sábado, 7 de janeiro de 2023

Felicidade Possível

Acreditavas que a felicidade seria semelhante a uma ilha fantástica de prazer constante e paz permanente. Um lugar onde não houvesse preocupação, nem se apresentasse a dor, no qual os sorrisos brilhassem nos lábios e a beleza engrinaldasse de festa as criaturas.

Uma felicidade feita de fantasias parecia ser a tua busca.

Planejaste a vida, objetivando encontrar esse reino encantado, onde, por fim, descansasses da fadiga, da aflição e fruísses a harmonia.

Passam-se os anos, e somas frustrações, anotando desencantos e amarguras, sem a anelada conquista.

Lentamente, entregas-te ao desânimo, e sentes que estás discriminado no mundo, quando vês as propagandas apresentadas pela mídia, nas quais desfilam os jovens, belos e jubilosos, desperdiçando saúde, robustez, corpos venusinos e apolíneos, usando cigarros e bebidas famosas, brincando em iates de luxo, ou exibindo-se em desportos da moda, invejáveis, triunfantes...

Crês que eles são felizes...

Não sabes quanto custa, em sacrifício e dor, alcançar o topo da fama e permanecer lá.

Sob quase todos aqueles sorrisos, que são estudados, estão a face da amargura e as marcas do ressaibo, do arrependimento.

Alguns envenenaram a alma nos charcos por onde andaram, antes de serem conhecidos e disputados.

Muitos se entregaram a drogas perturbadoras, que lhes consomem a juventude, qual ocorreu com as multidões de outros, que os anteciparam e desapareceram.

Esquecidos e enfermos, aqueles que foram pessoas-objeto, amargam hoje a miséria a que se acolheram ou foram atirados.

Felicidade, porém, é conquista íntima. 

Todos os que se encontram na Terra, nascidos em berços de ouro ou de palha, homenageados ou desprezados, belos ou feios, são feitos do mesmo barro frágil de carne, e experimentaram, de uma ou de outra forma, vicissitudes, decepções, doenças e desconforto.

Ninguém, no mundo terreno, vive em regime especial. O que parece, não excede a imagem, a ilusão.

Se desejas ser feliz, vive, cada momento, de forma integral, reunindo as cotas de alegria, de esperança, de sonho, de bênção, num painel plenificador.

As ocorrências de dor são experiências para as de saúde e de paz.

A felicidade não são coisas: é um estado interno, uma emoção.

Abençoa os acidentes de percurso, que denominas como desdita, segue na direção das metas, e verás quantas concessões de felicidade pela frente, aguardando por ti.

Quem avança monte acima, pisa pedregulhos que ferem os pés, mas também flores miúdas e verdejante relva, que teimam em nascer ali colocando beleza no chão.

Reúne essas florzinhas em um ramalhete, toma das pedras pequeninas fazendo colares, e descobrirás que, para a criatura ser feliz, basta amar e saber discernir, nas coisas e nos sucessos da marcha, a vontade de Deus e as necessidades para a evolução.


Retirado do livro Momentos Enriquecedores; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 2ª Edição, 2015.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O Sindicato dos Calígrafos

O sindicato dos Calígrafos está em assembleia permanente. Esta decisão não foi tomada de chofre, e não é a resposta a uma situação aguda. Ao contrário, a medida se impôs em decorrência do agravamento das más condições de exercício da profissão, o que levou à convocação de sucessivas reuniões - primeiro mensais, depois semanais e, por fim, diárias -, até que os calígrafos associados (em número de trinta, atualmente) resolveram optar pela assembleia permanente como forma de mobilização constante. Mesmo porque não lhes resta outra alternativa. Permanecer em suas modestas casas de porta e janela, situadas em bairros distantes, pensando sobre a vida, ruminando mágoas e aguardando a morte? Nunca. Pelo menos na sede do sindicato - e até que o juiz julgue a ação de despejo contra eles movida - têm abrigo, a companhia uns dos outros (o que não é pouco para estes idosos, cujo círculo de relações se estreita cada vez mais), e a sensação de estarem lutando, unidos, por uma causa grandiosa. A permanência da arte caligráfica, diz Alcebíades, um dos fundadores do sindicato, é condição de sobrevivência para nossa cultura. Os outros, sorvendo o aguado chá, concordam, mas não poucos deixam de lembrar a época em que a agremiação oferecia a seus associados opíparos jantares regados a vinho.

O tempo custa a passar na assembleia permanente. Esgotada a discussão sobre as reivindicações (que variam, desde a extinção pura e simples da datilografia até a solicitação de auxílio ao governo e às entidades beneficentes), o coordenador procura levar a conversa para outros tópicos - e sem demora, pois sabe que nada é mais terrível e ameaçador para os calígrafos do que o silêncio absoluto, aquele silêncio que não é rompido pelo rascar de penas sobre o papel. De modo que a agenda dos trabalhos prevê também discussões técnicas e relatos de experiências pessoais.

Estilos de caligrafia são analisados e comparados; as surpreendentes modificações surgidas quando do advento da pena de aço são debatidas. As recordações são muitas. Ainda lembro, diz Honório, a primeira frase que escrevi como calígrafo: e isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo. É de Shakespeare? Alguém conhece o trabalho do imortal Bardo de Avon? Hein? Respondam-se, companheiros: vocês creem que os jovens de hoje dão importância a essas coisas?

Ninguém contesta; não é necessário. Honório quer apenas desabafar, e os calígrafos ouvem-no em silêncio. Os que creem que caligrafia e Shakespeare são coisas diferentes, e que não se deve intimidar o público com autores britânicos, guardam para si tais restrições. O momento não permite divergências, nem mesmo quanto a assuntos de menor importância. União - tal como diz a Carta de Princípios do Sindicato - deve ser o objetivo de todos. É por isso que Almeida não verbaliza suas críticas em relação ao trabalho de Valentim. Jamais diria em público aquilo que consta às fls 7 de seu diário: "O M de Valentim parece um camelo no deserto". Há respeito entre eles; ainda que pertençam a diferentes escolas, reconhecem que o pluralismo é condição de sobrevivência para a caligrafia.

Sempre preferi o R, diz Evilásio, ou mesmo o W - talvez porque me permitiam traçar caprichosas volutas muito de acordo com meu temperamento barroco. Mas então descobri o i, isto mesmo, o i minúsculo, e foi uma revelação. A modesta simplicidade desta letra! E o ponto, suspenso no espaço! O ponto, acreditem, me fascinou. Creio ter encontrado nele o sentido maior da caligrafia. Porque enquanto alguns - meu próprio filho, por exemplo - exageram o que chamam de "pingo do i", chegando a representá-lo como um pequeno círculo, eu concluí, num momento de profunda introspecção, que deveria dirigir meu esforço no sentido inverso; isto é, reduzir o ponto a dimensões mínimas. Na verdade, o ponto não tem dimensão alguma, como se sabe. O número de pontos é infinito. Invisível, onipresente. Seria o ponto Deus, ou seria Deus um ponto? Para aceitar tal ideia, eu teria de ser aniquilado por ela; isto é, eu poderia conceber o ponto no exato momento de minha completa extinção. Não estava preparado para isto, nem estou, por isso é que continuo colocando o ponto no i, ainda que para fazê-lo limite-me a tocar de leve o papel com o bico da pena. Um gesto muito contido, sem dúvida, mas um gesto. E aos que pensam que a caligrafia nasce dos gestos, afirmo com toda a convicção: a verdadeira caligrafia caracteriza-se por inação total; ela é antes virtual do que real.

- Deus - conclui Evilásio - é o grande calígrafo.

Dizem, sussurra Marcondes para os que estão perto, que eles agora têm aparelhos eletrônicos que captam os sons de voz e os transformam em escrita. Não acredito, responde o amargo, incrédulo Amâncio, que tenham chegada a tal ponto. E Rebelo: eu já esperava por uma coisa destas. A máquina de escrever deu início a uma trajetória que conduziria inevitavelmente ao desastre. O tabulador nada mais faz que acelerar este fim. Do que discorda o calígrafo Rosálio. Não é contrário ao progresso; tem até um interessante projeto, que é o de traçar letras no céu, utilizando, ele próprio (para isto terá de ser treinado, mas não se importa, afirma que se submeterá a qualquer coisa para concretizar seu sonho), um avião da esquadrilha da fumaça. Aos que veem nisto uma traição à arte da caligrafia, retruca: a mão que maneja delicadamente a pena é a mesma que segura firme o manche do avião. Seu único problema, na verdade, é a vertigem das alturas, que tem desde a infância e que, segundo os especialistas, é incurável.

O calígrafo Inácio corresponde-se há muito tempo com uma moça cujo nome encontrou em "Correio do Amor", popular seção de um grande jornal. À primeira carta, ela se declarou apaixonada pela letra de Inácio: "A maneira como cortas o T evidencia um espírito enérgico; as suaves curvas do teu S, um coração carinhoso". Inácio chora ao ler estas missivas, mas decidiu que jamais se encontrará com a moça. Seu amor subsistirá apenas em manuscritos.

Chega Feijó. Como sempre, é o último; e, como sempre, vem sorrindo, superior. Tem boas razões para isto. De todos os membros do sindicato, é o único que tem trabalho assegurado. A cada quatro anos, compete-lhe escrever o nome do governador eleito num diploma especial. É uma tarefa para a qual prepara-se cuidadosamente, inclusive com exercícios físicos e dieta. Pagam-lhe bem e o tratam com deferência, mas Feijó tem notado que os nomes dos governadores são cada vez menores; suspeita que isto não seja produto do acaso, mas sim de uma conspiração à qual os radicais não estão alheios.

E se reativássemos a profissão, indaga de repente Alonso (que se gaba do seu espírito empresarial); por exemplo, colocando anúncios no jornal: Sua amada não resistirá a uma carta escrita com bela caligrafia. Alonso planeja também cursos dirigidos a vários segmentos da sociedade. Fala em caligrafia política, em caligrafia executiva, em caligrafia proletária. Mercedes, a única mulher do sindicato, tem uma séria acusação a fazer contra os grafologistas: foram eles, sustenta, que desmoralizaram nossa profissão, ao disseminarem a ideia de que a letra é reveladora do caráter. Precisamos introduzir no currículo escolar, diz, a noção de que a caligrafia une os homens. 

O Sindicato dos Calígrafos fica num velho casarão, na parte mais antiga da cidade. Trata-se de um legado de Abelardo, calígrafo de fama internacional (chegou a preparar documentos para a monarquia belga). Dias gloriosos, aqueles! À época, os calígrafos constituíam-se em famosa Irmandade. O sindicato surgiu posteriormente, quando as oportunidades de trabalho começaram a escassear. As reuniões, lembra Damião, eram verdadeiras celebrações. Os calígrafos, vestidos à rigor, chegavam à sede, feericamente iluminada, acompanhados de suas esposas e filhos. A sessão iniciava-se pontualmente às vinte horas. A ata da reunião anterior - manuscrita, naturalmente; redigi-la era uma honra que os calígrafos disputavam - passava de mão em mão, mais para ser admirada (ou desprezada) do que comentada. Em seguida, a orquestra tocava o hino dos calígrafos ("Com serifas e volutas mil/ Traço à pena o nome do meu Brasil/ Enquanto no céu, do mais puro anil..." etc). Brindava-se com champanhe importado; era servido o jantar - truta ou salmão ou lagosta e, no final, uma torta em que a frase "Viva a Caligrafia!" tinha sido traçada com creme. E depois vinha o baile, sempre animado. Antes das cinco da manhã ninguém se retirava. Bons tempos, suspira o calígrafo Moura. Tempos que não voltarão, completa o calígrafo Felipe (mesmo brigados, estão solidários na mágoa).

- Fanti! - grita o calígrafo Reginaldo. - Fanti de Ferrara!

Os outros se olham. Sabem a que ele se refere: ao Fanti de Ferrara, que em 1514 introduziu o método geométrico na caligrafia gótica. Sabem que Reginaldo possui um valiosíssimo exemplar da Theorica et practica perspicassimi Sigromundi de Fantis. De modo scribendi fabricandique omnes litterarum species, editado em Veneza. Mas como Reginaldo não empresta o livro, ignoram deliberadamente a provocação. O calígrafo Guilherme muda de assunto: caligrafia, afirma, é a  arte bela da escrita. É a liberdade, prossegue, inspirado, conjugada à disciplina. É o passado falando ao nosso coração. Tudo isso é muito bonito, murmuram dois ou três calígrafos, mas - e as leis trabalhistas?

Nada temos a ver, sustenta o calígrafo Ludovico, com esta nova classe, a dos digitadores. Se com alguém temos afinidades, é com aqueles monges que, no silêncio de seus monastérios, copiavam textos em caligrafia gótica e com delicadas iluminuras. O que, acrescenta, abrupto, o calígrafo Arthur, era também uma proteção contra a fraude: mais complicada a letra, mais difícil era falsificar uma bula papal. Esta inopinada intervenção faz calar o calígrafo Ludovico. Não gosta que lhe recordem os aspectos práticos da arte. Sabe-se que o papa Eugênio IV mandou reservar um tipo especial de caligrafia - cursiva! - para os documentos escritos rapidamente - brevi manu - de onde o nome de breves. Breves! Breves, numa arte caracterizada pela lentidão! Igualmente é de lamentar que o padre Pacioli - um amigo, incrível!, de Leonardo da Vinci - tenha feito estudos sobre a geometria das letras. Como se fosse possível comparar sentimentos com quadrados e hexágonos!

Os calígrafos Raimundo e Koch empenham-se numa animada discussão. Raimundo acusa Colbert, ministro das Finanças de Luís XIV, de ter decretado o fim do gótico quando recomendou a seus funcionários que adotassem a escrita conhecida como financière; já era o mau gosto da burguesia se impondo, brada. Koch, numa voz contida (na qual percebem-se, ocultas vibrações de ressentimento), pondera que o gótico continha o germe de sua destruição. Por causa da angulosidade: a vida, sustenta Koch, prefere curvas suaves. Não é golpeando o papel com a pena que imitaremos o fluxo da existência. Dois ou três calígrafos aplaudem timidamente. Raimundo cala-se. No fundo, porém, acredita em voltar ao gótico como forma de projetar-se para o alto, lá onde brilham as estrelas. É da mesma opinião o calígrafo Ronildo; para ele, a era do Rei Sol foi ruinosa para a caligrafia, em que pesem os esforços de Danoiselet e Rousselot. Hoje, dizem que ter caráter é mais importante que ser legível, mas - e nesse ponto a voz de Ronildo treme com incontida indignação - não será isto uma reductio ad absurdum?

O que é elegância?, pergunta o calígrafo Dimone. E ele mesmo responde: é a oportunidade nos adornos.

Penso na trajetória de minha vida como se fosse o traçado de uma letra, diz o calígrafo Epaminondas. Da letra L, mais precisamente. Eu subi; quando estava no alto, fiz uma volta e desci; cheguei ao ponto mais baixo e aguardo pela derradeira, ainda que pequena, inflexão para cima.

- Às vezes me pergunto - suspira - se eu não deveria me chamar Luís. Luís com L minúsculo.

Ninguém lhe responde. Mesmo porque é tarde. Um a um os calígrafos levantam-se e se vão, para as suas humildes casas. No dia seguinte retornarão. Não há vida fora da assembleia permanente. Não há vida fora da caligrafia.


Crônica de Moacyr Scliar retirado do livro Pipocas, série Literatura em minha casa, Volume 2 - Crônica e Conto, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A orelha de Van Gogh

    Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.

    Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam dele, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.

    Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre a mágica vida do artista.

    Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:

    - Achei!

    Levou-me para um canto - eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice - e sussurrou, os olhos brilhando:

    - A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.

    O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.

    Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, amante da mulher por quem van Gogh se apaixonara, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.

    - Que dizes?

    Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:

    - E a orelha?

    - A orelha? - olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.

    No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de van Gogh, anunciou, triunfante.

    E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh - orelha.

    À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.

    - Falta de respeito!

    Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:

    - Era a direita ou a esquerda?

    - O quê? - perguntei, sem entender.

    - A orelha que o van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?

    - Não sei - eu disse, já irritado com aquela história. - Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.

    - Mas não sei - disse ele, desconsolado. - Confesso que não sei.

    Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:

    - E a do vidro? - perguntei. - Era a direita ou a esquerda?

    Mirou-me aparvalhado.

    - Sabe que não sei? - murmurou numa voz fraca, rouca. - Não sei.

    E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha - qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não - verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.


Crônica de Moacyr Scliar retirado do livro Pipocas, série Literatura em minha casa, Volume 2 - Crônica e Conto, Companhia das Letras, São Paulo, 2003.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Tua Cara

A esperança

Talvez seja o amor maior

Que a gente carrega

Dentro do peito de menino

E vaga no tempo

Que a vida lhe deu

Caminhando, jogando no mundo

Tudo que é seu

Aprendendo

No gosto da vida

A fruta mais rara

Quem me dera hoje ver tua cara

No desenho da lua minguante

Boiando no espaço

Nos faróis do expresso noturno

Que vai a São Paulo

No ruído do jato que passa

Rasgando o céu

Na colmeia

Toda lambuzada de mel

Nas encostas do Pão de Açúcar

Postal Guanabara

Quem me dera hoje ver tua cara.


Música Tua Cara de Geraldo Amaral e Carlos Fernando que abre o então 5º LP de Joanna lançado em 1983 pela Gravadora RCA e intitulado Brilho e Paixão.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Meu Melhor Conto

    Você me pergunta qual foi o melhor conto que escrevi. Indagação típica de jovens jornalistas; vocês vêm aqui, com esses pequenos gravadores, que sempre dão problema, e uma lista de perguntas - e aí querem saber qual foi o melhor conto que a gente fez, qual provocou maior controvérsia, essas coisas. Mas tudo bem: não vou me furtar a responder a essa questão. Dá mais trabalho explicar por que a gente não responde do que simplesmente responder.

    Meu melhor conto... Não está em nenhum dos meus livros, em nenhuma antologia, em nenhuma publicação. Ele está aqui, na minha memória; posso acessá-lo a qualquer momento. Posso inclusive lembras as circunstâncias em que o escrevi. Não esqueci, não. Não esqueci nada. Mesmo que quisesse esquecer, não o conseguiria.

    Eu era então um jovem escritor - faz muito tempo, portanto, que isso aconteceu. Estava concluindo o curso de Letras e acabara de publicar meu primeiro livro, recebido com muito entusiasmo pelos críticos. É uma revelação, diziam todos, e eu, que à época nada tinha de modesto, concordava inteiramente: considerava-me um gênio. Um gênio  contestador. Minhas histórias estavam impregnadas de indignação; eram verdadeiros panfletos de protesto contra a injustiça social. O que me salvava do lugar-comum era a imaginação - a imaginação sem limites que é a marca registrada da juventude literária e que, como os cabelos, desaparece com os anos.

    Mas eu não era só escritor. Era militante político. Fazia parte de um minúsculo, obscuro, mas extremado grupo de universitários. Veio o golpe de 1964, participei em manifestações de protesto, cheguei a pensar em juntar-me à guerrilha - o que certamente seria um desastre, porque eu era um garoto de classe média, mimado pelos pais, acostumado ao conforto, enfim, o antípoda do guerrilheiro. De qualquer modo, fui preso.

    Uma tragédia. Meus pais quase enlouqueceram. Fizeram o possível para me soltar, falaram com Deus e todo o mundo, com políticos, jornalistas e até generais. Inútil. O momento era de linha dura, linha duríssima, e eu estava em mais de uma lista de suspeitos. Não me soltariam de jeito nenhum.

    Fui levado para um lugar conhecido como Usina Pequena. Havia duas razões para essa denominação. Primeiro, o centro de detenção ficava, de fato, perto de uma termelétrica. Em segundo lugar, o método preferido para a tortura era, ali, o choque elétrico.

    O chefe da Usina Pequena era o Tenente Jaguar. Esse não era o seu verdadeiro nome, mas o apelido era mais que apropriado: ele tinha mesmo cara de felino, e de felino muito feroz. Ao sorrir, mostrava os caninos enormes - e isso era suficiente para dar calafrios nos prisioneiros.

    Fiquei pouco tempo na Usina Pequena, quinze dias. Mas foi o suficiente. Da cela que eu ocupava, um cubículo escuro, úmido e fétido, eu ouvia os gritos dos prisioneiros sendo torturados e entrava em pânico, perguntando-me quando chegaria minha vez. E aí uma manhã eles vieram me buscar e levaram-me para a chamada Sala do Gerador, o lugar das torturas, e ali estava o Tenente Jaguar, à minha espera, fumando uma cigarrilha e exibindo aquele sorriso sinistro. Leu meu prontuário e começou o interrogatório. Queria saber o paradeiro de um de meus professores, suspeito de ser um líder importante da guerrilha.

    Tão apavorado eu estava que teria falado - se soubesse, mesmo, onde estava o homem. Mas eu não sabia e foi o que respondi, numa voz trêmula, que não sabia. Ele me olhou e estava claramente decidindo se eu falava a verdade ou se era bom ator. Mas ali a regra era: na dúvida, a tortura. E eu fui torturado. Choques nos genitais, o método clássico. No quarto choque, desmaiei, e me levaram de volta para a cela.

    Durante dois dias ali fiquei, deitado no chão, encolhido, apavorado. No terceiro dia o carcereiro entrou na cela: o Tenente queria me ver. Implorei para que não me levasse: eu não aguento isso, vou morrer, e vocês vão se meter em confusão. Ignorando minhas súplicas, arrastou-me pelo corredor, mas não me levou para o lugar das torturas, e sim para a sala do Tenente. O que foi uma surpresa. Uma surpresa que aumentou quando o homem me recebeu gentilmente, pediu que sentasse, ofereceu-me um chá. Perguntou se eu tinha me recuperado dos choques; e aí - eu cada vez mais atônito - pediu desculpas: eu tinha de compreender que torturar era função dele, e que precisava cumprir ordens.

    Ficou um instante olhando pela janela - era uma bela manhã de primavera - e depois voltou-se para mim, anunciando que tinha um pedido a me fazer.

    Àquela altura eu não entendia mais nada. Ele tinha um pedido a me fazer? O todo-poderoso chefe daquele lugar? O cara que podia me liquidar sem qualquer explicação tinha um pedido? Estou às suas ordens, eu disse, numa voz sumida, e ele foi adiante. Eu sei que você é escritor, e um escritor muito elogiado.

    - Está em sua ficha - acrescentou, sorridente. - Nós aqui temos todas as informações sobre sua vida.

    Olhou-me de novo e acrescentou:

    - Tem uma coisa que eu queria lhe mostrar.

    Abriu uma gaveta e tirou de lá um recorte de jornal. Era uma notícia sobre um concurso de contos. Cada vez mais surpreso, li aquilo e mirei-o sem entender. Ele explicou:

    - Eu escrevo. Contos, como você. Mas tenho de admitir: não tenho um décimo de seu talento.

    Nova pausa, e continuou:

    - Quero ganhar esse concurso literário. Melhor: preciso ganhar esse concurso literário. Não me pergunte a razão, mas é muito importante para mim. E você vai me ajudar. Vai escrever um conto para mim. Posso contar com você, não é?

    E então aconteceu a coisa mais surpreendente. Eu disse que não, que não escreveria merda nenhuma para ele.

    Tão logo falei, dei-me conta do que tinha feito - e fiquei a um tempo aterrorizado e orgulhoso. Sim, eu tinha ousado resistir. Sim, eu tinha mostrado a minha fibra de revolucionário. Mas, e agora? E os choques?

    Para meu espanto, o homem começou a chorar. Chorava desabaladamente, como uma criança. E então me explicou: quem tinha mandado aquele recorte fora o seu filho, um rapaz de catorze anos que adorava o pai, e adorava as histórias que o pai escrevia.

    - Ele quer que eu ganhe o concurso, o meu filho - o Tenente, soluçando. - E eu quero ganhar o concurso. Para ele. É um rapaz muito doente, talvez não viva muito. Eu preciso lhe dar essa alegria. E só você pode me ajudar.

    Olhava-me, as lágrimas escorrendo pela face.

    O que podia eu dizer? Pedi que me arranjasse uma máquina de escrever e umas folhas de papel.

    Naquela tarde mesmo escrevi o conto. Nem precisei pensar muito; simplesmente sentei e fui escrevendo. A história brotava de dentro de mim, fluía fácil. E era um belo conto, diferente de tudo o que eu tinha escrito até então. Não falava em revolta, não satirizava opressores. Contava a história de um pai e de seu filho moribundo.

    Entreguei o conto ao Tenente, que o recebeu sem dizer palavra, sem sequer me olhar. E no dia seguinte fui solto.

    Nunca fiquei sabendo o que aconteceu depois, o resultado do concurso, nada disso. Não estava interessado; ao contrário, queria esquecer a história toda, e inclusive o conto que eu tinha escrito. O que foi inútil. A narrativa continuava dentro de mim, como continua até hoje. Se eu quisesse, poderia escrevê-la de uma sentada.

Mas não o farei. Esse conto não me pertence. É, acho, a melhor coisa que escrevi, mas não me pertence. Pertence ao Tenente, que esses dias, aliás, vi na rua: um ancião alquebrado, que anda apoiado numa bengala.

Ele me olhou e sorriu. Talvez tivesse, com gratidão, lembrado aquele episódio. Ou talvez estivesse debochando de mim. Com esses velhos torturadores, a gente nunca sabe.


(Porto Alegre, 2003)


Conto de Moacyr Scliar retirado do livro Do conto à crônica, série Literatura em Minha Casa, Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização e apresentação Heloisa Prieto.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Velho é demais

    "Sai da frente, vô!" Com esse grito, o skatista espanta um casal de velhinhos no Parque do Ibirapuera e, quase didático, ilustra um conflito de gerações. Nas ruas vizinhas, cartazes coloridos de shows de rock exibem hordas de guerreiros-mirins. Por toda parte, garotas de dezesseis anos mostram corpos que nenhuma academia produz e invadem as telas de cinema em propagandas insinuantes, como rebeldes de confecções. 

    Estamos cercados de revistas para adolescentes, moda para adolescentes, agora orgulhosamente chamados de teens. A música fatura milhões nessa faixa de mercado, e não é à toa que os pisos dos shopping centers substituem as antigas praças públicas.

    Consumo, produção, beleza e agilidade no raciocínio. Mas, então, como é que se envelhece, ou melhor, como abandonar esse grupo tão cultuado e entrar para um outro bem menos glamouroso? Há muito que a humanidade se faz essa pergunta.

    Na mitologia grega, o implacável Chrónos engolia cada um de seus filhos, mostrando o destino que nos aguarda. Quando o corpo engorda, as rugas marcam a pele, e o ritmo de produção cai, a palavra "velho" surge como sinônimo de obsoleto, desnecessário.

    O psiquiatra Carl Jung, que procurou em diversas culturas algo que pudesse ser o patrimônio comum da humanidade, compara nossa vida à trajetória do Sol. Se ao amanhecer ele vai adquirindo cada vez mais brilho, após o meio-dia, seu avançar não significa mais aumento, e sim diminuição de força. Sem dúvida, é difícil perceber que essa diminuição não representa uma desvalorização, mas uma troca de sentido. O Sol, não se imobiliza jamais. No entanto, há um número considerável de pessoas que se fixam nos ideais luminosos, que lutam pela eterna juventude, como se o entardecer não tivesse valor. Outras, ainda, apegam-se às suas conquistas e tornam-se contrárias a qualquer novidade. Passados os "bons tempos", resta apenas lembrá-los. Jung sugere que, o que o jovem precisa encontrar fora, na relação com o mundo, o homem, no entardecer da vida, deve encontrar dentro de si, e conclui: "Há uma necessidade de se reconhecer o engano das convicções defendidas até então, de sentir-se a inverdade das verdades".

    Em nossa sociedade jovem e pobre, o idoso não encontra apoio nem é valorizado como alguém experiente, capaz de perceber coisas que fogem à pressa dos mais novos. Nelson Rodrigues, em sua biografia, dedica um capítulo a esse tema. Melancólico, lembra-se da infância como o tempo em que "ainda não era degradante ser velho. O sujeito podia ter, impunemente, setenta, oitenta anos..." Aqui, com dolorida ironia, Nelson retrata o idoso brasileiro punido pelos demais membros da sociedade.

    E se aprendêssemos com a China? Esse país, que sempre honrou os velhos pela capacidade de reflexão, considera a velhice uma imagem de imortalidade e sabedoria. Talvez por isso, o grande sábio Lao-Tsé não precisou agarrar-se à juventude nem correu o risco de ser atropelado por skatistas. Impunemente e cheio de glória, ele nasceu de cabelos brancos e aspecto ancião.


(São Paulo, 1994)


Crônica de Paulo Bloise retirado do livro Do conto à crônica, série Literatura em Minha Casa, Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização e apresentação de Heloisa Prieto.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Perigo no Ar

"Cuidado com os latino-americanos: são beberrões, desordeiros e costumam lançar alarmes falsos de bombas com o objetivo de atrasar o voo!" Por incrível que pareça, essa é a recomendação que a American Airlines dava a seus funcionários até a semana passada.

Eu, ali, na sala de embarque, doido pra voltar pro Brasil, nem sabia desse preconceito, e muito menos desconfiava que estava prestes a fazer o voo mais terrível da minha vida.

Alguns dias antes da viagem, aquela bomba famosa tinha explodido no avião da TAM. No dia anterior, um ataque terrorista deixou vários mortos em Israel. O clima estava tenso no aeroporto e meu medo começou logo antes da decolagem, quando o piloto avisou no alto-falante: "Pedimos a todos que saiam do avião, levando as bagagens de mão. Esta nave está vindo do Panamá e houve uma ameaça de bomba..." Assim, com a voz mais tranquila do mundo, como quem anuncia uma faxina.

Saímos correndo do avião, uns esmagando os outros naqueles corredores fininhos. Na porta, topamos com um esquadrão de brutamontes, todos de colete preto, bigode grosso e cara de destruidor de bomba da Sessão da Tarde. Foi nessa hora que a minha mulher entrou em pânico. "Eu é que volto pra esse avião! Prefiro ir pra casa nadando". Eu também estava tremendo de medo, mas argumentei que não tínhamos escolha e, além do mais, se fôssemos nadando íamos passar muito perto do Triângulo das Bermudas.

Depois de uma hora de expectativa, os fortões saíram sorridentes do avião e fomos convidados a reembarcar. Minha mulher, jurando que nunca mais conversava comigo, sentou-se na poltrona da janela, eu no meio e um sujeito no corredor. A história acabaria por aqui se, na hora em que o avião entrou na pista, pra decolar, o cara do meu lado não tivesse aberto sua mochila preta e catado um livro grosso, de capa dura.

O sujeito olhou firme pro livro e começou a rezar numa língua esquisita. Quando reparei, as letras eram uns rabiscos incompreensíveis. Aí foi minha vez de desesperar.

"Pronto, é um terrorista árabe e vai explodir o avião!", deduzi. "Está encomendando a alma pra Alá."

Naquele instante eu vi a vó pela greta, como dizem na minha terra. Eu precisava fazer alguma coisa!

Pensei em avisar a aeromoça, mas o que é que eu ia dizer? "Socorro, tem um sujeito lendo aqui do meu lado?" Em vez disso, tive outra ideia, ainda mais patética: percebi que a luzinha do teto não estava bem direcionada para o livro, então resolvi ajeitá-la. Assim, talvez o terrorista pensasse: "Ei, esse cara é legal. Quem sabe eu deixo pra explodir o próximo avião?" Ideia ridícula, mas duvido que, no meio do pânico, você bolasse algo melhor.

Só que o terrorista nem notou meu ato cordial. Continuou murmurando suas rezas e, justo na hora em que o avião levantou voo, ele fechou o livro e os olhos. "É agora", engoli seco e esperei a explosão.

Mas não, eu tinha pelo menos que olhar bem para o rosto do meu assassino. Então tomei coragem, virei o pescoço, e, pra minha surpresa, vi que ele não era árabe: tinha na cabeça um solidéu judaico. Ou seja: o livro não era o Alcorão, era o Torá. Eu estava salvo!

Mas um segundo depois pensei melhor: o ataque terrorista de ontem foi feito pelos árabes ou pelos judeus? Quem é que sabe direito, hoje em dia?

Depois do pouso, aliviado, eu caí na gargalhada. Minha mulher não entendeu nada: "Está rindo de quê, depois de tanto susto?"

Expliquei: "Esse rapaz aqui do meu lado deve ter escutado nossa conversa e deduziu que eu era um terrorista panamenho prestes a explodir o avião. Por isso começou a rezar, pra pedir proteção..."

Assim como eu não não consigo distinguir hebraico e árabe, pra ele também português e espanhol é tudo grego. Resultado: cada um com sua paranoia, acabamos fazendo o pior voo de nossas vidas.

E a American Airlines ainda vem com esse papo de que os latino-americanos têm mania de lançar alarmes falsos com o objetivo de atrasar o voo! Ora, que petulância, isso nunca me passou pela cabeça!


(Belo Horizonte, 1997)


Crônica de Leo Cunha retirado do livro Do conto à crônica, da série Literatura em Minha Casa - Volume 2 - Crônica e conto, Editora Salamandra, São Paulo, 2003, organização de Heloisa Prieto.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

O Tempo das Crônicas

Acho que foi uma espécie de provocação amistosa. Quando minha amiga soube que eu estava escrevendo crônicas, ela disparou por telefone mesmo: "Sabe o que disse um escritor, com quem eu mantenho contato, sobre as crônicas?".

Fiquei em silêncio, pressentindo as críticas que viriam.

"Ele acredita que são ficções malfeitas. Um tipo de conto preguiçoso, ou uma história de pouco fôlego".

Fiquei contente. Há tempo que eu desejava escrever sobre o tema, e o desafio me incentivou. De início, concordei com o "pouco fôlego". Sempre comparo esse gênero literário à fotografia, técnica que se propõe a registrar instantâneos. As crônicas, via de regra, não se metem a grandes narrativas, como um longa-metragem. Isso fica para os romances ou aos seus irmãos menores, as novelas. Olha-se uma situação, escuta-se um caso, recorda-se um episódio, e eis o material para a reflexão. Tudo, literalmente, funciona como assunto. Serve o trânsito? Serve. A impunidade dos ministros, os campeonatos esportivos? Servem também. Quem não leu ainda À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, está perdendo uma ótima análise da paixão dos brasileiros pelo futebol.

Coisa curiosa: tanto faz se o fato principal, o foco de interesse, ocorreu no Afeganistão ou na casa do vizinho. Nesse sentido, O Nascimento da Crônica, artigo escrito por Machado de Assis em 1877, é memorável. Nele, o mestre destaca que a maneira certa de se começar uma crônica é por uma trivialidade.

Mas quem teria inventado esse gênero literário, e quando isso teria ocorrido? Machado ironiza: foi no exato momento em que apareceram as primeiras vizinhas. Elas se sentaram à calçada no final do dia e, provavelmente, disseram: "Que calor! Que desenfreado calor!". Então, do clima, a conversa foi para as plantações e aos demais acontecimentos que as circulavam.

Volto para a provocação da minha amiga e pergunto: será que a crônica é realmente um gênero menor? Como um advogado de defesa, fui pesquisar e destaco os trechos mais importantes que encontrei sobre o assunto.

No Dicionário Aurélio deparei com várias definições para crônica. Em resumo, ela é considerada um texto jornalístico escrito de forma livre e pessoal, cujos temas são ideias, fatos da atualidade ou do cotidiano. Foi justamente o caráter jornalístico que me chamou a atenção e lembrou-me um livro excelente sobre a história da imprensa, escrito por Jacques Wolgensinger.

Segundo o autor, a imprensa teria surgido para atender à necessidade que o ser humano tem de informar-se sobre o mundo que o cerca. Porém, as notícias, além de orientar as pessoas, deveriam oferecer algo mais: "o prazer de descobrir".

Nutrindo a minha obsessão de advogado, palpito que a crônica - sendo "livre e pessoal" - pode explorar mais esse prazer do que o texto jornalístico, limitado à informação. Jacques considera os poetas gregos e os trovadores da Idade Média ancestrais do jornalismo moderno. E (por que não?) excelentes cronistas, já que em seus cantos eles informavam para o povo fatos míticos mesclados ao cotidiano.

Bem, devo confessar uma coisa: quanto mais mergulhava na história da imprensa, mais maravilhado eu ficava. Quem imaginaria que o primeiro jornal do Ocidente, o Acta Diurna romano, já se utilizava das crônicas? E o que pensar do Commentarius Rerum Novarum, que à época de Júlio César conseguia ser semanal? Detalhe: eram feitos dez mil exemplares, escritos à mão por escravos.

Pulo, por uma questão de espaço, centenas de anos e encontro mais um elemento para defesa da crônica. Estamos no século XIX, as publicações são diárias, a distribuição é ampla, notícias voam entre os continentes. Inicia-se o império dos grandes jornais com a árdua tarefa de conquistar leitores.

A necessidade furiosa de vender jornais acirrou a competição entre os impressos. O francês La Presse, em 1836, dá um golpe fatídico, corta seu preço pela metade e duplica suas vendas. A concorrência, percebendo o seu sucesso, logo o imita. Girardin, o gênio do La Presse, não se abate e apela à qualidade, convocando os grandes escritores da época. Mas para quê? Para escreverem crônicas!

Sim, e eu considero este o meu argumento final: o que dizer de Balzac, Victor Hugo, Alexandre Dumas escrevendo essas "ficções malfeitas"? Pois foi isso o que ocorreu. A cada dia, uma crônica diferente aparecia na primeira página para estimular os leitores a lerem o resto do jornal.

Felizmente, essa competição entre os gigantes do jornalismo se manteve. Trouxe frutos, deu exemplos para que outros países os imitassem. Graças a ela, nossos melhores escritores, cujos textos podemos encontrar em coletâneas, retrataram suas épocas e costumes. A palavras "crônica" está ligada ao tempo (do grego chrónos) e ela funciona como um registro do presente. Basta procurar nos jornais de hoje. Basta procurar nos jornais de hoje. Os grandes cronistas passam por lá.


Texto de Paulo Bloise retirado do livro Do Conto à Crônica, série Literatura em Minha Casa - Volume 2 - Crônica e Conto. Organização e apresentação de Heloisa Prieto, Salamandra Editora, São Paulo, 2003.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Tristeza Perturbadora

Conquanto brilhe o sol da oportunidade feliz, abrindo campo para a ação e para a paz, a sombra teimosa da tristeza envolve-te em injustificável depressão.

Gostarias de arrancar das carnes da alma este espinho cravado que te faz sofrer, e, por não o conseguires, deixas-te abater.

Conjecturas a respeito da alegria, do corpo jovem, dos prazeres convidativos, e lamentas não poder fruir tudo quanto anelas.

A tristeza, porém, é doença que, agasalhada, piora o quadro de qualquer aflição.

A sua sombra densa altera o contorno dos fatos e das coisas, apresentando fantasmas onde existe vida e desencanto no lugar em que está a esperança.

Ela responde pela instalação de males sutis que terminam por desequilibrar o organismo físico e a maquinaria emocional.

Luta contra a tristeza, reeducando-te mentalmente.

Não dês guarida emocional às suas insinuações.

Ninguém é tão ditoso quanto supões ou te fazem crer.

A Terra é o planeta-escola de aprendizes incompletos, inseguros.

A cada um falta algo, que não conseguirá conquistar.

Resultado do próprio passado espiritual, o homem sente sempre a ausência do que malbaratou.

A escassez de agora é consequência do desperdício de outrora.

A aspiração tormentosa é prova a que todos estão submetidos, a fim de que valorizem melhor aquilo de que dispõem e a outros falta.

Lamentas não ter algo que vês noutrem, todavia, alguém ambiciona o que possuis e não dás valor.

Resigna-te, pois, e alegra-te com tudo quanto te enriquece a existência neste momento.

Aprende a ser grato à vida e àqueles que te envolvem em ternura, saindo da tristeza pertinaz para o portal de luz, avançando pelo rumo novo.

Jesus, que é o "Espírito mais perfeito" que veio à Terra, sem qualquer culpa, foi incompreendido, embora amando; traído, apesar de amar, e crucificado, não obstante amasse...

Desse modo, sorri e conquista o teu espaço, esquecendo o teu espinho e arrancando aquele que está ferindo o teu próximo.

Oportunamente descobrirás que, enquanto te esqueceste da própria dor, lenindo a dos outros, superaste-a em ti, conseguindo a plenitude da felicidade, que agora te rareia.


Texto retirado do livro Momentos de Coragem; Divaldo Franco pelo Espírito Joanna de Ângelis, Livraria Espírita Alvorada Editora, Salvador, 8ª Edição, 2014.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Trecho 33 do Livro do Desassossego

Nos primeiros dias do outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardamos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.

Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.

Mas com isso o trabalho não se atrasa: anima-se. Já não trabalhamos; recreamo-nos com o assunto a que estamos condenados. E, de repente, pela folha vasta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das tias antigas alberga, fechada contra o mundo, o chá das dez horas sonolentas, e o candeeiro de petróleo da minha infância perdida brilhando somente sobre a mesa de linho obscurece-me, com a luz, a visão do Moreira, iluminado a uma eletricidade negra infinitas para além de mim. Trazem o chá - é a criada mais velha que as tias que o traz com os restos do sono e o mau humor paciente da ternura da velha vassalagem - e eu escrevo sem errar uma verba ou uma soma através de todo o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a noites longínquas, impolutas de dever e de mundo, virgens de mistério e de futuro.

E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar... Ergo do livro, que certo lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação.


Trecho nº 33 do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Companhia das Letras/Editora Schwarcz, São Paulo, 2001.