domingo, 24 de novembro de 2024

14. Língua de sinais é um tipo de mímica

Muitos pensam que Línguas de Sinais são como mímica, isto é, gestos que imitam propriedades dos objetos a que fazem referência. Mas não basta imitar o movimento, a forma ou outra propriedade de algo. Para serem eficazes, os sinais têm de ser compartilhados e estruturados numa sintaxe comum.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


13. Os escritores são a referência da gramática

A chamada norma padrão é um ideal de Língua que se baseia em boa parte do registro de grandes escritores do passado. Mas são os escritores que mais rompem com os padrões de um Idioma. Quando tomados como exemplos do Português padrão, comete-se uma injustiça com eles, e instaura-se um comando de autoridade precário.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.


12. Só há uma gramática no Brasil

Para a maioria, só há uma gramática usada no Brasil. A Língua se resume à gramática tradicional, de caráter normativo, que estabelece a forma como se deve falar ou escrever. Mas há mais de uma gramática circulante nas bocas e páginas brasileiras. Não só divergências entre gramáticos sobre os casos que analisam, as doutrinas que adotam. Mas de gramáticas concorrentes para os mesmos casos (a concordância, por exemplo, com o núcleo do sujeito em "a maioria das pessoas é", com o termo mais próximo em "a maioria das pessoas são", com interferência semântica, em que coletivos e nomes em plural levam a concordância ao plural, em "a maioria são"). Mesmo o que se considera desvio da gramática padrão pode obedecer a uma gramática própria.


Texto de Ataliba T. de Castilho, professor da USP.

Mitos Ideológicos, 100 Mitos retirado da revista Língua Portuguesa, Ano 9, número 100, Fevereiro de 2014, Editora Segmento, São Paulo.

sábado, 23 de novembro de 2024

Autolibertação (47)

 "... Nada trouxemos para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele." - Paulo.         (I TIMOTÉO, 6:7.)


Se desejas emancipar a alma das grilhetas escuras do "eu", começa o teu curso de autolibertação, aprendendo a viver "como possuindo tudo e nada tenho", "com todos e sem ninguém".

Se chegaste à Terra na condição de um peregrino necessitado de aconchego e socorro e se sabes que te retirarás dela sozinho, resigna-te a viver contigo mesmo, servindo a todos, em favor do teu crescimento espiritual para a imortalidade.

Lembra-te de que, por força das leis que governam os destinos, cada criatura está ou estará em solidão, a seu modo, adquirindo a ciência da autossuperação.

Consagra-te ao bem, não só pelo bem de ti mesmo, mas, acima de tudo, por amor ao próprio bem.

Realmente grande é aquele que conhece a própria pequenez, ante a vida infinita.

Não te imponhas, deliberadamente, afugentando a simpatia; não dispensarás o concurso alheio na execução de tua tarefa.

Jamais suponhas que a tua dor seja maior que a do vizinho ou que as situações do teu agrado sejam as que devam agradar aos que te seguem. Aquilo que te encoraja pode espantar a muitos e o material de tua alegria pode ser um veneno para teu irmão.

Sobretudo, combate a tendência ao melindre pessoal com a mesma persistência empregada no serviço de higiene do leito em que repousas. Muita ofensa registrada é peso inútil ao coração. Guardar o sarcasmo ou o insulto dos outros não será o mesmo que cultivar espinhos alheios em nossa casa?

Desanuvia a mente, cada manhã, e segue para diante, na certeza de que acertaremos as nossas contas com Quem nos emprestou a vida e não com os homens que a malbaratam.

Deixa que a realidade te auxilie a visão e encontrarás a divina felicidade do anjo anônimo, que se confunde na glória do bem comum.

Aprende a ser só, para seres mais livre no desempenho do dever que te une a todos, e, de pensamento voltado para o Amigo Celeste, que esposou o caminho estreito da cruz, não nos esqueçamos de advertência de Paulo, quando nos diz que, com alusão a quaisquer patrimônios de ordem material, "nada trouxemos para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele".


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O Capitão-Mor

O capitão-mor, mestre-de-campo, tinha desaparecido, misteriosamente, da cidade. Ninguém sabia dele, nem para onde tinha ido, era o zunzum das ruas. Foi visto pela última vez atravessando a ponte do Carmo...

Corria qualquer coisa... Visitas fora de hora a uma casada, de marido fero que sempre andava por longe, mineirando seu ouro, recoveiro, com suas bestas carregando ouro alheio.

Tinha seguido em diligência para os fortes de Mato Grosso - diziam. O Quartel achou mais prudente aquietar com o caso. Família ele não tinha aqui, nem mesmo parente ou aderente. Falavam que sua gente era da Bahia, mas ele mesmo tinha vindo foi de Cuiabá.

Desapareceu inesperadamente, metido na sua farda. Algum crime?... Alguma vingança?... Alguma emboscada?... Coisas difíceis de apurar naquele tempo, com a cidade rodeada de bugres e quilombos negros por toda parte. Algum índio mancomunado com um escravo devia ter tramado a perdição dele. Fuga... Seria impossível. Suicídio... Sempre se acharia o corpo. Monte violenta? Deixaria um rastro, uma pista.

Passado o tempo regimental da espera, dentro e fora de Vila Boa, foi dada no livro competente de Folhas e Baixas do Quartel-Mor da Cavalaria Real a seguinte nota:

"Obs: capitão-mor, mestre-de-campo: Aleixino Teotônio Tordovil Durado - Desapareceu deste Regimento, no dia 29 de julho de 1789, vestido com seu fardamento de 1º uniforme. Inculcas infrutuosas".

Com pouco mais o caso estava esquecido e o quartel mesmo punha pedra em cima. Era melhor que ninguém mais falasse naquilo. E ninguém mais falou.

O capitão passou para muitos ter voltado para Cuiabá. Pessoa vinda dali afirmara mesmo ter estado com ele em Coxim.

Não houve pai nem mãe, nem mulher, filho, irmão, amigo ou parente que procurasse por ele, que pedisse notícias. Os anos se passaram. A corporação militar a que ele pertencia passou por reformas várias e acabou desaparecendo. E o quartel mesmo teve outro destino. As gerações que vieram depois nunca mais ouviram falar do capitão sumido. Quando, por acaso, se tocava no assunto, este era tido como lenda, contada pelos antigos e se concluía por sua volta para Cuiabá, numa missão secreta de alçada. Mensagens ásperas trocadas entre altos magistrados, a propósito de doze arrobas de ouro que a Casa da Fundição de Vila Boa devia entregar anualmente, por Carta Régia, para o Provedor das Casas dos Quintos daquela cidade, atendendo a deficiência de suas  residas. Era sempre o capitão-mor a pessoas indicada para portar essas epístolas, pesadas de obreias e nem sempre amistosas, onde turravam cheios de reverências, à moda antiga, e a propósito de arrobas de ouro, o senhor Ouvidor das minas de Vila Boa e o seu colega, o ouvidor das minas de Cuiabá.

Um século mais tarde, na Cidade de Goiás, na antiga Rua Joaquim Rodrigues, depois 13 de Maio, atualmente Joaquim de Bastos, quando foram desmanchar a parede interna de uma casa velha para suprimir uma alcova escura e alargar uma sala pequena, acharam, dentro do paredão demolido, numa estacada de aroeira, duas tíbias, ligadas a um torno com pedaços de correntes com os braços algemados para trás e uma mordaça de ferro metida entre os maxilares quebrados, um esqueleto de homem, ainda com pedaços de farda, restos de galão e dragonas de canutão. Do antigo oficial-mor, graduado.


Crônica de Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, retirado do livro O Tesouro da Casa Velha, Global Editora, São Paulo, 1989.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Sorôco, sua mãe, sua filha

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo - o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadinho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - "Vai ver se botaram água fresca no carro..." - ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: - "Eles vêm!... Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas - virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docemente. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: - "Deus vos pague essa despesa..."

O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com s anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disse, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. - "Ela não faz nada, seo Agente..." - a voz de Sorôco estava muito branda: - "Ela não acode, quando a gente chama..." A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo, ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçoo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco.

Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre

Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mas de barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E, lhe falaram: - "O mundo esta dessa forma..." Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou pra ir-se'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido - ele começou a cantar, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão Altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás deles, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.


Conto de João Guimarães Rosa retirado do livro Primeiras Estórias, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2005.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Ele me bebeu

É. Aconteceu mesmo.

Serjoca era maquiador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.

E maquiava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates.

Toda as vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era bonito. Era magro e alto.

E assim corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus mesmos eram lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos.

Um dia, às seis horas d atarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de cansaço, encostara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca negou: era duro para soltar dinheiro.

Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer?

Perto deles estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com chofer. Fazer calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira. Affonso fizera quarenta anos no dia anterior.

Viu a impaciência de Aurélia que batia com os pés da calçada. Interessante essa mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:

- A senhorita está achando dificuldade de condução?

- Estou aqui desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não aguento mais.

- Meu chofer vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?

- Eu lhe agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé.

Mas não disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquiladíssima e olhou com desejo o homem. Serjoca muito calado.

Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio.

- Para onde vocês querem ir?

- Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de Affonso.

Ele disse:

- E se fôssemos ao Number One tomar um drinque?

- Eu adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?

- É claro, preciso de uma bebida forte.

Então forma para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas fingiam entender. Era tedioso. Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de Aurélia. Justo o pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso disse:

- E se fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e frango com trufas. Que tal?

- Estou esfaimada.

E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso.

O apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi. Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de jacarandá. Garçom servindo à esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres especiais. Não gostou. Mas Aurélia gostou muito, se bem que tivesse medo de ter hálito de alho. Mas beberam champanha francesa durante o jantar todo. Ninguém quis sobremesa, queriam apenas café.

E foram para a sala. Aí Serjoca se animou.

E começou a falar que não acabava mais. Lançava olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloquência do rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: o Serjoca é um amor de pessoa.

E marcaram novo encontro. Desta vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para começar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado, pensou.

Mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.

Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.

A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.

Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar no espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos - e tinha uma ossatura espetacular - mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.

Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.

Enfim, enfim acabou o almoço.

Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite. Aurélia disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.

Chegou em casa, tomou um longo banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade?

Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha. Sempre pensativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso, pensou.

Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.

Então - então de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se

E realmente aconteceu.

No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.


Conto de Clarice Lispector retirado do livro A Via Crucis do Corpo, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1984.

domingo, 17 de novembro de 2024

Pólvora e Cocaína

Já houve quem dissesse por aí que o Rio de Janeiro é a cidade das explosões.

Na verdade, não há semana em que os jornais não registrem uma aqui e ali, na parte rural.

A ideia que se faz do Rio é de que é ele um vasto paiol, e vivemos sempre ameaçados de ir pelos ares, como se estivéssemos a bordo de um navio de guerra, ou habitando uma fortaleza cheia de explosivos terríveis.

Certamente que essa pólvora terá toda ela emprego útil; mas, se ela é indispensável para certos fins industriais, convinha que se averiguassem bem as causas das explosões, se são acidentais ou propositais, a fim de que fossem removidas na medida do possível.

Isto, porém, é que não se tem dado e creio que até hoje não têm as autoridades chegado a resultados positivos.

Entretanto, é sabido que certas pólvoras, submetidas a dadas condições, explodem espontaneamente e tem sido essa a explicação para uma série de acidentes  bastantes dolorosos, a começar pelo do "Maine", na baía de Havana, sem esquecer também o de "Aquidabã".

Noticiam os jornais que o governo vende, quando avariada, grande quantidade dessas pólvoras.

Tudo está a indicar que o primeiro cuidado do governo devia ser não entregar a particulares tão perigosas pólvoras, que explodem assim sem mais nem menos pondo pacíficas vidas em constante perigo.

Creio que o governo não é assim um negociante ganancioso que vende gêneros que possam trazer a destruição de vidas preciosas; e creio que não é, porquanto anda sempre zangado com os farmacêuticos que vendem cocaína aos suicidas.

Há sempre no Estado curiosas contradições.


Crônica de Lima Barreto originalmente publicada em Vida Suburbana, 5-1-1915. Retirado do livro Crônicas Escolhidas, Editora Ática, São Paulo, 1995.

sábado, 16 de novembro de 2024

Na Cruz (46)

 "Ele salvou a muitos e a si mesmo não pôde salvar-se." - (MATEUS, 27:42.)


Sim, ele redimira a muitos...

Estendera o amor e a verdade, a paz e a luz, levantara enfermos e ressuscitara mortos.

Entretanto, para ele mesmo erguia-se a cruz entre ladrões.

Em verdade, para quem se exaltara tanto, para quem atingira o pináculo, sugerindo indiretamente a própria condição de Redentor e Rei, a queda era enorme...

Era o Príncipe da paz e achava-se vencido pela guerra dos interesses inferiores.

Era o Salvador e não se salvava.

Era o Justo e padecia a suprema injustiça.

Jazia o Senhor flagelado e vencido.

Para o consenso humano era a extrema perda.

Caíra, todavia, na cruz.

Sangrando, mas de pé.

Supliciado, mas de braços abertos.

Relegado ao sofrimento, mas suspenso da Terra.

Rodeado de ódio e sarcasmo, mas de coração içado ao Amor.

Tombara, vilipendiado e esquecido, mas, no outro dia, transformava a própria dor em glória divina. Pendera-lhe a fronte, empastada de sangue, no madeiro, e ressurgia, à luz do sol, ao hálito de um jardim.

Convertia-se a derrota escura em vitória resplandecente. Cobria-se o lenho afrontoso de claridades celestiais para a Terra inteira.

Assim também ocorre no círculo de nossas vidas.

Não tropeces no fácil triunfo ou na auréola barata dos crucificadores. Toda vez que as circunstâncias te compelirem a modificar o roteiro da própria vida, prefere o sacrifício de ti mesmo, transformando a tua dor em auxílio para muitos, porque todos aqueles que recebem a cruz, em favor dos semelhantes, descobrem o trilho da eterna ressurreição.


Texto retirado do livro Fonte VivaFrancisco Cândido Xavier pelo Espírito Emmanuel, FEB, Brasília, 1987.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

O Veado e a Onça

Há muitos e muitos anos, quando as mulheres e os homens que viviam por aqui eram índios, quando o chão era só de terra e quem voava mais alto no céu era o gavião, morava lá no fundo da mata um veado que um dia resolveu fazer uma casa.

Andou de um lado para outro para escolher um lugar. Descobriu um platô interessante, no alto de um barranco, onde não ficava passando bicho toda hora. Era perto de um rio encachoeirado, se ele quisesse beber água. Era protegido por muitas árvores grandes, que não deixavam o vento chegar muito forte.

O veado resolveu que era aquele o lugar que queria e começou a limpar o terreno. Arrancou uns matos rasteiros, tirou umas moitas que estavam atrapalhando, cortou os galhos mais baixos das árvores.

Trabalhou o dia inteiro. Quando o sol foi se pondo, estava cansado e foi dormir na casa dos pais, para voltar no dia seguinte.

Quando já era noite alta e a lua brilhava no céu, apareceu por ali uma onça que ultimamente vinha pensando muito em fazer uma casa. Aproveitava quando saía pra caçar e procurava um terreno bom.

A onça viu aquela clareira já limpinha e disse:

- Que bom! Este lugar é perfeito! O deus da mata está me ajudando! Vou logo cortar umas varas para fazer os esteios da casa e amanhã à noite eu começo...

Trabalhou a noite inteira. Quando o sol foi nascendo, estava cansada e foi dormir na casa dos pais, para voltar na noite seguinte.

Daí a pouco chegou o veado. Viu aquela pilha de varas cortadas e preparadas e disse:

- Que bom! Estas varas estão perfeitas! O deus da mata está me ajudando! Vou marcar o lugar da casa e fincar os esteios no chão, bem firme...

Trabalhou o dia inteiro. Quando o sol foi se pondo, estava cansado e foi dormir na casa dos pais, para voltar no dia seguinte.

Daí a pouco chegou a onça. Viu os esteios já colocados e disse:

- Que bom! O deus da mata continua me ajudando!

Foi até um taquaral ali perto e tirou uma porção de taquaras, que são uma espécie de bambu, levinho. Fez uma pilha enorme.

Trabalhou a noite inteira. Quando o sol foi nascendo, estava cansada e foi dormir na casa dos pais, para voltar na noite seguinte.

Daí a pouco chegou o veado. Viu aquela pilha de taquaras e disse:

- Que bom! O deus da mata continua me ajudando!

Foi pegando as taquaras uma a uma e fincando entre os esteios, nuns espacinhos pequenos, só deixando livre o lugar das portas e janelas. Depois, cortou uma porção de cipós e embiras para no outro dia amarrar o resto das taquaras atravessadas por cima daquelas, fazendo uns quadrados.

Trabalhou o dia inteiro. Quando o sol foi se pondo, estava cansado e foi dormir na casa dos pais, para voltar no dia seguinte.

Daí a pouco chegou a onça. Viu as paredes adiantadas, os cipós e as embiras cortados e disse:

- Que bom! O deus da mata continua me ajudando!

Tratou de usar os cipós e as embiras para prender o resto das taquaras, fazendo uma malha forte de quadrados.

Trabalhou a noite inteira. Quando o sol foi nascendo, estava cansada e foi dormir na casa dos pais, para voltar na noite seguinte.

Daí a pouco chegou o veado. Viu aquela malha de taquaras pronta e disse:

- Que bom! O deus da mata continua me ajudando!

Foi buscar água no rio, misturou com a terra do alto do barranco, fez um barro bem barrento e foi jogando sobra a palha de taquaras para fechar os quadrados e ir fazendo as paredes. Conseguiu completar duas antes de escurecer.

Trabalhou o dia inteiro. Quando o sol foi se pondo, estava cansado e foi dormir na casa dos pais, para voltar no dia seguinte.

Daí a pouco chegou a onça. Viu aquelas duas paredes fechadas e disse:

- Que bom! O deus da mata continua me ajudando!

Foi buscar mais água no rio, misturou com mais terra do alto do barranco, fez um barro bem barrento, trabalhou a noite toda e completou as outras duas paredes.

Quando o sol foi nascendo, estava cansada e foi dormir na casa dos pais, para voltar na noite seguinte.

E assim ficaram os dois. O veado alisou as paredes, a onça fez a cumeeira; o veado cortou folhas de palmeiras, a onça cobriu o telhado; o veado foi buscar bambu grosso, a onça fez um encanamento que levava água do rio até a casa; o veado serrou uma tábuas, a onça fez janelas e portas.

Trabalharam muito, dia e noite, sempre achando que o deus da mata estava ajudando. Até que a casa ficou pronta.

No fim do último dia de trabalho, todo animado, o veado resolveu que não ia dormir na casa dos pais: ia ficar ali para passar a primeira noite em sua casinha nova.

Tomou banho, comeu umas folhas gostosas, fez uma fogueirinha no quintal para espantar mosquito e ficou em frente da casa olhando as estrelas e esperando o sono chegar.

Mas quem chegou foi a onça. Quando viu aquela cena, ficou furiosa:

- Mas que folga! Então não se pode mais nem sair para visitar uns parentes que logo aparece um malandro para invadir a nossa casa? Saia daqui imediatamente!

O veado bem que ficou com medo, afinal onça é onça... Mas ele tinha trabalhado muito para fazer aquela casa e não ia entregar assim, para a primeira valentona que aparecesse:

- Desculpe, Dona Onça, mas deve haver algum engano. Esta casa é minha, fui eu que fiz. Quem sabe a senhora se enganou de lugar, assim, no escuro?

Primeiro, a onça ficou ainda mais furiosa ao ouvir aquilo. Rosnou e berrou:

- Está achando que eu sou idiota, é? Que não sei onde foi que eu mesma trabalhei tantas noites?

Mas o veado ficou firme:

- A senhora me desculpe, mas quem trabalhou aqui fui eu, muitos dias. Limpei o terreno, finquei os esteios, levantei as paredes, preparei o telhado, o encanamento, as portas e as janelas...

A onça foi desconfiando de alguma coisa e respondeu, já berrando menos:

- E eu cortei as varas e as taquaras, completei as paredes, botei a palha no telhado, fiz o encanamento, fechei as portas e as janelas...

Ouvindo isso, o veado entendeu alguma coisa. Os dois se olharam ressabiados, cada um deu um sorriso sem graça...

- Quer dizer que era você... - disse a onça...

- E o tempo todo eu achava que era o deus da mata me ajudando... - disse o veado.

- Pois é... Eu também achava - confessou ela.

- Então eu trabalhava de dia e a senhora trabalhava de noite...

Os dois entenderam tudo. Mas havia um problema: de quem era a casa, agora que estava pronta?

Todos os dois achavam que eram donos da casa, e não queriam desistir.

- Tenho uma ideia! - exclamou a onça. - Se nós fizemos a casa juntos, podemos morar juntos. Somos sócios...

"Morar com uma onça?", pensou o veado. "Não pode dar certo..."

- Acho até que vai ser muito bom - insistiu ela. - Você sai de dia para pastar, eu saio de noite para caçar. Nós não vamos nos encontrar nunca. E vai ter sempre alguém na casa, ela vai estar sempre bem cuidadinha...

"Vai ser perfeito", pensava a onça. "Fico com uma casa ótima, que nem deu muito trabalho, e ainda guardo uma reserva de comida dentro dela. Se algum dia não encontrar caça, créu! É só comer o sócio!"

O veado acabou concordando, porque não queria entregar a casa que lhe dera tanto trabalho. Mas sabia que aquela sociedade era muito arriscada e tratou de ficar atento ao perigo.

Durante alguns dias, a combinação deles funcionou. Mas a onça não aguentava mais de vontade de comer o veado e resolveu começar a assustá-lo, pensando que se ele tivesse medo dela, não ia lutar quando ela avançasse nele um dia. E para mostrar que era forte e sabia matar, passou a trazer para casa os restos da caçada da noite.

O veado acordava cedo, ia saindo, e lá vinha a onça com um coelho, uma paca ou um quati que ela mesma tinha caçado.

O veado foi ficando cada dia mais preocupado e acabou contando para os amigos o que tinha acontecido. Todos resolveram ajudar. Um deles disse:

- Eu vi na aldeia dos homens uma pele de onça esticada para secar no sol. Podíamos pedir emprestada...

- Isso mesmo! - concordou o veado. - Vou dizer que é um tapete novo para a casa.

E assim fizeram.

Quando vinham voltando com a pele de onça, aí, sim, foi que o deus da mata ajudou. Porque encontraram no caminho o cadáver de uma onça que tinha despencado de uma ribanceira o morrido. Resolveram levar também.

Era pesadíssima! Precisaram juntar quatro veados fortes para conseguir levar, e toda hora ela escorregava, eles tinham que aparar com a ajuda dos chifres, e ela foi ficando toda espetada. Finalmente, quando já estava anoitecendo, chegaram perto da casa.

O dono da casa foi na frente, com a pele de onça. Os quatro amigos vinham mais atrás, devagar.

Chegando no quintal, com a pele enrolada, ele viu duas onças, e a que dividia a casa com ele foi dizendo:

- Você não incomoda, não é? Chamei uma amiga para vir jantar comigo hoje...

Ele levou um susto, ficou com o coração batendo apressado. Mas aguentou firme, e respondeu como se não ligasse:

- Me incomodar? Por quê? Acho ótimo! Eu estava mesmo querendo dar uma festa hoje, para inaugurar este tapete novo que eu trouxe para nossa casa...

E desenrolou a pele.

As duas onças esperavam por tudo, menos por aquilo. A dona da casa engoliu em seco e perguntou:

- Onde foi que o senhor conseguiu isso, compadre?

E o veado reparou que, pela primeira vez na vida, ela o chamava de senhor... Sinal de respeito. Respondeu, com um ar distraído, aproveitando para chamar a onça de você:

- Cacei lá para as bandas da figueira-brava... Como você deve saber, nós, os veados, temos um jeito secreto de dar chifrada em onça, que é tiro e queda. Ela morre na hora. Por isso é que casa de veado é sempre quentinha, toda forrada de pele de onça, bem macia. Você não sabia?

As duas se entreolharam. Ele continuou:

- Mas vocês não precisam ficar com medo. Acho que com estas duas peles já dá para forrar quase todo o chão da casa...

- O senhor disse duas? Mas é uma só...

- Uma aqui na minha mão, já pronta... A outra eu larguei ali no terreiro, e os meus amigos vão me ajudar a esfolar... - disse ele, apontando para o cadáver todo marcado de chifradas, no chão do quintal, com quatro veados enormes ao lado.

As duas começaram a tremer, eu m dos veados olhou para elas e exclamou:

- Oba! Mais dois tapetes!

O dono da casa se adiantou, com um ar protetor, e disse:

- Não, nestas aqui ninguém toca. Uma é minha sócia, outra é minha hóspede...

Mas as onças foram recuando, meio sem graça, e a dona da casa disse:

- Na verdade, compadre, eu estava só esperando o senhor chegar para me despedir. Eu estou de mudança, sabe?

- É... - confirmou a outra - Ela vai morar comigo. Eu tenho uma caverna muito jeitosa, fresquinha, com bastante espaço, e ando querendo companhia...

Na mesma hora, o veado aprovou a ideia:

- Bom, se é assim, seja feliz! E não me leve a mal, mas confesso que até acho bom, porque então meus amigos podem vir morar comigo, e num instante vamos conseguir as outras peles que faltam para forrar as paredes e o resto do chão...

Fez uma pausa e perguntou:

- Aliás, você não quer me deixar o endereço novo, explicar bem explicado onde fica essa caverna?

A onça foi se afastando com a amiga. Já saindo da clareira, se virou para trás e disse:

- É muito longe, compadre, muito longe. O senhor não ia achar... Muito longe!

Devia ser. Porque elas nunca mais voltaram. Nunca mais mesmo.


Retirado do livro Histórias à Brasileira - a Moura Torta e outras, Volume 1, recontadas por Ana Maria Machado, Editora Companhia das Letrinhas, São Paulo, 2007.