domingo, 18 de dezembro de 2022

Trecho 27 do Livro do Desassossego

    A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humana, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

    Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

    Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos surgirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

    Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.


Trecho 27 do Livro do Desassossego. Fernando Pessoa, Companhia das Letras/Editora Schwarcz, São Paulo, 2001.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Sexo e Vida

Considerando a insensatez que comanda as paixões humanas inferiores, ressalta a loucura do sexo, na condição de produto exposto à clientela alucinada, que se posta à entrada dos supermercados da vida.

Desnaturado, na sua função essencial, torna-se, a cada dia, produto de exagerado consumo, tal a liberalidade que recebe e a má informação de que desfruta a respeito das suas finalidades.

Por isso mesmo, diante da exorbitante aquisição dos ingredientes para o seu abuso, multiplicam-se os usuários frustrados e desiludidos, descambando para os tóxicos, o alcoolismo, a sandice, a depressão e a morte prematura.

Confunde-se o sexo com a civilização, qual se esta, a fim de caracterizar-se como progressista, devesse assentar os seus alicerces no lodaçal da promiscuidade ora estabelecida.

Licenças morais, em detrimento de consciência para a ação, abrem os precedentes do abuso sexual, tornando os indivíduos cansados e ansiosos, que buscam prazeres nas sensações estafantes, enquanto abandonam as emoções agradáveis da alegria e da plenitude.

(...) E o sexo governa as aspirações humanas, apresentando-se como o fator principal a viver e a meta maior a ser lograda a qualquer preço, não raro, responsabilizando-se por crimes inomináveis, que se tornam ou não conhecidos, algemando o algoz à corrente do remorso que atravessa o túmulo e ressurge em funestas reencarnações futuras.

Dando amplitude genésica ao sexo, que é a sua função primeira, encontramo-lo na força de atração mantida pela vida.

No microcosmo, ei-lo na corrente de energia que une os cristais, tanto quanto no macrocosmo, fazendo-se presente na energia de equilíbrio que fixa os astros nas suas órbitas.

No homem, ele é também o agente da inspiração e da beleza, da coragem e do amor, devendo ter as suas expressões canalizadas para os ideais de sustentação da cultura, na filosofia, na ciência, na religião, na sociedade de libertação do seres.

Bem-conduzida, a força sexual é vida, enquanto que, deixada ao desrespeito, torna-se veneno e pantanal, que vitimam sem piedade quem a execra através do mau uso.

Doenças geradas pelo psiquismo desequilibrado do homem, que fortalece vírus de rápida proliferação e acelerada mutação de estrutura, convidam a sociedade contemporânea a uma mudança de comportamento moral, na área sexual; assim readquirindo consciência dos seus deveres de criaturas inteligentes, cujas funções estão colocadas para o serviço da vida e não desta para aquelas.

Educa a mente, disciplina a vontade, corrige os hábitos e utiliza-te do sexo como fonte de inspiração e reprodução, de criatividade e ação enobrecida, sob o comando do amor, que é a força apropriada para dirigi-lo e dignificá-lo.

Sexo e vida são termos da mesma realidade corporal. Conforme te utilizares, serás senhor ou escravo de um como de outra.

Tem cuidado! 


Retirado do livro Momentos de Alegria; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª edição, 2014.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O Aluno

 São meus todos os versos já cantados:

A flor, a rua, as músicas da infância,

O líquido momento e os azulados

Horizontes perdidos na distância.


Intacto me revejo nos mil lados

De um só poema. Nas lâminas da estância,

Circulam as memórias e as substância

De palavras, de gestos isolados.


São meus também os líricos sapatos

De Rimbaud, e no fundo dos meus atos

Canta a doçura triste de Bandeiro.


Drummond me empresta sempre o seu bigode.

Com Neruda, meu pobre verso explode

E as borboletas dançam na algibeira.


Poema de José Paulo Paes retirado do livro Ofício de Poeta, da série Literatura em minha casa - Volume 1 - Poesia, Editora Scipione, São Paulo, 2003.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Como Seguirás

A tua escala de valores necessita de uma avaliação.

Depositas muita importância em moedas e gemas preciosas, telas famosas e tapetes especiais, prataria e cristais... E mesmo quando o alento da fé te bafeja o coração, buscas doutrinas exóticas e comportamentos alienantes, empreendendo viagens que te levam à presença de personalidades estranhas ou carismáticas.

Acalmas-te por um momento e já noutro retornam a incerteza e a insatisfação.

A ânsia de querer mais e o veemente desejo de abarcar tudo te exaurem os nervos, e o equilíbrio bate em retirada.

Os tesouros valem o preço que lhes atribuis. Nenhum deles preenche o espaço da saudade de um ser amado ou traz o amor legítimo de alguém ao coração solitário.

No deserto ardente ou numa ilha solitária, não te propiciam uma gota de água ou uma migalha de pão.

O conhecimento sem disciplina mental, igualmente faz-se instrumento de perturbação e instabilidade.

As várias teorias, díspares e conflitantes entre si, aturdem a razão.

Toda busca da Verdade, para legitimar-se, deve ser fundamentada na paz.

A pressa responde pela imperfeição de qualquer obra, quanto a indolência pela demora da realização.

Acalma-te, dá ritmo equilibrado aos teus interesses e encontrarás o filão de ouro que te conduzirá à felicidade.

Jesus já veio ter contigo e deixou-te precioso legado, que ainda não conheces.

Ao Mahatma Gandhi bastou o Sermão da Montanha para completar-lhe a preciosa e missionária existência de homem de fé e ação.

Já o leste, meditando e aplicando-lhe os conceitos no dia a dia?

Reavalia, pois, a tua existência, porque, talvez, sem aviso prévio, a morte chegue à tua porta e, sem pedir licença, informe que está na hora do retorno.

Como seguirás?


Texto retirado do livro Momentos de Meditação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2014, 3ª Edição.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Do tamanho de um irmão

    Tinha um irmão pequeno, e mais não tinha. Há muito tempo, desde a morte dos pais, haviam ficado só os dois naquela praia deserta, rodeada de montanhas. Pescavam, caçavam, colhiam frutos e sentiam-se felizes.

    Na verdade, tão pequeno era o outro, cabendo na palma da sua mão, que o mais velho achava natural tomar para si todas as tarefas. Embora sem nunca descuidar-se do irmão, delicado e único em seu minúsculo tamanho.

    Nada fazia, que o levasse junto. Se era pescaria, lá se iam mar adentro, o maior metido na água até as coxas, o menor bem firme a cavalo da sua orelha, ambos debruçados sobre a transparência, espiando o momento em que o peixe se aproximaria e, zapt!, estaria preso na armadilha das mãos.

    Se era caça, partiam para o mato, o pequeno bem acomodado no alforje de couro, o grande andando em passos compridos por entre arbustos, à procura de qualquer animal selvagem que garantisse uma refeição, ou de frutas sumarentas que refrescassem a boca.

    Nada faltava aos dois irmãos. Mas à noite, sentados diante do fogo, relembravam o passado, quando os pais ainda eram vivos. E a casa ao redor parecia encher-se de vazio. Então, quase sem perceber, começavam a falar de um mundo para lá das montanhas, perguntando-se como seria, se teria gente, e pondo-se a inventar o que essa gente faria.

    De invenção em invenção, as conversas se ampliavam, histórias surgiam ligando-se umas às outras, prolongando-se até a madrugada. E, mesmo de dia, os dois irmãos só pensavam em como ia ser bom, ao escurecer, sentar diante do fogo e falar do mundo que não conheciam. A noite foi ficando melhor que o dia, a imaginação mais sedutora que a realidade.

    Até que uma vez, o sol quase raiando, disse o pequeno:

    - Por que não vamos lá?

    E o mais velho surpreendeu-se de nunca ter pensado em coisa tão evidente.

    Não demoraram muito nos preparativos. Arrumaram alguma comida, pegaram peles para enfrentar o frio das montanhas, encostaram a porta. E se puseram a caminho.

    Montado na cabeça do irmão, segurando com firmeza as rédeas do seu cabelo, ia o pequeno sentindo-se valente como se ele também fosse alto e poderoso. Montada do irmão, pisando com firmeza terras que aos poucos se faziam desconhecidas, ia o maior, sentindo-se estremecer por dentro, como se ele também fosse pequeno e delicado. Mas cantavam os dois, estavam juntos, e aquela era sua mais linda aventura.

    Depois de alguns dias de marcha, o chão deixou de ser plano, começou a encosta da montanha. Subiram por caminhos que animais selvagens haviam aberto antes deles, inventaram atalhos. Do alto, o pequeno indicava os rumos mais fáceis. E o grande agarrava-se nas pedras, contornava valões, beirava precipícios. O vento cada dia mais frio unhava-lhes o rosto. Nuvens abafavam seu canto. Os dois acampavam à noite entre rochas, enrolados nas peles. Mas de dia continuavam subindo.

    Tanto subiram, que um dia, de repente, não houve mais o que subir. Tinham chegado na crista da montanha. E de cima, extasiados, olharam afinal o outro lado do mundo.

    Era bonito, o outro lado. Tão pequeno, na distância. Todo arrumado. As encostas desciam suaves até os vales, e os vales plantados em hortas e campos eram pintalgados de aldeias, casinhas e umas pessoinhas que, ao longe, se moviam.

    Alegres, os dois irmãos começaram a descer. Desceram e desceram, por caminhos agora mais fáceis, traçados por outros pés humanos. Mas,  estranhamente, por mais que avançassem, as casas e as pessoas não pareciam crescer tanto quanto haviam esperado. Eles estavam cada vez mais perto, e os outros continuavam pequenos. Tão pequenos, talvez, quanto o irmão que, encarapitado no alto, olhava surpreso.

    Estavam quase chegando à primeira aldeia, quando ouviram um grito, depois outro, e vieram todas aquelas pessoinhas correrem para dentro de suas casas, fechando portas e janelas.

    Sem entender ao certo o que estava acontecendo, o irmão mais velho baixou o pequeno até o chão. E este, encontrando-se pela primeira vez num mundo do seu tamanho, encheu o peito, levantou bem a cabeça e pisando com determinação caminhou até a casa mais próxima. Bateu à porta, esperou.

    Através da fresta que pouco a pouco se abriu, dois olhos exatamente à altura dos seus espiaram. Silêncio atrás da porta. Mas logo também os batentes da janela se afastaram de leve, deixando espaço para a curiosidade brilhante de mais dois olhos. E em cada casa outras frestas se abriram, portas e janelas estremecendo como asas, luzir de olhares. A princípio receosas, protegidas entre os ombros, depois mais afoitas, esticando-se, surgiram cabeças de homens, de mulheres e crianças.

    Cabeças pequenas, todas elas minúsculas como a do seu irmão, pensou o maior, enquanto o entendimento lutava para chegar até ele. Não havia ninguém ali que fosse grande, do seu próprio tamanho. E, certamente, assim era também nas aldeias vizinhas, nas casas todas que ele havia acreditado serem pequenas por causa da distância.

    O mundo, descobriu num súbito susto, ao compreender enfim a realidade, era a medida do seu irmão.

    Então viu que este, tendo falado com as pessoas da casa, voltava até ele estendendo-lhe a mão. O irmão, que sempre lhe parecera tão frágil, o chamava agora com doce firmeza. E ele inclinou-se até tocar a mãozinha, deixando-se conduzir à gente da aldeia, frágil gigante que nesse mundo se tornava único.


Conto de Marina Colasanti retirado do livro Longe Como o Meu Querer, série Sinal Aberto, Editora Ática, São Paulo, 1997.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Valores Terapêuticos

    Paulo, o excelente apóstolo, lúcido e nobre, além de invulgarmente inspirado, era um profundo conhecedor da alma humana.

    Suas epístolas desvelam-no e apresentam-no como um psicólogo portador de conhecimentos que, na atualidade, ainda mantêm seu caráter de terapia preventiva quão curadora para os mais variados males.

    Vivendo em uma época de violência e agressividade, na qual predominavam o abuso do poder e o desprestígio da criatura humana, suas palavras, repassadas de sabedoria, são ricas de otimismo, estabelecendo regras para a própria identificação de cada indivíduo, bem como para o seu amadurecimento psicológico, graças às quais se pode autolibertar.

    Austero consigo mesmo e doce ante o dever, não regateava concessões ao erro gerador de desequilíbrio da mente e do corpo, convidando os conversos a uma atitude renovada, com real abandono das paixões e emoções perturbadoras, que são matrizes dos sofrimentos que desarmonizam os homens.

    Escrevendo aos Tessalonicenses (I-5:11 a 26), propõe toda uma estrutura de fraternidade, com autoconhecimento enriquecido de alegria e de paz no coração.

    Textualmente, suas palavras parecem retiradas de um tratado moderno de relações públicas, de psicologia transacional e transpessoal, com vistas a uma vida feliz. Leiamo-las:


Por isso, consolai-vos reciprocamente e edificai-vos uns aos outros, como o estais fazendo.

Mas vos rogamos, irmãos, que conheçais bem aqueles que trabalham entre vós, sobre vós presidem no Senhor e vos admoestam, e que os prezeis muito em amor por causa do seu trabalho.

Tende paz entre vós.

Nós vos exortamos a que admoesteis os insubordinados, consoleis os desanimados, suporteis os fracos e sejais longânimes para com todos.

Vede que ninguém retribua a outrem mal por mal, antes segui sempre o que é proveitoso entre vós e para com todos.

Alegrai-vos sempre.

Orai sem cessar.

Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco.

Não extingais o Espírito.

Não desprezeis as profecias, mas ponde tudo à prova.

Retende o que é bom.

Abstende-vos de toda a forma do mal.

O mesmo Deus de paz vos santifique em tudo, e o vosso Espírito, alma e corpo sejam conservados completos, irrepreensíveis para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Fiel é aquele que vos chama e ele também o é.

Irmãos, orais por nós.

Saudai a todos os irmãos com ósculo santo.


    Todos esses ensinamentos estão centrados nos mais avançados códigos de saúde mental e de equilíbrio moral.

    Mediante uma análise correta, chega-se à conclusão de que muitos dos conceitos hodiernos em favor do inter-relacionamento pessoal sadio, parecem retirados do texto em referência, como de outros da sua pluma de ouro.

    Havendo sido vítima do próprio, como do ódio alheio, compreendeu a excelência do amor e aplicou as técnicas para cultivá-lo no coração.

    Desprezado, inúmeras vezes, fortaleceu o ânimo na oração e na irrestrita confiança em Deus, que jamais desampara aqueles que O buscam.

    Médium de invulgares faculdades, recomendou respeito ao Espírito, e identificando os elementos que constituem o homem - Espírito, alma e corpo - ou em termos atuais - Espírito, perispírito e matéria -, propôs o equilíbrio moral como recurso terapêutico para a saúde total e a construção do templo eterno, no íntimo, no qual o Senhor Jesus habitará sublimando os sentimentos e as realizações do indivíduo.


Texto retirado do livro Momentos de Iluminação; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 4ª Edição, 2015.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Quase Nada

De você sei quase nada

Pra onde vai ou porque veio

Nem mesmo sei

Qual é a parte

Da tua estrada

No meu caminho

Será um atalho

Ou um desvio

Um rio raso

Um passo em falso

Um prato fundo

Pra toda fome

Que há no mundo

Noite alta que revele

O passeio pela pele

Dia claro madrugada

De nós dois não sei mais nada

Se tudo passa como se explica

O amor que fica nessa parada

Amor que chega sem dar aviso

Não é preciso saber mais nada


Música de Zeca Baleiro & Alice Ruiz gravada por ele em seu CD Líricas de 2000 lançado pela MZA Music/ Universal Music.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

O Poeta da Roça

 Sou fio das mata, cantô da mão grossa,

Trabaio na roça, de inverno e de estio.

A minha chupana é tapada de barro,

Só fumo cigarro de páia de mio.


Sou poeta das brenha, não faço o papé

De argum menestré, ou errante cantô

Que veve vagando, com sua viola,

Cantando, pachola, à percura de amô.


Não tenho sabença, pois nunca estudei,

Apenas eu sei o meu nome assiná.

Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre,

E o fio do pobre não pode estudá.


Meu verso rastêro, singelo e sem graça,

Não entra na praça, no rico salão,

Meu verso só entra no campo e na roça,

Nas pobre paioça, da serra ao sertão.


Só canto o buliço da vida apertada,

Da lida pesada, das roça e dos eito.

E às vêz, rescordando a feliz mocidade,

Canto uma sôdade que mora em meu peito.


Eu canto o cabôco com suas caçada,

Nas noite assombrada que tudo apavora,

Por dentro da mata, com tanta corage

Topando as visage chamada caipora.


Eu canto o vaquêro vestido de côro,

Brigando com o tôro no mato fechado,

Que pega na ponta do brabo novio,

Ganhando lugio do dono do gado.


Eu canto o mendigo de sujo farrapo,

Coberto de trapo e mochila na mão,

Que chora pedindo um socorro dos home,

E tomba de fome, sem casa e sem pão.


E assim, sem cobiça dos cofre luzente,

Eu vivo contente e feliz com a sorte,

Morando no campo, sem a cidade,

Cantando as verdade das coisa do Norte.


Poema de Patativa do Assaré retirado do livro Ofício de Poeta, série Literatura em minha casa, Volume 1 - Poesia; Editora Scipione, São Paulo, 2003.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

As Palavras

1

Este é um planeta de palavras

neutras movíveis e versáteis

que de rodízio pela ponte

vão ter à margem oposta


Candentes em água fria

petrificadas no fogo

tumultuam-se as palavras

umas prontas para o jogo 

outras intactas à sorte


Mantêm auras de mistério

nos percursos de ida e volta

conforme o sangue que as gera

o incentivo que as abrasa

conforme a língua que as solta

ou que as segura na raça.


2

Os cardos se abriram

fecharam-se os lírios

horizontes amplos

estreitaram o âmbito

só pela palavra

que em tempo de espera

nos foi sonegada.


A casa estremece

no próprio alicerce

pelo desatino

de alguma palavra

de metal ferino

que nos fira o ouvido

sem qualquer preparo.


Os verdes ondulam

ao longo das várzeas

espelhos se aclaram

no colo das grutas

por palavra terna

que a alma nos enleva

no momento exato.


Ó cores nascidas

ó sombras criadas

ó fontes detidas

ó águas roladas

ó campos abertos

 por simples palavras.


3

Segredos expostos

tingem de rubor

a palavra rosa


Como que em deslize

tocam-se cristais

na palavra brisa


Algo se insinua

de abandono e flauta

na palavra azul


Desgastados mantos

pesam sobre o leito

da palavra fama


Espinheiro agreste

rompe raiva e ruge

na palavra guerra


Não há luz que corte

o ermo corredor

da palavra morte.


Poema de Henriqueta Lisboa retirado do livro Ofício de Poeta, da série Literatura em minha casa, Volume 1 - Poesia, Editora Scipione, São Paulo, 2003.

domingo, 27 de novembro de 2022

Companheiro Fiel

 Se estou trabalhando

- seja a que hora for -

Gatinho se deita ao lado

do meu computador.


Se vou para a sala

e deito no sofá,

ele logo vai pra lá.


Se à mesa me sento

a escrever poesia

e da sala me ausento

pela fantasia,

volto à realidade

quando, sem querer,

toco de resvés

numa coisa macia.


Já sei, não pago dez:

é o Gatinho

que sem eu saber

veio de mansinho

deitar-se a meus pés.


Poema de Ferreira Gullar retirado do livro Palavras de Encantamento, série Literatura em minha casa - Volume 1 - Poesias, Editora Moderna, São Paulo, 2001.