o cultivou.

Não foi por outra razão que Jesus recomendou se fizesse todo o bem àquele que se compraz na prática do mal.

De fácil contágio, o ódio incendeia as emoções, alterando, completamente, o discernimento, a razão.

O ódio é virose perigosa que consome milhões de vidas, que lhe tombam, irresistíveis, nas malhas bem-urdidas.

Predominando em as naturezas mais primárias do ser, apresenta-se, com a mesma facilidade, no homem culto, nobre, de estrutura equilibrada.

Irrompe como chama devastadora ou instala-se, a pouco e pouco, tomando o terreno das emoções como erva daninha de fácil proliferação.

Há muito ódio entre as criaturas da Terra, disfarçado em mil formas, desenvolvendo combates inditosos.

Vigia as nascentes do teu coração, de onde brotam os teus sentimentos, e sob justificativa alguma dá campo à animosidade.

Discorda, quando necessário, sem briga.

Resguarda-te da agressão, porém, se alcançado por ela, não a revides.

Mantém-te em paz, quando provocado, não vitalizando o mal com energia equivalente, para não dares força ao ódio desgovernado.

A poda, que maltrata a planta, renova-a para a vida.

A barreira, que impede o curso da água,  concede-lhe maior volume e força.

O solo, sulcado, adquire mais recursos para a finalidade a que se destina.

O mesmo ocorre na área da tua vida terrestre.

O que pode parecer desventura e agressão num momento, logo se transformará em benção, se souberes receber o insulto.

O inimigo de agora, se o amares, será transformado no companheiro de amanhã.

Quem O visse no meio da multidão, amando e servindo, não imaginaria que, logo depois, a sós, Ele sofresse as penosas injunções da maldade, da ingratidão e do ódio gratuito com o qual O crucificaram. Porém, passados aqueles momentos de sombra física e moral da Humanidade, Ele retornou esplendente de beleza e amor, para retribuir com o bem todo o mal que Lhe pretenderam fazer.


Texto retirado do livro Momentos de Alegria, Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis; Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2014.

domingo, 19 de setembro de 2021

Trecho da Pedagogia da Autonomia

Não é possível ao sujeito ético viver sem estar permanentemente exposto à transgressão da ética. Uma de nossas brigas na História, por isso mesmo, é exatamente esta: fazer tudo o que possamos em favor da eticidade, sem cair no moralismo hipócrita, ao gosto reconhecidamente farisaico. Mas, faz parte igualmente desta luta pela eticidade recusar, com segurança, as críticas que veem na defesa da ética, precisamente a expressão daquele moralismo criticado. Em mim, a defesa da ética jamais significou sua distorção ou negação.

Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana. Ao fazê-lo estou advertido das possíveis críticas que, infiéis  meu pensamento, me apontarão como ingênuo e idealista. Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente não como um a priori da História. A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na História. É uma natureza em processo de estar sendo com algumas conotações fundamentais sem as quais não teria sido possível reconhecer a própria presença humana no mundo como algo original e singular. Quer dizer, mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença com um "não-eu" se reconhece como "si própria". Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que se transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude.

Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável.

Devo enfatizar também que este é um livro esperançoso, um livro otimista, mas não ingenuamente construído de otimismo falso e de esperança vã. As pessoas, porém, inclusive de esquerda, para quem o futuro perdeu sua problematicidade - o futuro é um dado dado - dirão que ele é mais um devaneio de sonhador inveterado.

Não tenho raiva de quem assim pensa. Lamento apenas sua posição: a de quem perdeu seu endereço na História.

A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solto no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar "quase natural". Frases com "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?" ou "o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século" expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O de que precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente.

De uma coisa, qualquer texto necessita: que o leitor ou a leitora a ele se entregue de forma crítica, crescentemente curiosa. É isso o que este texto espera de você, que acabou de ler estas "Primeiras Palavras".

Trecho da Introdução do livro Pedagogia da Autonomia intitulado Primeiras Palavras, de autoria de Paulo Freire, publicado pela Editora Paz e Terra, São Paulo, 28ª Edição, 2003.

sábado, 18 de setembro de 2021

Ascetismo

 Existem pessoas que, a pretexto de buscarem a paz espiritual, odeiam o mundo, literalmente, e se entregam a uma vida de desprezo a tudo e a todos, num ascetismo fanático, longe da lógica e da razão.

Algumas, embora nos mereçam respeito pelo esforço e intenção, não passam de personalidades psicopatas, que se entregam a mecanismos de fuga sob pretextos que se lhes tornam fundamentais.

Pretendem a felicidade espiritual por meio da mortificação física e creem que, no recolhimento pessoal e no isolamento, conseguirão a morte do ego.

Propõem-se e entregam-se à inação como meta de vida, na expectativa de uma paz que é inoperância, anulação do ser.

O espírito reencarna para evoluir e jamais para estagnar.

A reencarnação é processo de iluminação pelo trabalho, pela transformação moral.

Renascimento significa oportunidade de crescimento pelo amor e pela sabedoria.

Quem se isola, reserva-se a negação da vida e o desrespeito a Deus, embora sob a justificativa de buscá-lO.

Em toda a Criação vibram em uníssono, as notas ritmadas da ação, que gera o progresso, e do movimento, que responde pela ordem universal.

Inatividade e água estagnada guardam os miasmas da morte.

No célebre diálogo entre Krishna e Arjuna, responde o Bem-aventurado ao jovem príncipe pândava, a respeito da ação, na Bhagavad-Gita:

- É vã quão vergonhosa a vida do homem que, vivendo neste mundo de ação, tenta abster-se da ação; que, gozando o fruto da ação do mundo ativo, não coopera, mas vive em ociosidade. Aquele que, aproveitando a volta da roda, em cada instante de sua vida, não quer pôr a mão à roda para ajudar a movê-la é parasita, e um ladrão que toma sem dar coisa alguma em troca.

E prossegue:

- Sábio é, porém, aquele que cumpre bem os seus deveres e executa as obras que são para fazer-se no mundo, renunciando a seus frutos, concentrado na ciência do Eu Real. (*)

Jesus, o excelente Mestre, viveu trabalhando e exaltando o valor da ação como meio de dignificação e paz.

Dentro do mesmo enfoque, Allan Kardec estabeleceu a tríade do Trabalho, Solidariedade e Tolerância, completando que, só a Caridade salva, por ser esta a ação do amor a serviço do homem e da Humanidade.


(*) Bhagavad-Gita - Tradução de Francisco Valdomiro Lorenz - 4ª Edição, Editora O Pensamento (Nota da autora espiritual)

Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 3ª edição, 2014.

sábado, 11 de setembro de 2021

Jesus

Comiam todos o caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse:

- Sei um ninho!

A Mãe levantou para ele os olhos negros, a interrogar. O Pai, esse, perdido no alheamento costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder à Mãe, ou para acordar o Pai, repetiu:

- Sei um ninho!

O velho ergueu finalmente as pálpebras pesadas, e ficou atento, também.

A criança, então, um tudo-nada excitada, contou. Contou que à tarde, na altura em que regressava a casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E tanto olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o manhuço negro, lá no alto, numa galha.

A Mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.

Mas o menino continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.

De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe, inquieto, com a respiração suspensa, a ouvir.

E o pequeno ia subindo. O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito, colado a ele, trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braços; e só então as pernas avançavam até onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca rija.

A subida levou tempo. Foi até preciso descansar três vezes pelo caminho, nos tocos duros dos ramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque eram já só vergônteas as pernadas da ponta.

Transidos, nem o Pai nem a Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequeno chegasse ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho tinha só um ovo.

Aqui, o menino fez parar o coração dos pais. Inteiramente esquecido da altura a que estava, procedera como se viver ali, perto do céu, fosse viver na terra, sem precisão dos braços cautelosos agarrados a nada. E ambos viram num relance o pequeno rolar, cair do alto, da ponta do cedro, no chão duro e mortal de Nazaré.

Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.

E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egito, que ouvira ler a um vizinho.

Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.

A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho  depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.

E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe.


Conto de Miguel Torga retirado do livro Bichos, Editora Coimbra, 5ª Edição, 1984.