Uso de termos cifrados, marca no gênero, é um desafio narrativo
Realidades novas pedem palavras novas, e em nenhuma literatura isto é tão visível quanto ficção científica, em que autores constantemente propõem elementos que não têm nenhum ponto de referência no repertório do leitor. É preciso um certo cuidado para introduzir esses termos, porque há leitores que se sentem impossibilitados de avançar na leitura enquanto não encontrarem uma definição clara de cada palavra.
Meu conselho, nesses casos, é: Não entendeu? Siga em frente. Entenderá mais adiante. O autor sabe que aquele termo (muitas vezes algo que ele mesmo inventou) pode produzir um pequeno ruído na comunicação. Sabe que precisa dar uma pista ao leitor, mas nem sempre essa dica pode aparecer da palavra nova. Vale a pena avançar na leitura, porque na primeira oportunidade o autor dará essa pista - geralmente fazendo com que um dos personagens toque no assunto, e seja esclarecido por outro.
Termos recentes como cyborg, cyberespaço, realidade virtual e outros que estão sendo cada vez mais assimilados pela imprensa e pela palavra escrita em geral. Tornaram-se parte do nosso cotidiano, são conceitos que aceitamos mesmo quando temos alguma dificuldade em definir, se nos pedirem.
Um website útil para conferir termos como os citados nestas páginas é Science Fiction Citations (http://jessesword.com/sf/list/) que contém um longo glossário onde os termos são definidos e se faz uma tentativa de datar o primeiro uso conhecido da palavra numa obra do gênero.
O site mostra também um interessante gráfico sobre a época em que foi cunhada a maior parte desses termos. As décadas de 1930 a 1950, que foram a era de ouro das revistas de pulp fiction norte-americanas, são o período em que maior número de termos foi inventado nas obras literárias. Já as décadas de 1960, 70 e 80 são as que tiveram um número maior de termos de crítica e história literária, e refletem a época de maior reflexão teórica a respeito da literatura criada nos anos anteriores.
Teletransporte
"Teletransporte", "teletransportador" ou "teleportagem" são termos que aparecem com frequência para indicar a viagem instantânea de um ponto a outro do espaço, mediante desmaterialização do corpo no ponto A e reconstituição do seu corpo no ponto B. (O filme A Mosca, de David Cronenberg, mostra os riscos de quando esse processo não dá certo.)
Animação suspensa
Um outro processo para viagens espaciais muito longas é o que em inglês chama-se de suspended animation. Já vi esta expressão traduzida às pressas por "suspensão animada", mas o certo é o contrário: "animação suspensa". Isto significa uma tecnologia capaz de suspender todas as funções vitais de um ser humano, como que "congelando-o" vivo, e mantendo-o assim durante todo o tempo que durar a viagem da espaçonave, não importa se serão anos ou séculos. Ao chegar, o processo é revertido, e o astronauta é despertado do seu sono profundo.
A animação suspensa tornou-se tão comum em histórias de FC que frequentemente o autor não se dá o trabalho de explicar do que se trata.
Créditos
Algumas palavras se explicam intuitivamente. Já na década de 1930 autores de FC descreviam sociedades futuras em que, em vez de dólares, usavam-se "créditos" como moeda. Se um personagem mete a mão no bolso e paga trinta créditos por uma roupa, dois créditos por um drinque, e assim por diante, essas transações vão dando ao leitor uma ideia do valor relativo da moeda. Além do mais, a palavra " crédito" é mais autoexplicativa do que simplesmente uma palavra inventada qualquer.
Xenobiologia
Como grande parte da FC envolve contatos com criaturas extraterrestres, a partícula "xeno-" (= estranho, estrangeiro) aparece com frequência na construção de termos. Talvez o mais usado seja "xenobiologia", o estudo da biologia desses seres alienígenas.
A xenobiologia é uma ciência imaginária. Ainda não tem aplicação prática por lhe faltar um objeto claramente definido, pois ainda não encontramos nenhum traço de organismos vivos de origem não terrestre.
Dado o precedente, porém, não será difícil encontrarmos numa história de FC referências a xenossociologia, xenolinguística, xenobotânica e assim por diante. (Alguns escritores preferem substituir "xeno-" pelo seu equivalente "exo-": exobiologia, etc.)
Texto de Bráulio Tavares retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 110, Dezembro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.